A
informação chegou-me de modo espontâneo, porém com apoio de recursos
documentais. Sim, eu e esta minha mania de vasculhar papeis velhos em
bibliotecas. Imaginai que eu buscava informações acerca de fósseis no Brasil,
ou possíveis vestígios deles, na patente demonstração de paleontólogo amador, quando
vi-me requestado por uma pilha de papeis jogados a um canto de uma das muitas
salas mofadas da biblioteca municipal. Sim, a biblioteca estava literalmente
entregue às traças, pois encontrava-se refém de funcionários incompetentes,
presa fácil de jovens mal informados, chefiados por burocratas sisudos e
empolados.
Debrucei-me
sobre a pilha e comecei a manusear os papeis: eram jornais antigos,
amarelecidos, borrados. Em um dos exemplares encontrei a data: 10 de fevereiro
de 1842. Sim, a Carta Constitucional fora restabelecida. Mas havia notícias
outras, se bem que uma em especial reclamou-me a atenção: trazia o aviso de que
determinado navio aportaria aquela tarde no Rio de Janeiro, e que em quatro
dias teria lugar o leilão de escravos. Muito embora a notícia ainda hoje me
constranja e acuse asco, devo observar que para a realidade de então a
informação seria corriqueira. Todavia, como adendo à notícia, o inusitado: o jornal
informava que junto com os escravos seria também leiloada uma turma de intelectuais
da época, filósofos na verdade, que por conta de uma série de desmandos exibiam
o adjetivo de malta.
A
nota jornalística mostrava-se sui generis; em toda a história da filosofia, a
não ser no caso de Platão, que preso por Dion de Siracusa, tornou-se escravo,
foi posto à venda e depois arrematado pelos discípulos, não tivera ciência de
nenhum outro caso, principalmente no Brasil imperial, ainda mais com número tão
expressivo de representantes. Certifiquei-me desalentado que Diógenes Laércio
estava ultrapassado. A notícia serviu-me de estímulo ao mesmo tempo em que
deixava-me assaz desanimado: onde encontrar as notícias daquele singular
leilão? Como encontrar o jornal do dia 14 ou 15 de fevereiro de 1842?
Irritei-me: estava, de fato, aborrecido; a notícia acabara por fazer-me mal.
Sentei-me ao chão, próximo à pilha de matutinos; os “funcionários” da fúngica
biblioteca torceram o nariz, afinal o fim do expediente aproximava-se célere.
Mas a perspectiva de ser bem sucedido açodou-me. Eu examinava um por um os
jornais amarelados e puídos em busca de qualquer notícia acerca de leilões. O
tempo passava; eu já me coçava de modo impertinente, não sei se por conta do
contato com a abundância de fungos que dos noticiários deviam emanar, ou por
conta de minha incontida inquietação.
Quase
gritei: 15 de fevereiro de 1842. Meus olhos percorriam as letras, os trechos,
as sentenças impressas. As frases buscavam se esconder de mim; eu ávido por
consumi-las, por investigá-las. Eu observava coluna por coluna; eu esquadrinhava
página a página. Opa, lá estava: o resumo do dito leilão! Curioso, o autor do
artigo especificava, inclusive, os critérios utilizados pelos possíveis
compradores de escravos: observavam dentes, o corpo, o aspecto saudável, habilidades
profissionais, procedência, etc. No final do evento, todos os escravos tinham
sido vendidos, mas ninguém quis comprar sequer um intelectual. Por quê? A
pergunta não queria calar. Não, a partir daquele momento despi-me da faceta
paleontológica e assumi minha desdita filosófica. “Por quê?”, eu repetia
insistentemente de mim para comigo.
Dobrei-me,
portanto, aos ditames da filosofia e pus-me a buscar conceitos. Enfim, o que é
um escravo? Ser humano privado de liberdade e sujeito a alguém que dele
desfruta como um bem, passível de ser explorado e negociado. O que é um
intelectual? Alguém que declara-se livre de toda e qualquer sujeição e pensa
por si mesmo. Será? Conversa fiada! Luciano, um jornalista da Mesopotâmia,
antes mesmo do advento do cristianismo, comparara os intelectuais a
colecionadores de moscas; dissera ele que, se levados a leilão como escravos,
ninguém se interessaria em arrematar criaturas tão inúteis. Mesmo ao se
descontar os excessos de Luciano, ficamos entregues a seres estranhos. Afinal,
o que e quem são esses filósofos, essa dita intelectualidade? De onde veem?
Como vivem? De que se alimentam? No Brasil, pelo menos, intelectuais são
aqueles que, apesar de todo o discurso, submetem-se a outrem, ou por interesse
ou por mau-caratismo; passam a defender legados estranhos e tornam-se torpes
ideólogos; revelam-se simples arautos de pensamentos alheios, repetindo slogans
e chavões a exaustão. A filosofia mesma é difundida através de máximas. Os
intelectuais brasileiros submetem-se ao academicismo e investem-se de uma
fatuidade que abeira a repugnância. Ser filósofo e/ou intelectual no Brasil é
malbaratar a dignidade proporcionada pelo conhecimento em prol de reconhecimento
ou de um lugarzinho ao Sol.
Ensandecido,
rasguei o dito matutino.
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