terça-feira, 25 de agosto de 2020

Equino-encômio póstumo


Seu nome: Canela. Não por causa da árvore com casca aromática, mas por causa do exotismo de sua cor. Um quadrúpede, mas não animália; um equus ferus, ungulado, baio, quarto de milha. Fora adquirido ainda potro, ainda junto da mãe égua que só fazia lhe dispensar cuidados, amor. Amor equestre, evidentemente. E veio o desmame, o abandono da infância, a juventude com seus arroubos, a briga com outros machos. E surgiu a primeira fêmea, a primeira paixão, um primeiro coito arrojado. Algum pouco trabalho, a montaria. A primeira cela, a carga incômoda...

Canela era assim: um jovem encantador. Aceitava a montaria com altivez; primava por bem servir aos possíveis cavaleiros e o fazia de bom grado. Enfim, excelente companheiro nas breves viagens pelos longínquos prados. Certa feita, no entanto, ao conduzir jovem donzela, percebeu o estro de fêmea que demandava sexo. Sim, a natureza clamava por ele. Relinchou, empinou e ... a moça foi ao chão. Nada grave, apenas leves escoriações. Canela satisfez-se, satisfez também a parceira. Então começaram os conselhos, as sugestões, as condições, as quase exigências. Sim, Canela deveria ser castrado. Quanta crueldade! Que involução: de garanhão a capão!   

Canela tornou-se esquivo, taciturno, talvez depressivo. Parecia querer a solidão, pois embrenhava-se mato a dentro. Passavam-se dias sem dele ter-se notícias. Nas temporadas chuvosas, os carrapatos tornavam sua vida bem mais difícil. Remédios, unguentos, vacinas... Mas Canela fazia-se ausente. Ouso dizê-lo ensimesmado; sua introversão lhe bastava; dela se alimentava. Por vezes, ao longe, um breve relincho e nada mais.

O derradeiro desaparecimento preocupou. Por andaria Canela? Teria fugido com sua dor? Teria abandonado tão ricos prados? A várzea é perigosa; cobras por lá transitam. Sim, e foi lá onde o encontramos: a vida o abandonara ... ou teria sido ele a abandonar a vida? Não sei, ainda não me recobrei do desfecho. No poema da canção “Espelho”, o autor João Nogueira confessa: “Troquei de mal com Deus por me levar meu pai”. Não, não trocarei de mal com Deus, mas irei instar para que Ele o guarde em seus prados. Não permita que cavaleiro algum o maltrate. Que Canela conduza o anjo que, enfim, há de nos redimir de todo o mal.


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