quarta-feira, 9 de janeiro de 2019

O fato, o não-fato e a verdade



Diz-nos o bom senso que toda proposta de conhecer um objeto qualquer em detalhes deve ser precedida de investigação conceitual. Tal investigação, neste caso, distanciada do preciosismo, volta-se, a princípio, para a etimologia, sempre no interesse de desvelar e, por conseguinte, apreender o objeto mesmo. O verbete “fato” tem origem no termo latino facto, e pode ter como significado: coisa ou ação feita, um acontecimento, um feito, aquilo que realmente existe, o real.
No entanto, até porque vivemos em outro Zeitgeist, deparamo-nos com a óbvia dificuldade em vincular o fato ao real ou a uma existência real. Para evitar perguntas do tipo: o que é real ou o que é existência real e nos perdermos numa estéril discussão filosófica, resumiremos que o real ou a existência real de um fato está vinculado à sua comprovação. Por outro lado, acontecimentos, feitos ou ações parecem refletir costumes, tradições, sentimentos, algo que se vincula diretamente às criações históricas de determinado povo. É o que chamamos de fato social. E qualquer sociedade, destarte, não poderá mostrar-se alheia a seus fatos sociais. Contudo, ocupemo-nos, nesta oportunidade, do fato enquanto ação, acontecimento, um feito. Isso nos remete ao fato como fenômeno. A palavra fenômeno, originário do termo grego phainómenon, significa o que aparece, o que é passível de observação, descrição ou explicação; aquilo que estimula nossos sentidos e manifesta-se à consciência cognitiva.
Não obstante, seria sobremodo ingênuo afirmar que ao observar um fenômeno, - o que aparece - na tentativa de descrevê-lo e explicá-lo o fazemos despidos de crenças, valores, interesses, ideologias, etc. Pelo contrário, quando relatamos um fato, amiúde o fazemos de modo interpretativo. Neste caso, portanto, já não temos a narrativa do fato, mas a interpretação do fato; algo bem particularizado, manifestamente subjetivo. Ora, a visão particularizada de um fato já destoa do fato, já não mais se trata do fato. Então surge o não-fato, e que não raramente opõe-se ao fato. Corroborando nossa assertiva, citamos Jean Piaget, abnegado pesquisador da epistemologia genética: “O fato puro é inexistente”. A inexistência do fato deve ser entendida como a dificuldade de relatá-lo na sua integralidade.
O fato só pode ser descrito enquanto fenômeno, pois na condição de pureza sempre será inenarrável. Friedrich Nietzsche nos dizia que “o que há são interpretações de fatos”. O fato-em-si não só não é transmissível, como também não é descritível. Faz-se importante apontar que a intransmissibilidade do fato dá-se não por se tratar de um noumeno, segundo a diferenciação estabelecida por Kant em sua epistemologia, mas pela dificuldade em não se deixar de vincular ao fato algo de subjetivo. O fato é apreensível, mas não transmissível em sua limpidez. No entanto, as pessoas esforçam-se por narrar fatos, acontecimentos. E como observamos, ao fazê-lo, as pessoas o submetem às suas ópticas particulares, ou seja, o fazem segundo suas crenças, valores, princípios, o que implica distanciamento do fato mesmo.
Bem, e o que dizer da condição do ouvinte? Na verdade, o ouvinte apreende apenas interpretações do mesmo fato. Atenção: não há diferença em relação à interpretação de um texto, pois que nas interpretações estão presentes enormes cargas valorativas. E essas valorações dão origem às convicções. Mas como crer na narrativa de outrem, já que tal narrativa tem por base apenas uma convicção particular? O que se pode entender por convicção? Tendo como ponto de partida o termo latino convictio, percebe-se que o mesmo manifesta certa polissemia. A título de esclarecimento, o verbete pode ser entendido como comprometimento, cumplicidade, certeza obtida através de razões ou fatos indubitáveis e inobjetáveis; mostra-se como uma opinião obstinada, uma crença, pois que se baseia em provas ou motivos particulares, ou ainda fruto do convencimento, da persuasão. Importante frisar que o vocábulo tem por sinônimo os termos crença ou fé.
O que fazer, portanto, quando nos vimos presas na condição de ouvintes em uma acirrada polêmica entre partes? quando não temos, ou não tivemos acesso aos fatos e/ou razões que possam nos criar uma certeza indubitável ou inobjetável? Algum leitor mais imprudente poderia apelar para algo do tipo a Navalha de Ockham, mas não estamos a discorrer sobre teorias científicas. Então, ou nos permitimos cooptar por um dos lados da polêmica ou estabelecemos uma nova crença - fé - acerca do mesmo assunto, para assim criarmos nossa convicção particularizada. Enquanto as narrativas restringirem-se ao senso comum, sustentadas pelo adágio popular de que “cada um é dono de sua verdade”, por certo não irromperão consequências maiores. Mas, perguntamo-nos: e a verdade dos fatos? Esta, a verdade, ... permanecerá inacessível, apesar das diferentes convicções, pois o fato mesmo mostrar-se-á, irremediavelmente, como inefável.

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