quinta-feira, 31 de janeiro de 2019

Brot-gelehrte



Algumas pessoas, as mais próximas, evidentemente, perguntam-me porque leio e escrevo tanto; porque insisto em publicar meus textos, apesar da patente não aceitação dos mesmos; porque essa dedicação em transmitir aos outros - a grande maioria, senão a quase totalidade - o que não lhes é do menor interesse. Bem, diante de semelhante inquisição eu busco sorrir, mas... A leitura é um vício, algo como o tabagismo ou alcoolismo. A vontade de escrever advém da vontade de partilhar com alguém os conteúdos assimilados nos livros. Quanto à divulgação, muito embora o faça somente através de um blog - e com pseudônimo, porque não pretendo tornar-me celebridade - soa-me como um dever. Alguém como eu, que foi professor, que tinha prazer em preparar aulas, selecionar textos, lê-los e explicá-los a cada aluno se necessário fosse, não pode se convencer que o conhecimento é propriedade sua, que lhe seja algo particular, de íntimo desfrute, como se o conhecimento fosse uma coleção de selos ou algo assim. Não, o professor, o vero dáskalos, aquele que zela de modo consciente pelo seu papel junto à sociedade, não se limita a comparecer às instituições e despejar conteúdos sem o mínimo critério. O lente deve obrigar-se a fazer com que os conteúdos por ele ministrados sejam assimilados, apreendidos. Será que os professores, as pessoas detentoras de expressivo nível cultural conseguem compreender esta enorme responsabilidade? Então, se me revisto de tal responsabilidade, é óbvio que cobro a mesma seriedade e responsabilidade dos alunos. Ah, quantas vezes fui agredido, insultado, vilipendiado! Pasmai, os colegas, também professores, aconselhavam-me a ser mais “flexível”. Não foram poucas as ocasiões em que ouvi frases do tipo: “Eu cumpro com minhas obrigações: ministro as aulas; acompanhem-nas quem quiser”. Ou então: “Não estou aqui para me indispor com aluno; não os reprovo, pois o mercado de trabalho irá fazer a seleção”. Esquecem-se estes que cabe ao professor separar o joio do trigo. 
  
Aqui, mais uma vez, exponho-me a receber um sem número de adjetivos, alcunhas, insinuações, bem como tornar-me alvo de chacota, pois entendo que nós, professores, muito embora o sistema educacional mostre-se cada vez mais medíocre e “adoentado”, devemos ter em mente que o conhecimento e a cultura nos diferenciam dos demais membros da sociedade, não porque somos melhores que eles, mas porque temos que cuidar da formação desta sociedade, a zelar pelos seus membros, nossos iguais, tornando-os melhores cultural e moralmente. Ainda pautado na didática, e na tentativa de embasar meus argumentos, faço uso de um recurso banal: a exemplificação. 
  
Em sua aula inaugural, na Universidade de Jena, em 1789, Friedrich Schiller não poupou críticas ao que ele chamou de Brot-gelehrte, ou seja, o educador que faz da ciência apenas um ganha-pão e da universidade uma escola profissionalizante. Brot significa pão. Contudo, o conceito de gelehrte abriga bem mais que o explicitado, - erudito, culto - pois reporta-se àqueles que visam o sumo bem da humanidade, aos que buscam melhorar a espécie, tornando-a nobre. Estes não objetivam apenas a transmissão de conhecimentos, mas também, nas palavras de Fichte, “à formação do coração para a virtude, formação para o interesse prático na busca pela verdade”. Ora, se o educador trabalha pelo enobrecimento da espécie humana, ele deve mostrar-se e portar-se como cidadão exemplar, isto é, alguém igualmente nobre - von edel Mensch.

A propósito: esta aula foi ministrada tão somente pelo prazer de servir à sociedade!

quarta-feira, 30 de janeiro de 2019

Viva Odorico




Certifico-me, a contragosto, que a vida imita a arte e não o contrário. Sim, e posso prová-lo. Eis a arte em toda a sua originalidade: Em meio a obra de Dias Gomes, dramaturgo brasileiro, há que se destacar a peça de teatro “Odorico, o Bem Amado”, que estreou no Recife em abril de 1969. Odorico, personagem central, caricato do político tipicamente corrupto e demagogo, conseguiu eleger-se prefeito com a promessa de que construiria um cemitério na cidade de Sucupira. E a promessa foi cumprida. Mas o que celebrizou Odorico Paraguaçu - haja vista a criação de versões para a TV e cinema - foram seus discursos repleto de tropeços, de neologismos absurdos; uma verborragia canhestra e divertida. Bem, na inauguração do cemitério, Odorico não poupou fôlego e criatividade para dar espaço a sua retórica vazia.

Eis a vida que imita a arte: Os advogados de Lula solicitaram liberdade para que ele pudesse comparecer ao velório do irmão. Acontece que Lula nunca foi a velório de nenhum de seus irmãos. A oportunidade teria outro foco, pois além dos discursos empolgados que visariam desmoralizar o governo atual e falar mal da Operação Lava-Jato, coisa típica de Odorico Paraguaçu, corria-se o risco de seguidores fanáticos tentarem libertá-lo, pois no Tweeter, Gleise Hoffmann fazia uma convocatória para que seus asseclas de partido se encontrassem no cemitério. O pedido, no entanto, foi negado; a defesa recorreu ao STF que, na pessoa de Dias Toffoli, concedeu o pedido, desde que o apenado pudesse encontrar-se somente com familiares, em repartição militar, longe da imprensa e de correligionários políticos. Lula não aceitou; afinal quem é Odorico, ou melhor, Lula sem seu público desvairado? Mas nem por isso deixemos de nos divertir. Ligai vosso aparelho de TV: neste momento, no cemitério, estão discursando Gleise Hoffmann e Fernando Haddad. Muita embora a ausência de Odorico, isto é, Lula, o teor dos discursos é o mesmo: falácia, logro, embuste, sofisma, insensatez, cinismo, incoerência e uma dose cavalar de estupidez.

Confusões conceituais



Não raramente somos como que enredados em conceitos correlatos, e por consequência, levados a confundir alhos com bugalhos. É o que com frequência acontece no que tange às assertivas que discorrem entre forma de governo, sistema de governo e regime de governo. E então desancamos a democracia. Contudo, a democracia é algo simples de se entender. Vejamos! Regime de governo em que o poder procede, provém do povo, proporcionando a este - ao povo, evidentemente - voz e ação, tendo em vista a criação de leis, bem como a fiscalização no cumprimento das mesmas. Neste regime - a democracia - a escolha de seus representantes pode ser direta ou indireta.

Todavia, faz-se mister reclamar vossa atenção para alguns detalhes: é bem comum, através da educação, os líderes arquitetarem meios para manter o povo sob rédeas. É o que acontece em nosso país, pois parece haver bastante empenho em manter os cidadãos com o status de “analfabetos funcionais”. Na verdade, o país prima pela deseducação, pois que, em nosso caso, a deseducação estaria a serviço do Estado. E o povo acredita-se educado, luta por mais educação, chegando ao ponto de declarar que educação é um direito. Não conseguem perceber que semelhante declaração é fruto de manipulação comportamental. Com isso, o povo perde não só a voz, mas também revela total inação política.

Mas é fácil falar em democracia, bem como usar seu rótulo. Antes da queda do “Muro da Vergonha”, em 1989, a Alemanha Oriental, expropriada e administrada pelo autoritarismo da União Soviética, ostentava o título de República Democrática Alemã. Oportunamente, reclamo vossa atenção para a República Democrática do Congo, que, apesar de ser um dos países mais ricos do continente africano, haja vista suas jazidas minerais, apresentam uma das menores rendas per captas do mundo, graças a questões étnico-político-ideológicas das quais é refém. Portanto, democracia não é sinônimo de desenvolvimento, de bem-aventurança, de fartura, liberdade ou felicidade. Democracia é algo a ser conquistado. Pertinente lembrar aos desavisados, aos que se auto intitulam sociais democratas, que a social democracia teve sua origem dentre os bolcheviques ditos moderados. Em 1889, juntamente com outros partidos proletários de base marxista, tomou parte na Segunda Internacional.

Bem, depois de nos alongarmos um pouco acerca do regime democrático, podemos nos voltar às formas de governo. Somos uma República, a Res Publica latina, a coisa pública ou assunto público, que tem como característica fundamental a subordinação às leis e à Constituição. Na forma republicana de governar, o povo tem o direito e às vezes o dever de escolher seus governantes. Numa república, os governados participam da administração de forma direta ou indireta, a depender, evidentemente, do sistema de governo, que em nosso caso é o presidencialismo. Os governantes escolhidos pelo povo devem administrar o Estado objetivando sempre e unicamente o bem comum. (grifo meu). Eis o principal problema de nosso país: os governantes administram o Estado como se este fosse a própria casa, visando, portanto, o seu bem estar e de seus quejandos. Como há uma Constituição a ser respeitada, valem-se, em geral, do recurso espúrio dos estados totalitários, isto é, de Medidas Provisórias ou Decretos, que, quando encaminhados ao Poder Judiciário, raramente são rejeitados. Que fique bem claro que as artimanhas engendradas entre Executivo, Legislativo e Judiciário não retratam de modo algum a harmonia entre os poderes. O que se revela repulsivo e nauseante é uma patente crise institucional em curso, que ainda não se pode antever o desfecho.

Como nosso sistema é presidencialista, há uma concentração dos cargos de chefe de governo e chefe de Estado, o que não se observa em um sistema parlamentarista. O cargo de presidente é preenchido através do sufrágio universal, pois que todos os cidadãos de determinado Estado, desde que apresentem capacidade legal, podem exercer seu direito de voto, onde se pressupõe o regime democrático. Tanto o sistema presidencialista como a divisão de poderes receberam, no entanto, a partir do Iluminismo, enorme influência do liberalismo, movimento que se colocava contra a tendência absolutista. A proposta é de que o melhor meio para a satisfação dos desejos e necessidades dos seres humanos se dê através da razão, com direito inalienável à ação e realização própria, livre e ilimitada. O liberalismo possui várias faces: político, econômico e social. O problema do liberalismo está em disseminar a ideia de uma ilimitada liberdade, o que conduz fatalmente a um libertarismo. No campo econômico, por exemplo, ficamos impactados em face da terrível desigualdade, pois cada vez mais se aprofunda o problema da má distribuição de renda.

Percebei: os desmandos em nosso país não estão diretamente ligados à democracia, mas sim ao republicanismo. A forma de governo republicana apresentada pelo Brasil é nociva, pois não cumpre sua principal missão que é de propiciar o bem comum. Como não observa os interesses de seus governados, acaba, consequentemente, por degradar o regime democrático. Na verdade, sob melhor análise, poderemos perceber que, em função dos desmandos e da perversão republicana exercida por um sistema presidencialista finório e tremebundo, torna-se ínvio o desfrutar da democracia. E o que temos, então? Infelizmente uma oligarquia, seja ela partidária ou hereditária.  

terça-feira, 29 de janeiro de 2019

Conveniente



Alguns conceitos, por se mostrarem amplos, acabam por transcender o entendimento humano. O conceito de liberdade é exemplo disso. Uma singela definição, não um conceito, nos diz que liberdade é o direito de agir de acordo como nosso entendimento, contanto que esse direito não interfira e avilte o direito de outrem. Nada obstante, se temos o direito de proceder de acordo com nossa intelecção, por que a preocupação com o direito do outro? Afinal, o simples fato de não poder agir em conformidade com nossa razão para não ferir o direito de outrem, fere nossa liberdade. Em verdade, por se tratar de um direito, estamos na presença de regras, normas, leis. Ora, mas as leis tem por finalidade por limites à liberdade. Nesse caso, a liberdade assimila a condição de dever e não mais um direito. Eis um primeiro obstáculo em face da amplidão do conceito.

No entanto, gozar de liberdade é ser livre? Enfim: o que é ser livre? Ora, ser livre é poder dispor de si, é propor-se, é resolver-se, é resignar-se. Nesse caso, podemos nos sentir livres sem dispormos de nós mesmos. Percebei, ser livre é um sentir. Ser livre não é um direito, mas sim uma condição, uma circunstância, uma autodeterminação, algo de foro íntimo; sentir-se livre estaria vinculado a um eu idiossincrásico. Segundo Johann Gottlieb Fichte, “Livre é somente aquele que quer tornar livre tudo à sua volta...” A sabedoria estoica diz-nos que apesar de escravizados, os cidadãos podem sentir-se livres. O sentir-se livre independe da liberdade, pois que liberdade é conduta social. “Todo aquele que se considera um senhor de outros é ele mesmo um escravo”. A liberdade deve e tem que passar pelo controle social para que não culmine no absoluto, no libertário, no anarquismo.

Nossa sociedade, todavia, busca incessantemente por liberdade. Por que as pessoas clamam tanto por liberdade? A busca por conceitos, entretanto, não responde o porquê dessa demanda quase doentia. Atentai para um pequeníssimo detalhe: não são pessoas escravizadas que bradam por liberdade (a referência à escravidão na presente oração é metafórica). Os mais exaltados em semelhantes expostulações são pessoas, em geral, que desfrutam de todo um aparelhamento jurídico, construído exatamente para lhes dar garantias e estabelecer direitos. Então, por que? O que faz com que cidadãos, das mais variadas orientações políticas, religiosas, culturais, das mais díspares classe sociais revelem-se obsessivos vindicadores da liberdade?

Como agravante, a liberdade pretendida desconhece qualquer responsabilidade e parece querer transpor até mesmo o anarquismo, isto porque, em geral, é confundida com imunidades e regalias. Nossa sociedade, graças a um insensato messianismo jurídico, aliado a discursos escamoteados por irritante retórica e a afronta de uma sofística, já prescinde de regras e adentra o orbe da libertinagem. Sim, nosso comportamento social é totalmente desregrado; o povo mostra-se como dissoluto, devasso, licencioso, indisciplinado, negligente e imorigerado.

A que se deve, então, a origem de semelhante tropelia? Bem, poder-se-ia aventar a hipótese de um discurso bem construído, como tantos outros, com o fito de manipular comportamentos, algo bem presente em nossa realidade. Mas a coisa transcende qualquer circunstância particular; não é um aqui, um acolá, um algures; é um todo, uma preocupação quase universalizada. Bem, então a resposta deve estar no próprio ser humano e nas relações que ele estabelece com as circunstâncias. Porém, deve-se ter em mente que as circunstâncias não podem ser entendidas como algo regionalizado, compartimentado; deve ser uma ou mais circunstâncias que se revelem de modo generalizado; algo comum a todo ser humano.

Doravante, então, tornar-nos-emos reféns de uma espécie de antropologia filosófica. Sim, isto porque agora devemos analisar os seres humanos em seus aspectos mais significativos. Por que seres humanos, apesar do amparo das leis que consolidam suas liberdades sociais - até porque liberdade é apenas uma possibilidade social, afinal, como usufruir da liberdade fora do contexto social? - continuam a instar pelo já conquistado, pleiteando, desse modo, não mais a liberdade, mas o libertário, o anárquico, o que pugna por ideais que destruiriam a sociedade mesma? Ora, a destruição da sociedade implicaria, pelo menos, no avilte, no envilecimento, no ultraje à própria liberdade. Alceu Amoroso Lima, fazendo uso de uma metáfora, diz-nos que essa liberdade ilimitada seria a liberdade da raposa no galinheiro, pois ao não conhecer limites a liberdade volta-se contra si mesma. 

Percebei, a liberdade é buscada não por carência, mas para suprir uma outra carência qualquer. E mais uma vez recorremos a Fichte; “Ainda não amadurecemos para o sentimento de nossa liberdade e autoatividade...” Seres humanos bradam por liberdade porque se reconhecem obscuros, limitados, levianos. Há necessidade premente de uma justificativa. A angústia e a aflição presentes na má consciência criam como que um mecanismo escapista. Seres humanos transferem à pseudo e simulada falta de liberdade a responsabilidade para seus desmandos. Eles tentam fazer de suas limitações alguma coisa admirável - para isso fazem uso da arte - pois que conscientemente reconhecem suas maldades, suas fraquezas, suas torpezas. Seres humanos querem liberdade para melhor disfarçarem suas baixezas. Tende cautela: a busca obsessiva por ilimitada liberdade, já que usada para suprir uma carência, é pura desfaçatez.  

segunda-feira, 28 de janeiro de 2019

Taedio passion



Ao me voltar para a questão do tédio - essa sensação de desprazer e até de repugnância, o desgosto inexplicável, o enfado contagioso - percebo que ele é originado em expectativas criadas no dia-a-dia, seja através do abandono da religiosidade, seja com a renúncia ao poder do inconsciente, seja com o fomento imoderado num já contestado racionalismo, ou pela fé inabalável na tecnologia. Percebei, cada um destes elementos ou mesmo a reunião de todos afeta, e de modo contundente, o desempenho, a potencialidade criadora do ser humano. Seres humanos necessitam viver suas energias e potencialidades criativas ao máximo. Quando tal não acontece, tem-se o surgimento do tédio. Então o ser humano experimenta o padecimento advindo de algo insólito, desconhecido. O ser humano quer viver em ato e não em potência. Com efeito, o ser humano sente a dor causada por uma imposta potencialidade, o que tende a provocar, portanto, a inutilidade de seu talento.  
  
Quanto maior as expectativas, maior o tédio. As aptidões ficam como que num limbo. Pessoas prendadas e criativas - falo de uma criatividade ímpar e original - que demonstram inumeráveis aptidões, abundância de ideias e invenções, em geral, em face dos elementos elencados, sentem-se reclusos, exilados; vivem em verdadeiro ostracismo. Todavia, mesmo diante das adversidades impostas pela caótica ordem social, eles tentam superar tais excessos, e como ferramenta valem-se da imaginação. Então acontece a diversificação na criação; uma criação alternativa, mas imensamente elevada, sublime. Estai atentos: a arte, a filosofia, o honroso pensar sobrevivem fora da sociedade. Dentro do desbunde social, o que se vê, de fato, é apenas sórdido refinamento, falsas realizações e aparente solidão. Isto porque a solidão mesma é fruto da imaginação que cria o recurso da sensatez. O sensato decreta seu auto insulamento e faz da solidão algo fecundo. A solidão propicia o pensar, estimula o criar e provoca o agir.

Não obstante, o tédio ainda estará presente. Todavia, revelar-se-á como criatividade latente. O tédio, portanto, quando em ebulição, quando em efervescência e exaltação, deve culminar em paixão. Para que o tédio não se nos torne prejudicial, causando-nos estupidez, perversão, mesquinharia, ele deve implicar paixão. Logo, a paixão mostrar-se-á como criadora. O que produz é paixão, é estar em ato. Não sei, talvez seja precoce afirmar agora, mas o tédio revela-se-me como fonte indireta do processo criativo. Sim, a paixão exterioriza apenas o que teve origem no tédio. Grandes obras, grandes músicas, grandes pensamentos se fizeram conhecidos por conta da paixão.

Em síntese, o que temos? O tédio se nos invade, o que pressupõe solidão e lança nossas aptidões numa espécie de limbo não escatológico. Para não nos deixarmos abater pelo tédio, devemos dar azo à imaginação, onde aflorará um poder criador diversificado. Neste passo, pode-se compreender porque seres humanos diferenciados buscam a solidão, pois a solidão mostra-se sensata em face de uma implacável imaginação. Portanto, prenhes de imaginação, enleados em ideias que buscam frutificar-se, que instam por ação, tornamo-nos servos de uma paixão criadora.

Fiat Lux!

segunda-feira, 14 de janeiro de 2019

Felicidade



Evidentemente, uma das maiores preocupações dos seres humanos é alcançar a felicidade. Mas a felicidade, em si, seria uma meta, ou um simples estágio para se chegar ao objetivo intentado? Parece-me que a felicidade é o objeto final. No entanto, e já nos alertara o grande Aristóteles, as pessoas confundem a felicidade com os meios para atingi-la. A felicidade é algo único, concebida como bem supremo; os meios para alcançá-la é que variam de acordo com os desejos, volições e valores de cada ser humano. Alguém entende que ser feliz é possuir bens materiais; na verdade, os bens materiais seriam um meio para este alguém alcançar ou pensar ter alcançado a exigida felicidade. Aqueloutro entende que a felicidade está na riqueza; contudo a riqueza é somente um meio para que ele declare ter atingido a felicidade.

Nada obstante, voltemo-nos para a etimologia da palavra, o que nos remete ao termo grego eudaimonia. Eu, no idioma grego significa bem, bom, boa; daimon seria o espírito. Em resumo, eudaimonia, felicidade é estar acompanhado por um bom espírito, por um espírito do bem. Neste caso, fazem-se necessários alguns esclarecimentos: a) que o espírito de que falavam os gregos em nada se assemelha ao espírito, alma ou anjo da guarda presentes na religião judaico-cristã. b) a palavra daimon, que mais tarde adquiriu uma conotação negativa, originou o termo demônio, igualmente presente no religião judaico-cristã.

Mas voltemo-nos à felicidade. Mesmo antes de Aristóteles, Pitágoras já aliava a felicidade ao conhecimento, ao aprendizado, isto é, àquilo que nos importa e nos leva à perfeição pessoal. Observemos, portanto, tal assertiva. Se a riqueza, ou a honra, ou o prazer for, de fato, origens da felicidade, pergunta-se: um ser humano coberto de joias ou proprietário de muitos bens, mas vítima de doença terminal dir-se-á feliz? Evidente que não. Logo, a felicidade não está na riqueza, nem em honras ou prazeres. Ora, então como alcançá-la? Através de bens que não sejam nem revelem efemeridade. Enfim, voltamo-nos ao conhecimento, pois que este, depois de adquirido, torna-se bem inalienável. O conhecimento conduz à busca da perfeição, e quando a perfeição pessoal é enfim alcançada, contemplada, o ser humano acaba por experienciar a felicidade.  A felicidade, portanto, assimila a condição de Soberano Bem. O saber seria a conditio sine qua non para atingir-se o mais alto bem; a verdade, o valor supremo.  

No entanto, hodiernamente, com a ajuda da ciência e da tecnologia, as pessoas são levadas a confundir o soberano bem com o bem-estar. Ciência e técnica se esforçam em realizar constante manutenção nesse bem-estar, provocando, evidentemente, um abrandamento, uma deterioração, um depauperar da consciência mesma, e, destarte, um apequenar, um recrudescer da atividade cognitiva. Contudo, as pessoas ainda se declaram felizes; felizes não por ter, não por conquistar. As pessoas se importam com as conquistas efêmeras; elas desejam o agora, o minuto de fama, o amor feito às pressas, as relações passageiras, o selfie que lhes emprestam notoriedade. E o mais alarmante: as pessoas não querem mudanças, pelo menos por ora, pois que a mudança ameaçaria esta pseudo estabilidade - felicidade. A própria ciência, quando propõe transformações radicais, é encarada como inimiga em potencial.

Então vós me perguntais: e como fazer para conquistar a verdadeira felicidade? Simples, façamos o que não mais é tido como “normal”; façamos o que é démodé, o que é antiquado, o que é vintage. Dediquemo-nos à leitura, aos estudos, à compreensão, ao conhecimento. Resgatemos a verdade que há muito foi relativizada. Reconciliemo-nos com os valores hoje transvalorados. Aliado a isso, evoquemos a fé, pois que a fé fará com que a divindade emerja de nossa alma e não permita que tudo se nos esvaia, que o conquistado nos seja arrebatado. Deus garantirá que não mais desfrutemos de uma existência puramente material, mas sim de uma realidade eterna, absoluta e, é óbvio, ornada de felicidade. Desfrutemos, portanto, da vera Eudaimonia!

quinta-feira, 10 de janeiro de 2019

Bondade e Racionalidade Humanas


Não sei se por imensa pretensão ou por lamentável ingenuidade, os seres humanos criaram e se vincularam a estereótipos com os quais não se identificam. Há, com certeza, uma espécie de conflito interior em cada ser humano na tentativa de atingir esses “status” idealizados. Mas esta tem sido, até o momento, uma luta inglória. Na verdade, estes estereótipos revelam-se simplesmente como preconceitos, isto porque carecem de qualquer fundamento sério ou imparcial. E, como corolário destes inconsequentes estereótipos, temos a agravante criação de axiomas.  

Identificamos de início a tão falada racionalidade. Somos, de fato, racionais? Se o fôssemos, ficariam banidos todos os assomos de passionalidade, todo e qualquer verniz social; haveria um esvaziamento de emoções, sentimentos ou o que quer que se lhes assemelha. Enfim, se tal acontecesse, já não seríamos considerados seres humanos. Os atores sociais buscam adaptarem-se às imposições da racionalidade, mas não o conseguem efetivamente. A racionalidade tornou-se apenas um título a ser ostentado sem a menor relação com sua efetividade. Todavia, carregamos o fardo existencial de nos mostrar como seres racionais.

Um segundo engodo na natureza humana, e, consequentemente seu respectivo axioma, parte do equívoco de que os seres humanos são naturalmente bons. Jean-Jacques Rousseau foi muito infeliz em fazer semelhante declaração. E não foi a vida em sociedade que despertou semelhantes impulsos; ela apenas os potencializou. Ora, se os seres humanos têm uma bondade inata, eu vos pergunto: por que leis, religiões, governos, normas morais? Por que tanta guerra? Bem, aqui poder-se-ia argumentar que a tal bondade inata é apenas uma generalização, pois existem exceções. Sim, por certo, contudo me parece que as exceções revelam-se como regras. E mais uma vez os seres humanos lutam para manifestar um estereótipo que dista sobremaneira de seu arcabouço puramente animal, de sua característica intrínseca, isto é, o egoísmo A partir desta irresponsável teoria tem-se a criação de utopias. Sim, porque qualquer projeto que entenda os seres humanos como seres de boa vontade, equilibrados, imparciais, justos, honestos, altruístas, etc., estaria atrelado a expectativa de um dever-ser, uma utopia irrealizável. Eis o fracasso do projeto humano.

Racionalidade e bondade como características de seres humanos são delírios que, em si mesmos, revelam os torpes mecanismos de uma passionalidade exacerbada. A bondade é apenas recurso sofístico para produzir resultados que possibilitem maior poder àqueles que se dizem possuidores de racionalidade. 

quarta-feira, 9 de janeiro de 2019

O fato, o não-fato e a verdade



Diz-nos o bom senso que toda proposta de conhecer um objeto qualquer em detalhes deve ser precedida de investigação conceitual. Tal investigação, neste caso, distanciada do preciosismo, volta-se, a princípio, para a etimologia, sempre no interesse de desvelar e, por conseguinte, apreender o objeto mesmo. O verbete “fato” tem origem no termo latino facto, e pode ter como significado: coisa ou ação feita, um acontecimento, um feito, aquilo que realmente existe, o real.
No entanto, até porque vivemos em outro Zeitgeist, deparamo-nos com a óbvia dificuldade em vincular o fato ao real ou a uma existência real. Para evitar perguntas do tipo: o que é real ou o que é existência real e nos perdermos numa estéril discussão filosófica, resumiremos que o real ou a existência real de um fato está vinculado à sua comprovação. Por outro lado, acontecimentos, feitos ou ações parecem refletir costumes, tradições, sentimentos, algo que se vincula diretamente às criações históricas de determinado povo. É o que chamamos de fato social. E qualquer sociedade, destarte, não poderá mostrar-se alheia a seus fatos sociais. Contudo, ocupemo-nos, nesta oportunidade, do fato enquanto ação, acontecimento, um feito. Isso nos remete ao fato como fenômeno. A palavra fenômeno, originário do termo grego phainómenon, significa o que aparece, o que é passível de observação, descrição ou explicação; aquilo que estimula nossos sentidos e manifesta-se à consciência cognitiva.
Não obstante, seria sobremodo ingênuo afirmar que ao observar um fenômeno, - o que aparece - na tentativa de descrevê-lo e explicá-lo o fazemos despidos de crenças, valores, interesses, ideologias, etc. Pelo contrário, quando relatamos um fato, amiúde o fazemos de modo interpretativo. Neste caso, portanto, já não temos a narrativa do fato, mas a interpretação do fato; algo bem particularizado, manifestamente subjetivo. Ora, a visão particularizada de um fato já destoa do fato, já não mais se trata do fato. Então surge o não-fato, e que não raramente opõe-se ao fato. Corroborando nossa assertiva, citamos Jean Piaget, abnegado pesquisador da epistemologia genética: “O fato puro é inexistente”. A inexistência do fato deve ser entendida como a dificuldade de relatá-lo na sua integralidade.
O fato só pode ser descrito enquanto fenômeno, pois na condição de pureza sempre será inenarrável. Friedrich Nietzsche nos dizia que “o que há são interpretações de fatos”. O fato-em-si não só não é transmissível, como também não é descritível. Faz-se importante apontar que a intransmissibilidade do fato dá-se não por se tratar de um noumeno, segundo a diferenciação estabelecida por Kant em sua epistemologia, mas pela dificuldade em não se deixar de vincular ao fato algo de subjetivo. O fato é apreensível, mas não transmissível em sua limpidez. No entanto, as pessoas esforçam-se por narrar fatos, acontecimentos. E como observamos, ao fazê-lo, as pessoas o submetem às suas ópticas particulares, ou seja, o fazem segundo suas crenças, valores, princípios, o que implica distanciamento do fato mesmo.
Bem, e o que dizer da condição do ouvinte? Na verdade, o ouvinte apreende apenas interpretações do mesmo fato. Atenção: não há diferença em relação à interpretação de um texto, pois que nas interpretações estão presentes enormes cargas valorativas. E essas valorações dão origem às convicções. Mas como crer na narrativa de outrem, já que tal narrativa tem por base apenas uma convicção particular? O que se pode entender por convicção? Tendo como ponto de partida o termo latino convictio, percebe-se que o mesmo manifesta certa polissemia. A título de esclarecimento, o verbete pode ser entendido como comprometimento, cumplicidade, certeza obtida através de razões ou fatos indubitáveis e inobjetáveis; mostra-se como uma opinião obstinada, uma crença, pois que se baseia em provas ou motivos particulares, ou ainda fruto do convencimento, da persuasão. Importante frisar que o vocábulo tem por sinônimo os termos crença ou fé.
O que fazer, portanto, quando nos vimos presas na condição de ouvintes em uma acirrada polêmica entre partes? quando não temos, ou não tivemos acesso aos fatos e/ou razões que possam nos criar uma certeza indubitável ou inobjetável? Algum leitor mais imprudente poderia apelar para algo do tipo a Navalha de Ockham, mas não estamos a discorrer sobre teorias científicas. Então, ou nos permitimos cooptar por um dos lados da polêmica ou estabelecemos uma nova crença - fé - acerca do mesmo assunto, para assim criarmos nossa convicção particularizada. Enquanto as narrativas restringirem-se ao senso comum, sustentadas pelo adágio popular de que “cada um é dono de sua verdade”, por certo não irromperão consequências maiores. Mas, perguntamo-nos: e a verdade dos fatos? Esta, a verdade, ... permanecerá inacessível, apesar das diferentes convicções, pois o fato mesmo mostrar-se-á, irremediavelmente, como inefável.

terça-feira, 8 de janeiro de 2019

Adjetivos



Ao dedicar-me à procedência da linguagem, tendo como aporte o pensamento de Giambattista Vico, pensamento este expresso em La Scienza Nuova, identifiquei três momentos distintos que, segundo o filósofo, acompanharam o surgimento e evolução da linguagem. São eles: 1 - aquela utilizada pelos deuses, ou seja, uma linguagem muda, gestual, concebida por hieróglifos; 2 - a dos heróis: uma linguagem simbólica, pois que os símbolos tinham então primazia; 3 - a linguagem dos seres humanos, isto é, uma linguagem articulada, poética, até porque, de início, era estruturada em versos jâmbicos. A constituição desta última, linguagem articulada, teve início com as interjeições, isso em face do espanto diante do desconhecido. Em seguida vieram os pronomes, onde pode-se imaginar o surgimento do princípio de individuação. Depois vieram as preposições, ou seja, o posicionamento destes mesmos indivíduos, as suas localizações em face do ambiente. Em seguida os nomes, os substantivos, algo como uma imitação dos fenômenos da natureza e dos sons emitidos pelos animais; na verdade uma onomatopeia. Bem, e por fim surgiram os verbos, isto é, a descrição das ações praticadas.

É notório, contudo, que nossa linguagem, a humana, mesmo que bem articulada, percebeu-se ainda limitada. Para superar tal carência, optou-se por fazer uso do recurso das metáforas: uma herança óbvia da fase precedente, a simbólica. Não obstante, perguntamo-nos pelos adjetivos. Sim, os adjetivos não foram observados por Vico, visto que os primeiros escritos não faziam uso de adjetivos; havia sim, e de modo abundante, o emprego de metáforas. Para confirmar tal assertiva, observemos o Livro dos Mortos do Antigo Egito, um dos livros mais antigos, senão o mais antigo da humanidade; neste é patente a ausência de adjetivos. Na filosofia pré-socrática pode-se perceber a quase ausência dos mesmos. Nos escritos bíblicos, independente se no Antigo ou Novo Testamento, o fenômeno está presente. Para embasar meu arrazoado transcrevo aqui apenas os dois primeiros versículos do Salmo 18. “Eu te amarei, ó Senhor, fortaleza minha. O Senhor é o meu rochedo, o meu lugar forte, e o meu libertador; o meu Deus, a minha fortaleza, em quem confio; o meu escudo, a força da minha salvação e o meu alto refúgio”.

De início podemos perceber que, na maioria das vezes, o termo usado é Senhor e não Deus, isto porque a palavra Deus, originalmente constituída apenas por consoantes -YHWH - não deveria ser pronunciada. Judeus que professam a ortodoxia religiosa são proibidos de proferir o nome de Deus. Aqui podemos identificar a linguagem dos deuses apontada por Vico, isto é, uma linguagem muda, gestual, restrita a hieróglifos. A palavra usada então pelos religiosos era Adonai, Senhor. Contudo, o termo Adonai exige algo que o diferencie e exalte, um adjetivo. Deparamo-nos então com Elohim, um plural adjetivo de dois gêneros da palavra Eloah, um plural majestático ou de excelência. Elohim é adjetivo que se refere somente a Deus.

A dar continuidade na observância dos versículos do Salmo 18, podemos entender que chamar o Senhor de fortaleza, rochedo, lugar forte, libertador, escudo e alto refúgio seria uma tentativa de expor e exaltar suas qualidades, as qualidades de Deus, o que não deixa de ser uma tentativa de antropomorfizar o que é desconhecido e sobre o qual não se deve falar. Em todo o Antigo Testamento, sem exceção, faz-se inequívoca a quase total ausência de adjetivos; as metáforas, por outro lado, são abundantes. Todavia, não podemos deixar de assinalar que os adjetivos começam a se insinuar nos textos do Novo Testamento, prova disto está no evangelho de Matheus, no conhecido “Sermão da Montanha”. No Corão, escrito por volta de 632 d. C., pode-se observar de modo claro que a quase totalidade das Suras inicia por: “Senhor Clemente e Misericordioso”, ou seja, o adjetivo usado como louvor. Parece elucidativo que a presença dos adjetivos faz-se necessária quando é premente não só colocar em relevância os atributos divinos, bem como ressaltar a inferioridade, a má índole, a ausência de virtudes naqueles considerados êmulos à divindade.

Nada obstante, as línguas, de um modo geral, "evoluíram" e as metáforas começaram a experimentar certa resistência, até porque o uso de uma palavra em sentido incomum, tendo por base apenas certa relação de semelhança revela-se como algo de extrema complexidade. Afinal existem metáforas e metáforas. Todavia, o filólogo Nietzsche entendia a metáfora como excelente recurso comunicacional, haja vista as limitações inerentes a qualquer linguagem. Entretanto, mesmo em face deste embate filológico, o uso de adjetivos experimentou algo próximo do apogeu. Considerai pois o sintoma. É evidente o fato de que algumas línguas se valem do recurso das locuções adjetivas; outras ainda, com a ajuda de artigos definidos, substantivam os adjetivos.

Bem, a deixar de lado a parte histórica no que tange ao uso dos adjetivos, surpreendemo-nos sobremodo com a utilização desta ferramenta linguística nos dias atuais. Longe de qualquer tom de jocosidade, eu poderia dizer que o adjetivo tornou-se indispensável para a comunicação no mundo hodierno; seria uma espécie de ingrediente, sem o qual a comunicação seria impossível; o oxigênio, o insumo fundamental à vida das relações. Por que? A pergunta revela-se preponderante. Tanto no coloquial, como nos relatos jornalísticos, literários e acadêmicos, é inequívoca a quantidade de adjetivos empregados no que se refere a pessoas. No entanto, e infelizmente, a carga de adjetivação posta em prática volta-se para dar vulto às inferioridades, às críticas, aos achismos, aos ressentimentos; instrumento recursório para disseminar ódio, rancor, criar desafetos e insinuar inverdades. Enfim, para que a patente subutilização dos adjetivos? Infelizmente, estas palavras - os adjetivos - mostram-se apenas como ferramenta na distribuição de títulos, de rótulos, de dísticos.

segunda-feira, 7 de janeiro de 2019

The sunday afternoon fever




Eu fora convidado para o churrasco daquela tarde de domingo. Parece-me que comemorava-se o aniversário de alguém. Ou seria um “bota fora”? Mas a domingueira prometia, haja vista a cerveja gelada, que apesar de ostentar o subtítulo de “o sabor de Amsterdam”, não faz da capital holandesa uma referência, principalmente no que tange à higiene. Mas podia-se degustar certa cachaça de primeira linha, uísques que, em termos de idade, variavam da pré-adolescência a maioridade penal. Isso sem contar com as carnes, petiscos variados, pastas, saladas, caldos, etc.

Um detalhe, no entanto, se me fugira a atenção - aqui faço uma espécie de “mea culpa”: o festim reunia somente comensais de esquerda. E eu lá, perdido, inocente, cândido, a divagar em meio ao lauto banquete. A descoberta de que eu partilhava do repasto com a glutonaria da “esquerda caviar”, deu-se de modo atípico. Sim, a atipicidade é o que faz com que uma narrativa mostre-se agradável, já que a tipicidade remonta ao cotidiano.

Mas não percamos mais tempo; vamos ao inusitado: sobre a mesa monástica - talvez em função da flagrante e bizarra relação entre esquerda e catolicismo - jazia uma daquelas pequenas e potentes caixas de som. Ora, para que a música fornecesse um pano de fundo ao glamoroso festejo, bastaria que qualquer aparelho celular, evidentemente com sinal de internet e dispositivo Bluetooth, se conectasse ao aplicativo Youtube. E foi com esse espírito que aproximei-me de uma das moças presentes. Não obstante, eu me recomendava extrema cautela para que a abordagem não fosse interpretada como assédio. Felizmente, a demonstrar bom senso, a jovem revelou-se prestimosa ao pegar no próprio aparelho e o manusear, de modo a torná-lo apto a fornecer o fundo musical. Feito isso, consultou-me acerca do que eu gostaria de ouvir, já que não dispunha de uma play list. Então eu manifestei meu desejo dizendo o título da canção, bem como o respectivo autor. Com um sorriso contrafeito, a moça segredou-me: – “Esse compositor não é bem-vindo, e não seria pertinente neste momento”. Surpreso, eu ainda a questionei: – “Por que? É por se tratar de um samba?” Ela sorriu um daqueles sorrisos que as mamães disponibilizam quando compreendem e perdoam as falhas dos seus rebentos, o que fez com que eu me sentisse um verdadeiro idiota, para atalhar: – “Não, é porque este autor tem manifestado o pensamento da direita”.

Bem, eu sei que tal postura não merece comentários, todavia, do alto da minha cabal ingenuidade, arrisco-me: Vivendo e aprendendo! Eu não sabia que a arte em si abriga ideologias.      

sábado, 5 de janeiro de 2019

Inferno carnavalesco



Inicio este breve texto tendo por base o relato de alguém que tinha sérios problemas em relação à religião, conquanto mantivesse postura irretocável. Machado de Assis, em seu leito de morte, recebera a visita de um amigo, que bastante preocupado com o quadro que se agravava celeremente, perguntou-lhe: “Posso chamar o padre?” Machado de Assis procurou esboçar um sorriso e respondeu: “Não seria coerente!”.

Bem, eu, mutatis mutandis, confesso que também tenho alguns problemas com as religiões. Não, eu nunca vi Jesus Cristo subir em qualquer goiabeira, mas o que se me torna incômodo é o fato de que, se algum representante da esquerda visse uma fada cheirando pó ou um duende apertando um baseado, encarariam tudo com a maior naturalidade. Meu Deus, o que a esquerda não faz! Imaginai: Manuela D’ávila assistindo missa, Fernando Haddad em busca de apoio dos evangélicos, Chico Buarque em conversa com o Papa Francisco. O que seria isso? Desespero, achincalhe, insensatez, cinismo ou incoerência?

Em face do exposto, devo lhes confessar que acredito não em Destino, não em Paraíso, mas em Inferno; um propósito, um inferno protocolar. Afinal, como sobreviver a tamanho descaramento como este que nos foi imposto pela esquerda? O que ainda pretendem do povo e da nação brasileira? Já desacreditaram a religião, já banalizaram a educação, a violência, institucionalizaram a corrupção, promoveram a transvaloração dos valores. O que falta? Querem extinguir a família, a base de toda sociedade? Para que? Para em meio a todo caos social, retomarem o discurso apologético em prol das inventadas minorias, das “vítimas”, dos direitos humanos? Atentai! E tudo com base na retórica que declara contemplar a democracia. Estúrdia democracia!

Bem - aqui me perdoem os mais otimistas - em se tratando de algo bem brasileiro, povo já tradicionalmente irresponsável, extremamente permissivo, afeito ao ócio e a lascívia, bom de ritmo, de futebol, farto em sorrisos e descaramentos, falta-me somente acrescentar um predicativo ao nosso Orco particular: Inferno Carnavalesco!    

sexta-feira, 4 de janeiro de 2019

Moral da história



Prezados, descobri, e de modo casual, a origem de grande parte de nossa desdita social. Tal descoberta originou-se de uma singular lembrança. Eu, desde tenra idade, sempre tive grande admiração pela arte, independentemente de sua expressão. Como a educação de então primava também por estimular os discentes no cultivo às artes, minha professora, Dona Filhinha (naquela época ninguém ousava chamar professora de “tia”) nos levava a contemplar algumas de suas reproduções artísticas. Pois bem, contava eu com uns doze ou treze anos - este detalhe não é relevante - quando, certa vez, atrasei-me para o almoço em casa com minha mãe, irmãos e irmãs - papai estava sempre ausente, pois necessitava muito trabalhar para sustentar toda aquela gente.

Em meio à tarde sonolenta retornei ao lar revelando ainda certa condição de êxtase. Sim, meus gestos eram largos, amplos; meu sorriso algo encantador; minha disposição era a melhor; meu olhar cintilava febricitante. Foi nesse estado que mamãe me arguiu: – “Onde estavas?” Creio que meu sorriso ampliou-se para responder: – “Na casa de Dona Filhinha”. E a próxima pergunta sugeriu-me certa desconfiança: – “A fazer o quê?” Meu olhar deve ter-se revelado mais brilhante. Respondi, ainda enlevado: – “Estava a conhecer a pinacoteca da professora”.

O grito de minha mãe arrancou-me do encantamento; fora o grito de uma fera acuada e ferida, algo inumano, assustador, caótico, inexplicável. Fiquei atoleimado, atônito. Ao estrídulo grito seguiu-se o convulsivo choro mesclado a palavras pronunciadas de modo grotesco. Pouco pude perceber do que era dito, mas ocorreu-me interrogação, afirmação e negação expressas de modo conjunto. E tudo terminava com: “Pinacoteca”. Agarrou-me pelos ombros, sacudiu-me e gritou: – “Como podes deixar-te seduzir por essa Messalina? Tu não tens idade para desfrutar de pinacotecas!” O choro calou-lhe a voz por instantes. Eu mantinha-me aparvalhado, afinal, conhecer e desfrutar da pinacoteca de Dona Filhinha só me trouxera prazer. Sim, e os alunos que também o fizeram sentiram-se igualmente realizados. Eu não conseguia entender o que se passava. Mamãe, olhos vermelhos, semblante contraído, expressão transtornada, decretou: – “Seu pai vai saber disso e eu vou exigir que ele tome providências”.

Mamãe deixou-me só e entregue a um sem número de dúvidas. Eu me perguntava o que havia de errado em se admirar obras de arte. Eram apenas reproduções de Monet, Degas, Vermeer, Rembrandt, Van Gogh, Manet, Rafael, Cézanne, Toulouse-Lautrec, Gauguin... Será que o problema estaria na “Origem do Mundo” de Gustave Courbet? No “Pensador” de Rodin?  Na “Psiqué reanimada pelo beijo de amor” de Canova ou no nu do “Escravo” de Michelangelo? E imerso em dúvidas fui chamado a presença de meu pai, que depois de ouvir a versão de mamãe, submeteu-me a novo interrogatório. Sua primeira pergunta: – “Foi teu primeiro contato com a pinacoteca da professora?” Sim, eu respondi. A segunda pergunta pareceu-me impregnada mais de curiosidade do que de preocupação ou especulação: – “Gostaste da experiência?” Desta feita permiti-me alongar um pouco a resposta: – “Sim, adorei. A pinacoteca proporcionou-me um grande prazer; algo até então desconhecido. Todos os meus colegas também adoraram a experiência”. Papai tentou dissimular um sorriso e mandou-me sair.

Eu pensei que o mal entendido estava superado, mas me enganara. Mamãe e outras mães se uniram e exigiram que os pais denunciassem a professora. Dona Filhinha teve mandado de prisão preventiva expedido pela autoridade competente. Em sua casa foi realizada busca e apreensão, muito embora os agentes não soubessem o que apreender. Os jornais desancaram a pobre docente, humilharam-na e a cumularam de adjetivos. Seu pedido de habeas corpus foi negado; mantiveram-na presa como uma delinquente qualquer. As mães em uníssono acusavam-na de perversão. Os filhos, por sua vez, nada entendiam e acabavam por repetir o que lhes era imposto pelos pais. Dona Filhinha foi condenada, e mesmo sem trânsito em julgado começou a cumprir pena. A docente apoiadora da arte experimentou o escárnio e o desprezo da sociedade. Nos dias de hoje dir-se-ia estar no mesmo nível de um João de Deus.

Quando um advogado bem intencionado e isento de pré-juízos - coisa rara no mundo jurídico - assumiu o caso da professorinha, propondo-se inclusive a trabalhar pro bono, questionou a materialidade das provas e insistiu para que as crianças fossem ouvidas. Então ruíram todos os argumentos acusatórios e as “evidências” ditas circunstanciais. Dona Filhinha foi posta em liberdade, mas resolveu abdicar da docência. Internou-se na humilde casinha em companhia somente de suas reproduções artísticas, que não mais seriam partilhadas por qualquer público. A imprensa jamais assumiu seus erros, desculpou-se pelos excessos e ou tentou redimir-se das injúrias.

Moral da história: a ignorância não só é responsável pela banalização do conhecimento, mas pelas agressões, violências, injustiças e humilhações infligidas aos cidadão zelosos.