domingo, 16 de dezembro de 2018

O leilão




A informação chegou-me de modo espontâneo, porém com apoio de recursos documentais. Sim, eu e esta minha mania de vasculhar papeis velhos em bibliotecas. Imaginai que eu buscava informações acerca de fósseis no Brasil, ou possíveis vestígios deles, na patente demonstração de paleontólogo amador, quando vi-me requestado por uma pilha de papeis jogados a um canto de uma das muitas salas mofadas da biblioteca municipal. Sim, a biblioteca estava literalmente entregue às traças, pois encontrava-se refém de funcionários incompetentes, presa fácil de jovens mal informados, chefiados por burocratas sisudos e empolados.

Debrucei-me sobre a pilha e comecei a manusear os papeis: eram jornais antigos, amarelecidos, borrados. Em um dos exemplares encontrei a data: 10 de fevereiro de 1842. Sim, a Carta Constitucional fora restabelecida. Mas havia notícias outras, se bem que uma em especial reclamou-me a atenção: trazia o aviso de que determinado navio aportaria aquela tarde no Rio de Janeiro, e que em quatro dias teria lugar o leilão de escravos. Muito embora a notícia ainda hoje me constranja e acuse asco, devo observar que para a realidade de então a informação seria corriqueira. Todavia, como adendo à notícia, o inusitado: o jornal informava que junto com os escravos seria também leiloada uma turma de intelectuais da época, filósofos na verdade, que por conta de uma série de desmandos exibiam o adjetivo de malta.

A nota jornalística mostrava-se sui generis; em toda a história da filosofia, a não ser no caso de Platão, que preso por Dion de Siracusa, tornou-se escravo, foi posto à venda e depois arrematado pelos discípulos, não tivera ciência de nenhum outro caso, principalmente no Brasil imperial, ainda mais com número tão expressivo de representantes. Certifiquei-me desalentado que Diógenes Laércio estava ultrapassado. A notícia serviu-me de estímulo ao mesmo tempo em que deixava-me assaz desanimado: onde encontrar as notícias daquele singular leilão? Como encontrar o jornal do dia 14 ou 15 de fevereiro de 1842? Irritei-me: estava, de fato, aborrecido; a notícia acabara por fazer-me mal. Sentei-me ao chão, próximo à pilha de matutinos; os “funcionários” da fúngica biblioteca torceram o nariz, afinal o fim do expediente aproximava-se célere. Mas a perspectiva de ser bem sucedido açodou-me. Eu examinava um por um os jornais amarelados e puídos em busca de qualquer notícia acerca de leilões. O tempo passava; eu já me coçava de modo impertinente, não sei se por conta do contato com a abundância de fungos que dos noticiários deviam emanar, ou por conta de minha incontida inquietação.

Quase gritei: 15 de fevereiro de 1842. Meus olhos percorriam as letras, os trechos, as sentenças impressas. As frases buscavam se esconder de mim; eu ávido por consumi-las, por investigá-las. Eu observava coluna por coluna; eu esquadrinhava página a página. Opa, lá estava: o resumo do dito leilão! Curioso, o autor do artigo especificava, inclusive, os critérios utilizados pelos possíveis compradores de escravos: observavam dentes, o corpo, o aspecto saudável, habilidades profissionais, procedência, etc. No final do evento, todos os escravos tinham sido vendidos, mas ninguém quis comprar sequer um intelectual. Por quê? A pergunta não queria calar. Não, a partir daquele momento despi-me da faceta paleontológica e assumi minha desdita filosófica. “Por quê?”, eu repetia insistentemente de mim para comigo.

Dobrei-me, portanto, aos ditames da filosofia e pus-me a buscar conceitos. Enfim, o que é um escravo? Ser humano privado de liberdade e sujeito a alguém que dele desfruta como um bem, passível de ser explorado e negociado. O que é um intelectual? Alguém que declara-se livre de toda e qualquer sujeição e pensa por si mesmo. Será? Conversa fiada! Luciano, um jornalista da Mesopotâmia, antes mesmo do advento do cristianismo, comparara os intelectuais a colecionadores de moscas; dissera ele que, se levados a leilão como escravos, ninguém se interessaria em arrematar criaturas tão inúteis. Mesmo ao se descontar os excessos de Luciano, ficamos entregues a seres estranhos. Afinal, o que e quem são esses filósofos, essa dita intelectualidade? De onde veem? Como vivem? De que se alimentam? No Brasil, pelo menos, intelectuais são aqueles que, apesar de todo o discurso, submetem-se a outrem, ou por interesse ou por mau-caratismo; passam a defender legados estranhos e tornam-se torpes ideólogos; revelam-se simples arautos de pensamentos alheios, repetindo slogans e chavões a exaustão. A filosofia mesma é difundida através de máximas. Os intelectuais brasileiros submetem-se ao academicismo e investem-se de uma fatuidade que abeira a repugnância. Ser filósofo e/ou intelectual no Brasil é malbaratar a dignidade proporcionada pelo conhecimento em prol de reconhecimento ou de um lugarzinho ao Sol.

Ensandecido, rasguei o dito matutino.

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