segunda-feira, 31 de agosto de 2020

Currículos

 

Conseguis perceber que atualmente há dentre a escória política - perdão, isso foi um lapso freudiano, ato falho, lapsus calami ou seria lápis falho (?), pois eu quis escrever escola política - uma certa preocupação com currículos? A preocupação, em si, faz sentido, pois recentemente tivemos, através da mídia, o relato de que certo cidadão cotado para assumir o Ministério da Educação, fantasiara (aqui faço uso de um eufemismo) em muito sua formação acadêmica e, ipso facto, sua informação curricular. Atentemos igualmente para as nomeações reincidentes aos cargos de Ministros do Supremo Tribunal Federal àqueles que jamais foram juízes. Então vós argumentais: “Mas eles são detentores de notável saber jurídico”. Perfeito, vos respondo, mas o currículo em muito ajudaria a corroborar tal atributo.

Nada obstante, acredito estar justificada, salvo melhor juízo, esta preocupação maior, pois o que reclama sobremodo minha atenção é o fato de que o Diretor-Geral da Organização Mundial de Saúde não seja médico. Consta em seu currículo biográfico que ele é graduado em Biologia, pesquisador de malária e doutor em saúde comunitária. Longe da intenção de fazer piada, doutor em saúde comunitária soa-me simplesmente como empostada alcunha para um agente de saúde. E para não ser injusto ou preconceituoso, decidi-me a buscar seu currículo no Google, muito embora tal fonte seja, por si mesma, eivada de vícios.

Não satisfeito, a fazer uso das técnicas e condutas vigentes, contratei um hacker para me auxiliar na pesquisa sobre Tedros Adhanom Ghebreyesus. Bem, de início, devo confessar que quedei-me incrédulo; depois, já refeito do choque, assimilei as novidades. Sim, as informações acerca de Tedros não só eram verdadeiras, mas também acrescidas do insólito. Pasmai! O atual Diretor-Geral da OMS estudara em Hogwarts. Não, não foi contemporâneo de Harry Potter, mas desfrutou da companhia de outros personagens bem conhecidos por todos nós.

Outra “coincidência” interessante: Todos eles (os nossos conhecidos) pertenceram a casa Sonserina; os chapéus, de fato, mostram-se sábios e deveras seletivos. É bom ter em mente que a casa Sonserina tem por característica abrigar estudantes ambiciosos, calculistas, orgulhosos. Segundo informações do hacker, pelo menos um deles, Sérgio Moro, tentou transferir-se para Grifinória, mas o recurso lhe foi negado. O discente tentou desacreditar e questionar a imparcialidade dos chapéus. “Patético”, foi o derradeiro adjetivo utilizado por Dumbledore em seu despacho.    

Ainda pautado em informações de meu hacker - doravante meu herói - fiquei sabendo que Tedros e Alexandre de Moraes eram rivais nas disputas do quadribol, muito embora ambos, já naquela época, fraudarem as regras do jogo. Quase a terminar este breve relato de minha ousada e delituosa pesquisa acerca de currículos, vim descobrir, por fonte fidedigna, que Lord Voldemort, logo após o duelo com Harry Potter, não morreu, mas exilou-se, e com auxílio de disfarce e alguns quilos a mais, transformou-se em algo bem pior: hoje ele atende pelo nome de Gilmar Mendes.

Informação relevante: ao acessar os arquivos de Hogwarts, meu herói hacker descobriu que a famosa instituição de ensino - evidentemente sem o glamour de Harvard, Yale ou Oxford - teve como discípulos George Soros e William Henry Gates III. Varinhas mágicas à parte, a Hogwarts School of Witchcraft and Wizardry, em dias atuais, parece preocupar-se em reservar para seus discentes, isto é, os novos bruxos, lugares de relevância na sociedade.   

domingo, 30 de agosto de 2020

Minha viagem à Lua

  

Há muito eu alimentava a ideia de conhecer São Francisco, Califórnia; queria dar-me ao ócio por suas colinas, deixar-me envolver por sua névoa. Sim, claro, havia o risco potencializado pela ciência acerca da Falha de San Andreas. Não obstante as diversas dificuldades, a oportunidade fez-se presente. Era o ano de 1998, e lá estava eu a cruzar a Golden Gate, a andar de bondinho, a ficar hospedado em simpático hotel de arquitetura vitoriana. Finalmente posso entoar, num tributo a Frank Sinatra, versos como: “I left my heart in San Francisco”.

Mas o estado da Califórnia tem outros atrativos: eu falo de Los Angeles, a fascinante “Cidade do Anjos” e sua indústria cinematográfica. O lugar parece respirar a sétima arte; lá podemos conhecer os bastidores da Paramount, da Universal, da Warner. Em Hollywood Boulevard pude observar as impressões de mãos e pés de alguns famosos na calçada da fama. Ao longe avistei o letreiro de Hollywood; visitei o Pier de Santa Mônica, o fim da rota 66. Bem, e como todo bom turista que se preza, permiti-me apreciar um pouco da agitadíssima vida noturna de Los Angeles.

Influenciado por outros hóspedes e pelo concierge, fui a um desses nightclubs em Beverly Hills. O lugar era bastante frequentado. Para fugir da agitação, busquei um canto discreto onde permiti-me observar os demais circunstantes. Dentre os presentes reconheci Stanley Kubrick, um Kubrick entrado em anos, calvo, a barba branca, óculos com aro de metal. Ensejo qualquer permitiu que estabelecêssemos diálogo; conversamos. De início a diferença idiomática causou-nos alguns embaraços; depois, talvez amparados pelo bourbon, entramos em ressonância. Nossa conversa não podia afastar-se do cinema; em presença de Kubrick, eu não saberia pensar em outra coisa. Não poupei elogios à “A laranja mecânica”: a pretensão da ciência em corrigir as falhas do caráter humano. Ele agradeceu. Contudo, quando falei sobre “2001: A Space Odyssey”, percebi-lhe certo embaraço; o termo correto seria desconforto. Segundos se interpuseram em nossa amigável conversa. Ele quebrou o breve silêncio com um convite: instou-me para conhecer, de imediato, determinado local nos estúdios da Metro-Goldwyn-Mayer. Disse-me que eu entenderia, pois tudo aquilo fora um erro e já trabalhava um novo roteiro, para que de algum modo pudesse redimir-se com o público que o aclamara. Confesso-vos que eu nada entendia, porém, tomado de curiosidade, acedi ao estranho convite.

Noite alta. Embarcamos no taxi que conduziu-nos ao estúdio indicado por ele. Vencidas as dificuldades inerentes à entrada de estranhos em alguns lugares, principalmente em se tratando de estrangeiros, e tudo graças a interferência de Kubrick, penetramos em certo galpão trancado a cadeado. O cineasta afastou-se, deixando-me em total escuridão. De repente, luzes esparsas foram sendo acesas sequencialmente. Ele retornou, pegou-me pelo braço e adentramos determinado movie set. Fiquei estupefato: eu estava na Lua, ou melhor, adentrara o ambiente que caracterizava a chegada do homem à Lua. Fixei meu olhar em Kubrick; ele evitou-me. De cabeça baixa, disse que de algum modo participara daquela farsa... Por isso necessitava remissão. Convidou-me a caminhar pelo cenário. Lá estava a réplica do módulo lunar Eagle da Apolo 11, as pegadas deixadas por Armstrong, a bandeira norte-americana, a medalha a homenagear Yuri Gagarin. Um pouco mais relaxado, explicou-me que a caminhada - os pulos - do astronauta fora fruto de efeitos especiais para simular a diferente gravidade. Que lástima: ali não era, de fato, o Mar da Tranquilidade!

Abandonamos o set de filmagens. Lá fora o taxi ainda esperava por nós. No percurso, eu conclui que “o pequeno passo para o homem, o salto gigante para a humanidade” não passava de revoltante farsa. Neil Armstrong fora um herói de mentira. Meu mais recente e confidente amigo, no momento em que o auto parou de fronte ao hotel que me hospedava, olhou-me nos olhos, tentou brando sorriso, pegou-me pelas mãos e disse: – “Não deixes de assistir muito em breve a meu próximo filme; é claro que nada poderá ser tratado de modo evidente, pois temo por minha vida, mas tu entenderás minha mensagem”. Eu desci e dirigi-me ao lobby, enquanto o carro afastava-se sem pressa.

Quando no quarto, joguei-me na cama; eu não conseguia pensar em outra coisa: a grande farsa chamada de “conquista do espaço”. Veio-me à memória um tio meu já há muito falecido; dizia ele não acreditar em nada daquilo. Pasmo, verifiquei que meu tio, muito embora a crença de que São Jorge habitava nosso satélite, sempre estivera certo em seu ceticismo. Pergunto-me: O que é pior: deixar-se levar pelas crendices populares ou pela trama dos poderosos mal intencionados que manipulam a ciência e cientistas inescrupulosos? Pensei nos poetas e compositores que tinham na Lua fonte de inspiração. Tudo agora me sugeria uma grande farsa; a corrida espacial foi uma farsa. A guerra fria, teria existido de fato? Imerso em revolta e desconfiança, adormeci. Foi um sono agitado, confuso. Acordei com a célebre frase: “The Eagle has landed”. Tudo mentira! A águia não pousou; sequer houve algum pássaro.

Dias depois, deixei Los Angeles em voo para o Rio de Janeiro, com escala em Lima, no Peru. Durante muito tempo os detalhes e imagens dos objetos no movie set não me abandonaram; comecei a sentir certa repulsa pela Cidade dos Anjos. Em 1999, assisti no Brasil ao lançamento do último trabalho de Stanley Kubrick: “De olhos bem fechados”. Apesar dos quase 25 minutos de corte, e por isso, talvez, a obra tenha-se mostrado algo confusa, o diretor conseguiu o prometido intento, pois o filme nada tem a ver com fantasias sexuais. Assim o entendi, e acredito que quem não deveria entendê-lo também o fez, pois Kubrick morreu mesmo antes da estreia. O cineasta conseguiu redimir-se. Todavia, de lá para cá, uma certeza passou a habitar-me: a realidade – até porque toda realidade é fruto de manipulação, haja vista a Caverna de Platão e Matrix – para fazer sentido, necessita da fantasia.

terça-feira, 25 de agosto de 2020

Equino-encômio póstumo


Seu nome: Canela. Não por causa da árvore com casca aromática, mas por causa do exotismo de sua cor. Um quadrúpede, mas não animália; um equus ferus, ungulado, baio, quarto de milha. Fora adquirido ainda potro, ainda junto da mãe égua que só fazia lhe dispensar cuidados, amor. Amor equestre, evidentemente. E veio o desmame, o abandono da infância, a juventude com seus arroubos, a briga com outros machos. E surgiu a primeira fêmea, a primeira paixão, um primeiro coito arrojado. Algum pouco trabalho, a montaria. A primeira cela, a carga incômoda...

Canela era assim: um jovem encantador. Aceitava a montaria com altivez; primava por bem servir aos possíveis cavaleiros e o fazia de bom grado. Enfim, excelente companheiro nas breves viagens pelos longínquos prados. Certa feita, no entanto, ao conduzir jovem donzela, percebeu o estro de fêmea que demandava sexo. Sim, a natureza clamava por ele. Relinchou, empinou e ... a moça foi ao chão. Nada grave, apenas leves escoriações. Canela satisfez-se, satisfez também a parceira. Então começaram os conselhos, as sugestões, as condições, as quase exigências. Sim, Canela deveria ser castrado. Quanta crueldade! Que involução: de garanhão a capão!   

Canela tornou-se esquivo, taciturno, talvez depressivo. Parecia querer a solidão, pois embrenhava-se mato a dentro. Passavam-se dias sem dele ter-se notícias. Nas temporadas chuvosas, os carrapatos tornavam sua vida bem mais difícil. Remédios, unguentos, vacinas... Mas Canela fazia-se ausente. Ouso dizê-lo ensimesmado; sua introversão lhe bastava; dela se alimentava. Por vezes, ao longe, um breve relincho e nada mais.

O derradeiro desaparecimento preocupou. Por andaria Canela? Teria fugido com sua dor? Teria abandonado tão ricos prados? A várzea é perigosa; cobras por lá transitam. Sim, e foi lá onde o encontramos: a vida o abandonara ... ou teria sido ele a abandonar a vida? Não sei, ainda não me recobrei do desfecho. No poema da canção “Espelho”, o autor João Nogueira confessa: “Troquei de mal com Deus por me levar meu pai”. Não, não trocarei de mal com Deus, mas irei instar para que Ele o guarde em seus prados. Não permita que cavaleiro algum o maltrate. Que Canela conduza o anjo que, enfim, há de nos redimir de todo o mal.


segunda-feira, 24 de agosto de 2020

Hominum Immaculatam

 

Percebo à contragosto - espero o mesmo de vós outros - que um dos elementos essenciais à manutenção da vida humana é exatamente a fonte de sua ruína. Sim, falo do oxigênio. Imprescindível à vida humana, mas ... as pessoas oxidam, os organismos experimentam corrupção, degeneração, células se desagregam ... e vem a morte inexorável. A única coisa que posso inferir desse emaranhado de dissabores é que isso prova a pequenez, a limitação do organismo humano. Então, nós, imbuídos do espírito cientificista - não falo em científico - empenhamo-nos em “corrigir essa deformidade” da natureza. E como fazê-lo? Sim, mudemos o DNA; mudemos a estrutura basilar da vida; criemos um substituto: o ser humano 2.01, o ser humano imaculado, inoxidável. E o que seria isso? Obra maravilhosa da engenharia genética mesclada à ciência da informática, ao mundo digital, ao armazenamento de dados.

Eis o ser humano remodelado, reformado, reestruturado, reconstruído. Ao prescindir do oxigênio, a humanidade poderá habitar qualquer outro orbe, qualquer outro planeta, pois a respiração tornou-se obsoleta. Quem diria, heim? Estamos diante da verdadeira ciência, de um novo deus criador (perdoem-me os fanáticos idólatras, mas essa divindade eu grafo em minúsculas). Teremos, então, um ser humano incapaz de experimentar envelhecimento. Enfim a longevidade! 

Contudo, precisamos de uma humanidade próxima da perfeição, longe daquele ser hobbesiano; precisamos do exemplar de Rousseau, alguém bom por natureza; é a sociedade quem os deforma. Mas a sociedade tem suas exigências e prioridades, ela não pode ser definida pelos humanos. Então, a mesma ciência redesenha a psique, torna homogêneo o caráter humano, pois assim ninguém cometerá deslizes, enganos, equívocos; não haverá mais crimes, nenhuma dissenção, nenhuma contenda. 

Nada obstante, permitamo-nos agora um mergulho imaginário neste novo panorama, nesta dimensão eminentemente cientificista; respiremos um pouco dessa atmosfera artificial. O que sentis? Seria a mesma sensação que virtualmente experimento? Sim, isso: o imenso tédio. É onde a perfeição dos protótipos revela a imperfeição sistêmica. E como falar de amor em tal ambiente? De fato, a humanidade tornar-se-ia assaz equilibrada, equânime, com atitudes constantes, estáveis, inalteradas. Mas isso não revela amor; essa igualdade não é apanágio do ser humano. Tornar-nos-emos robôs, “pessoas” previsíveis, programáveis. E onde a apregoada liberdade?

O humano antigo, original, teve a imagem e semelhança de Deus como modelo, seja lá o que isso quer dizer. Qual o referencial do ser humano 2.01? Uma ciência tipicamente humana, sujeita a interesses, à vanglória. Antes mesmo de preocupar-se em proporcionar qualquer bem estar ao próximo, o cientificismo atende à sua imensa vaidade. O Deus dos antigos, através da liberdade, buscava estimular nos homens a autocorreção, para que estes transformassem a sociedade; o deus da pós-modernidade interfere na liberdade humana, remodela seus comportamentos, pois em torná-los seres homogêneos preserva uma sociedade fútil, superficial e desequilibrada.      

quarta-feira, 19 de agosto de 2020

Sátiras e Epigramas - revivendo Bocage

                     I

Tinha uma dor muito aguda

Um homem. Veio o doutor,

E disse: “Com três regrinhas

O livro já dessa dor”.

 

Corre a lançar mão da pena,

Eis diz o enfermo a tremer:

“Ai! Nada senhor doutor;

Antes penar do que morrer!”

         

                  II

Uma terra dizem que há,

Onde a fome acerba e dura,

Cabo dos médicos dá:

Por que é isto? É porque lá

Pagam somente a quem cura.

      

                    III

Homem de gênio impaciente,

Tendo uma dor infernal,

Pedia para matar-se

Um veneno ou um punhal.

 

“Não há (lhe disse um vizinho,

Velho, que pensava bem),

Não há punhal ou veneno;

Mas o médico aí vem”.

                

                IV

Lê-se numa sepultura

De antiguidade Afonsina:

“Aqui jaz quem não jazera,

Se jazesse a medicina”.

 

                  V

“Fábio, o meu dileto amigo,

(Dizia Alfeu consternado),

Dos médicos mais insignes

Está já desamparado”.

 

– “Oh, sai dali um sujeito,

De circunspecta presença,

Feliz se o desamparassem

No princípio da doença!”

* * * 

Então eu vos pergunto: Por que Manoel Maria Barbosa du Bocage, o poeta de Setúbal, nascido no século XVIII, faria tantas críticas a médicos e à medicina? Profecia ou pragmatismo? Bem, independente de qual seja resposta, fica aqui esta singela homenagem a OMS, ao ex-ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta, a Dráuzio Varella e muitos mais. 

segunda-feira, 17 de agosto de 2020

Em boa companhia

 

Há muito identifiquei, haja vista o insistente estridular, a presença de um Gryllidae  Acheta Domesticus em minha biblioteca. Acalmai-vos, trata-se de inofensivo grilo, apesar de ostentar esta belíssima e charmosa alcunha. Permito-me tal convivência, até porque nada existe de incômodo ou insalubre nesta interação. Atualmente, em várias cidades do país, e também no mundo, tornou-se recorrente a presença não só de grilos, mas de uma grande variedades de insetos. Curioso é como as reportagens exibem em seus “ensaios” a falta de predadores naturais como causa desta insólita invasão. A seguir tal aconselhamento, doravante, deveremos estimular a criação de lagartixas e/ou sapos em nosso lares.

Nada obstante, nenhum ser humano parece querer assumir sua parcela de culpa nesse desequilíbrio natural/ambiental. Os humanos ainda não atentaram para um simples detalhe: eles são os principais responsáveis por tal descalabro. E por trás de tudo existe a ciência, que promete tornar-nos longevos, quiçá imortais. Lamentavelmente e de fato, a ciência é nossa Caixa de Pandora. Os moradores dos grande centros, não só desinformados, mas também incomodados, refutam as sugestões de biólogos e apelam para a dedetização.

Na contramão desse insetívoro genocídio, preparei confortável lugar para meu visitante. Sim, inspirado nas cenas de “O último Imperador”, premiada película de 1987, dirigida por Bernardo Bertolucci, instalei em canto estratégico da singela biblioteca uma quartinha de barro sem tampa. Assim, eu e meu fiel companheiro, igualmente solitário, solidarizar-nos-emos em noites insones e lugares ermos. E quem sabe um dia, não um último imperador como Puyi, mas eu mesmo, depois de me reeducar e aprender a viver uma vida comum e em total disponibilidade, possa reencontrar o amigo, mesmo envelhecido, a estridular ainda em busca de companhia?  

sexta-feira, 14 de agosto de 2020

Polegares opositores

Dizem-me um alienígena. Isso talvez porque eu o seja, de fato. Vim de galáxia distante, atraído por sons maravilhosos (aqui chamam de música): eram frases melódicas admiráveis que nos conduzia à reflexão, à paz interior. Mas, em virtude da distância e o tempo que nos separa - anos luz, segundo os terráqueos - quando aqui cheguei, fiquei sabendo que estes sons já não mais são construídos; agora fazem algo rústico, barulhento, agressivo. Na falta de melhor adjetivo, eu diria ... contundente. Sim, nós - minha querida raça - do distante planeta Cepta, admirávamos os terráqueos por sua arte. Todavia, isto agora pertence ao passado...

Muitas outras são as características desta raça; creio poder chamá-la estranha. Sim, são extremamente agressivos: em nome da autopreservação, destroem os semelhantes. E o que dizer dos dessemelhantes? Eu sou testemunha. Tenho a cor acobreada, a pele crestada pelo nosso Saul (os humanos têm o seu Sol) pelos escuros avermelhados, estatura mediana e tenho forte compleição, como os demais de minha raça. Sou agredido não só verbalmente. Para terdes uma ideia, obrigam-me a beber café requentado. Além da bebida alcoólica, o café é muito muito popular; creio que por ser uma rubiácea, tenha poderes medicinais. Os humanos chamam-me pelos piores nomes. Sim, as várias linguagens dos terráqueos permitem o uso de um recurso que eles chamam de retórica: é uma frase esteticamente bem construída, mas que se bem analisada quer dizer absolutamente nada, e tem por objetivo defender os interesses de uns em detrimento de outros.

Coisa curiosa o terráqueo: reconhecem a finitude, mas temem a morte; evitam até mesmo falar sobre o tema. Como nada de material levarão para o túmulo (lugar em que se deposita o corpo sem vida da raça humana), durante a breve vida, ou esbanjam dinheiro à rodo com todo tipo de futilidades ou juntam bens para que a família desfrute após a morte. Os humanos não lidam bem com a morte, mas curiosamente vivem em guerra; pregam a paz, mas divertem-se com competições de extrema violência. Dizem prezar o próximo, falam em fraternidade, mas colocam os interesses individuais acima até mesmo do Estado. Os seres deste orbe empenham-se em tornar a própria vida impossível de ser vivida; para compensar, então, recorrem às drogas. Os humanos experimentaram grande avanço científico, mas usam estes conhecimentos para o que chamam de tecnologia, o que os torna acomodados, indolentes e obesos. Não obstante o avanço da ciência, é patente o recrudescimento moral. Dizem defenderem a natureza e as demais espécies, mas usam a carne animal como alimento.  

Outra particularidade dos humanos: eles desenvolveram um “negócio” (desculpai o mau jeito, mas nada existe similar em nosso idioma, em nossa realidade) chamado política. Eles passam os dias bradando por uma tal de democracia, que dissemina a ideia de que o poder emana do povo (eis o uso da retórica), mas, na verdade, alguns assumem o mais alto cargo, ou através do voto, ou do golpe, ou até mesmo de uma revolução e governam de modo a tornarem-se ricos e lá perpetuarem-se. Os humanos, os governados, adoram ser enganados pelos discursos retóricos, talvez porque a maioria deles seja analfabeto (quando os humanos não sabem ler ou escrever o próprio idioma). Falam também em analfabetos funcionais: aqueles que, apesar de terem frequentado as instituições de ensino, nada assimilaram e são usados como manada (ganampu em nosso idioma) pelos que pretendem eternizarem-se no poder.

E o mais importante antes de eu terminar este meu breve relatório: os poderosos pretendem criar um governo central, único, uma única lei, uma única cultura, uma única religião, um único idioma, única moeda, apesar da multiplicidade de culturas, crenças e valores. Para isso eles se valem do ganampu, dos políticos corruptos, de ideologias abstrusas e dos órgãos de imprensa (os que espalham as notícias) que traficam com a verdade. Estai certos de que “o bicho vai pegar” (expressão usada pelos terráqueos para declararem que tudo vai dar errado e, consequentemente, trará lamentáveis consequências).

Eis o porquê deste relatório; estou voltando para Cepta. Clamo a Diev (Deus), único em todo o universo, que inspire nossos cientistas no sentido de abrirem logo o pórtico - a dobra do tempo - para que eu retorne a meu planeta, à minha galáxia natal. A propósito, um detalhe antes de terminar; aliás, o único que torna os humanos próximos de nós: eles têm polegares opositores.  

quinta-feira, 13 de agosto de 2020

Scientiam Deum

 “Bem aventurados os limpos de coração, porque eles verão a Deus”. Mt. 5:8

 

Meister Eckhart, em O Silêncio da Criação, aponta-nos condição única e basilar para que Deus se nos revele. Para tal, devemos preencher o requisito de “[...] pessoa fiel e per-feita (feita a partir de) que caminhou e caminha os caminhos de Deus”. E em seguida fornece-nos alguns detalhes: “É por isso que a alma deve-se manter toda pura e viver em toda a nobreza, com todo reconhecimento e em toda interioridade”. No livro dos Salmos, encontramos: “Eis que te comprazes na verdade no íntimo, e no recôndito me fazes conhecer a sabedoria”. (Salmo 51:6). Portanto, “não se deve dissipar com os sentidos pela variedade multiforme das criaturas”. Voltemo-nos a nós mesmos, à nosso interior, no que possuímos de mais puro, pois este é o lugar do silêncio. O salmista mais uma vez clama ao Senhor: “Purifica-me com hissopo e ficarei limpo; lava-me e ficarei mais alvo que a neve”. (Sl. 51: 7.)  “Tudo que for inferior, ofereçamos-lhe resistência”.

Neste passo, fazem-se necessários alguns esclarecimentos: Silêncio, para Eckhart, não se resume à cessação de som ou ruído; silêncio é condição, é lugar específico. O silêncio “deve ser e estar no que a alma tem de mais puro, de mais nobre e de mais delicado”. No Salmo 51, versículo 10, encontramos: “Cria em mim, ó Deus, um coração puro e renova dentro em mim um espírito inabalável”. Trata-se do lugar mais oculto, o recôndito, o ser da alma, isto é, sua essência. A alma deve ser entendida como substância vivente, simples e incorpórea, invisível aos olhos do corpo. Ela apresenta três aspectos fundamentais: a imortalidade, a racionalidade, a intelectualidade; não possui representação e tem o corpo como instrumento. A imagem da Sabedoria Divina dá origem a alma. O Ser da alma, a essência, por sua vez, é nada mais que a parte de Deus presente em sua criação. O ser da alma e Deus são Uno. Nesse meio silencioso a Unidade atua; aí Deus dá continuidade à sua criação; lá Deus pronuncia sua palavra.

Em face do exposto, poder-se-ia pensar que já dispomos de informações suficientes para conhecer a Deus. Contudo, nosso conhecimento ainda é falto, superficial. Continuemos, pois: A alma, como dito acima, tem o corpo como instrumento. Todas as ações da alma dependem de intermediação; ela faz uso dos sentidos corpóreos, bem como das faculdades para realizar suas obras. Tudo que a alma exterioriza ela o faz com auxílio dos sentidos; o que ela cria e interioriza acontece por intermédio das faculdades, seja a razão, a memória, a vontade. Estas faculdades, características das criaturas que agem e operam, tem origem no Ser, no Uno, onde Deus pronuncia Sua palavra. Deus, portanto, é a fonte do conhecimento!

No conhecimento, ou seja, no contato exterior, as almas, através dos sentidos e faculdades, retiram e haurem das criaturas imagem e semelhança, recolhendo-as a seu interior. A imagem é algo que a alma recolhe das coisas através das faculdades. A alma não é receptiva; ela só consegue conhecer através das imagens que ela mesma forma das criaturas. Logo, a alma não pode conhecer a si mesma, porque não possui uma imagem de si. A alma só é receptiva a Deus, isto porque Deus não exige mediação; Deus não passa pelos sentidos corpóreos e não carece de faculdades intermediárias para dar-se a conhecer. Deus é o Ser no fundo da alma; Ele é Uno com as almas de suas criaturas.  

Bem, agora podemos dizer, de fato, que conhecemos a Deus, muito embora não tenhamos Dele uma imagem. O ser humano é capaz de intuir, perceber e reconhecer Deus em sua interioridade, mas não consegue descrevê-Lo. E é nesse reconhecimento que se origina a fé. Estai atentos! Deus pode até ser contemplado, mas não pode ser descrito, não pode ser caracterizado ou comparado. Não há linguagem capaz de fazê-lo! Isto porque Deus não pode ser mensurado; a mensuração é recurso humano e apenas reflete a pequenez dos seres diante da natureza e de seu Criador.   

domingo, 9 de agosto de 2020

Sicut illa simulatione

Há muito venho me perguntando o porquê da tamanha aceitação do realismo na arte. Estai certos, no entanto, de que em nada me incomoda o fato de lidar com temas do cotidiano, nem mesmo pelas críticas feitas à sociedade. O problema é que os autores e artistas incorporaram a rispidez, a indelicadeza, a grosseria. Em nome do movimento realista, a arte como um todo mostra-se rude; há como um esbanjamento da agressividade. As poesias são agressivas, a música agride, as danças agridem, o teatro é insultuoso, o cinema é violento, aviltante. Por que? 

Bem, alguém, cujo nome por ora não me recordo, aconselhara-nos, de tempos em tempos, a retornar aos clássicos. E por favor, isso está longe de qualquer preconceito literário. Eu, partidário dos bons conselhos, releio saudoso o Capítulo 2, do Livro Terceiro, das Confissões de Santo Agostinho. O filósofo, já no século IV de nossa era, também mostrava inquietação com os rumos da arte, mais especificamente o teatro. Percebera o também religioso que o ser humano gosta de contemplar o trágico e a tristeza, muito embora não queira experimentá-la. Deleitar-se-ia o ser humano com a dor alheia? Por que manifestar comoção quando não há envolvimento ou afeto diante de uma cena fictícia? Os espetáculos buscam apenas inspirar a dó nos espectadores. E, coisa curiosa – isso é bem atual – quanto mais o autor apela para a piedade, a comiseração do público, mais ele é admirado.

Então, em virtude do exposto, sou levado a vos questionar: Afinal, qual a finalidade, o objetivo da arte? A arte nos foi dada para mitigar os sofrimentos; a arte deve servir-nos de alento, dar ânimo, incitar a coragem.  Todavia, há aqueles que veem a arte como passatempo e/ou diversão.  Neste caso, parece-me que o ser humano entretém-se ou diverte-se com o sofrimento alheio. É isso? Não! Este recurso esconde algo bem pior: o ser humano aprecia este tipo de espetáculo porque pode mostrar-se misericordioso, piedoso, só que de modo descompromissado. A dor alheia, portanto, aquela encenada, descrita, representada, cantada, dançada, etc., teria como escopo, provocar um simulacro de piedade. A compaixão, de fato, mitleiden, o sofrer com o outro, a verdadeira piedade foi deixada de lado. Isto porque o misericordioso não deseja o mal; com o mal ele não se diverte ou compraz. A dor leva à compaixão; não estimula o amor.

Nada obstante, a dar sequência ao pensamento agostiniano, interrogo-me: Somente a arte daria oportunidade a esta nefanda simulação de sentimentos? É lógico que não. Ruminando imprecações contra a ingenuidade de Rousseau, que pregava um ser humano bom por natureza, percebo que, infelizmente, toda e qualquer ocasião que enseje a hipocrisia será bemvinda, haja vista os discursos ideológicos-políticos inflamados, que dizem contemplar os pobres, os injustiçados, os segregados, os sofredores, etc. Atentai para os sermões arrojados dos que militam por direitos humanos, pelos exaltados defensores do meio ambiente e pelos que entusiasticamente dizem preocuparem-se com as minorias. Em toda prática retórica perceber-se-á a oportunidade com que grande número de oradores e espectadores simulam virtudes.