domingo, 11 de abril de 2021

Mudança no cardápio

 

* A true story or Based on real facts

 

Longe de quaisquer influências e/ou conspurco hollywoodianos, passo a vos relatar, em breve crônica, acontecimento que, apesar de verídico, dir-se-ia inocente e singularíssimo. Contudo, antes de mais nada, devo esboçar grosso modo o cenário em que o referido evento se desenvolveu. Situemo-nos, portanto, bem no início dos anos cinquentas. Trata-se de jovem casal em recente matrimônio. Poderíamos pensar até em algo como uma Lua de Mel, muito embora os nubentes, em face de suas realidades econômicas, dela tiveram que prescindir.

A casinha alugada era modesta; a mobília mínima, de modo a atender apenas o necessário a ambos os circunstantes. O figurino seria básico, emoldurado, talvez, com alguma peça mais chique em face de possíveis momentos festivos das famílias.  A vidinha, apesar de um ou outro obstáculo e pautar-se somente no parco salário recebido pelo rapaz, seguia seu mal traçado curso. E assim, juntos, driblavam embaraços, minimizavam necessidades, postergavam sonhos. O rádio a palrar sobre o balcão da sala lhes servia de refúgio; vez por outra um bolo ou sorvete para mitigar o lugar comum das refeições diárias. Enfim, o dia-a-dia ditava sua própria característica.

Com o passar do tempo, no entanto, a jovem senhora sentiu-se incomodada; ela queria inovar, abandonar aquele marasmo. Mas, como? Os recursos eram poucos, as possibilidades de alternância mínimas. Só lhe restava o metamorfosear dos alimentos. O marido, graças ao bom Deus, perdoava-lhe os pecadilhos cometidos no âmbito gastronômico. Então lhe veio a ideia, nada original, no tocante à sobremesa. Sim, ela faria o doce a partir de uma lata de leite condensado. Em conversa com certa vizinha, soube que poderia cozinhar o conteúdo da lata junto com o feijão preto ainda não temperado, a visar, evidentemente, economia de gás. E assim o fez: juntos na panela de pressão a lata de leite condensado e meio quilo de feijão sem tempero.

A tarde caiu e ela a esperar ansiosa pelo cozimento dos grãos; queria retirar a lata, esperar seu resfriamento e proporcionar ao marido um novo maná: o excelente doce de leite. Após certo tempo desligou o fogo e com um garfo travou a válvula na posição aberta, de modo a extrair toda pressão da panela. Consultou o relógio: o marido não tardava. Decidiu banhar-se. E para aquela ocasião arrumou-se com maior esmero; loções e outros produtos a auxiliar no diferenciado toalete.

Logo o marido fez-se presente; estava cansado, o dia fora puxado. Ao sentar-se, partilhou o sofá com uma mulher refrescante e perfumada. Os afagos costumeiros, os sorrisos de lado a lado, a carícia mais ousada... Ela falava em uma surpresa e o aconselhava a um bom banho. Pois bem, enquanto ele empenhava-se na higiene, em particular a alguma ablução, a mulher voltara à cozinha. Abriu enfim a panela e deixou escapar um gritinho rouco. A lata, com temperatura e pressão elevadas no recipiente durante o cozimento, rompera-se e permitira o vazamento do conteúdo.

Não pretendo ocupar vosso precioso tempo em narrativas que venham a discorrer sobre o óbvio: crises existenciais, ameaças de depressão, desculpas, acusações, agressões ou algo que se lhes assemelhe, afinal trata-se de um casamento, e vós conheceis parte do desfecho. Todavia, fica aqui registrado que, pelo menos por uma semana, o casal - também não interessa se a contragosto - teve que comer feijão preto temperado apenas com leite condensado. Sim, e nunca mais arriscou-se uma mudança no cardápio.    

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