segunda-feira, 24 de agosto de 2020

Hominum Immaculatam

 

Percebo à contragosto - espero o mesmo de vós outros - que um dos elementos essenciais à manutenção da vida humana é exatamente a fonte de sua ruína. Sim, falo do oxigênio. Imprescindível à vida humana, mas ... as pessoas oxidam, os organismos experimentam corrupção, degeneração, células se desagregam ... e vem a morte inexorável. A única coisa que posso inferir desse emaranhado de dissabores é que isso prova a pequenez, a limitação do organismo humano. Então, nós, imbuídos do espírito cientificista - não falo em científico - empenhamo-nos em “corrigir essa deformidade” da natureza. E como fazê-lo? Sim, mudemos o DNA; mudemos a estrutura basilar da vida; criemos um substituto: o ser humano 2.01, o ser humano imaculado, inoxidável. E o que seria isso? Obra maravilhosa da engenharia genética mesclada à ciência da informática, ao mundo digital, ao armazenamento de dados.

Eis o ser humano remodelado, reformado, reestruturado, reconstruído. Ao prescindir do oxigênio, a humanidade poderá habitar qualquer outro orbe, qualquer outro planeta, pois a respiração tornou-se obsoleta. Quem diria, heim? Estamos diante da verdadeira ciência, de um novo deus criador (perdoem-me os fanáticos idólatras, mas essa divindade eu grafo em minúsculas). Teremos, então, um ser humano incapaz de experimentar envelhecimento. Enfim a longevidade! 

Contudo, precisamos de uma humanidade próxima da perfeição, longe daquele ser hobbesiano; precisamos do exemplar de Rousseau, alguém bom por natureza; é a sociedade quem os deforma. Mas a sociedade tem suas exigências e prioridades, ela não pode ser definida pelos humanos. Então, a mesma ciência redesenha a psique, torna homogêneo o caráter humano, pois assim ninguém cometerá deslizes, enganos, equívocos; não haverá mais crimes, nenhuma dissenção, nenhuma contenda. 

Nada obstante, permitamo-nos agora um mergulho imaginário neste novo panorama, nesta dimensão eminentemente cientificista; respiremos um pouco dessa atmosfera artificial. O que sentis? Seria a mesma sensação que virtualmente experimento? Sim, isso: o imenso tédio. É onde a perfeição dos protótipos revela a imperfeição sistêmica. E como falar de amor em tal ambiente? De fato, a humanidade tornar-se-ia assaz equilibrada, equânime, com atitudes constantes, estáveis, inalteradas. Mas isso não revela amor; essa igualdade não é apanágio do ser humano. Tornar-nos-emos robôs, “pessoas” previsíveis, programáveis. E onde a apregoada liberdade?

O humano antigo, original, teve a imagem e semelhança de Deus como modelo, seja lá o que isso quer dizer. Qual o referencial do ser humano 2.01? Uma ciência tipicamente humana, sujeita a interesses, à vanglória. Antes mesmo de preocupar-se em proporcionar qualquer bem estar ao próximo, o cientificismo atende à sua imensa vaidade. O Deus dos antigos, através da liberdade, buscava estimular nos homens a autocorreção, para que estes transformassem a sociedade; o deus da pós-modernidade interfere na liberdade humana, remodela seus comportamentos, pois em torná-los seres homogêneos preserva uma sociedade fútil, superficial e desequilibrada.      

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