Diz-nos o bom senso que toda proposta de conhecer um
objeto qualquer em detalhes deve ser precedida de investigação conceitual. Tal
investigação, neste caso, distanciada do preciosismo, volta-se, a princípio,
para a etimologia, sempre no interesse de desvelar e, por conseguinte,
apreender o objeto mesmo. O verbete “fato” tem origem no termo latino facto,
e pode ter como significado: coisa ou ação feita, um acontecimento, um feito,
aquilo que realmente existe, o real.
No entanto, até porque vivemos em outro Zeitgeist,
deparamo-nos com a óbvia dificuldade em vincular o fato ao real ou a uma
existência real. Para evitar perguntas do tipo: o que é real ou o que é
existência real e nos perdermos numa estéril discussão filosófica, resumiremos
que o real ou a existência real de um fato está vinculado à sua comprovação.
Por outro lado, acontecimentos, feitos ou ações parecem refletir costumes,
tradições, sentimentos, algo que se vincula diretamente às criações históricas
de determinado povo. É o que chamamos de fato social. E qualquer sociedade,
destarte, não poderá mostrar-se alheia a seus fatos sociais. Contudo,
ocupemo-nos, nesta oportunidade, do fato enquanto ação, acontecimento, um
feito. Isso nos remete ao fato como fenômeno. A palavra fenômeno, originário do
termo grego phainómenon, significa o que aparece, o que é passível de
observação, descrição ou explicação; aquilo que estimula nossos sentidos e
manifesta-se à consciência cognitiva.
Não obstante, seria sobremodo ingênuo afirmar que ao
observar um fenômeno, - o que aparece - na tentativa de descrevê-lo e
explicá-lo o fazemos despidos de crenças, valores, interesses, ideologias, etc.
Pelo contrário, quando relatamos um fato, amiúde o fazemos de modo
interpretativo. Neste caso, portanto, já não temos a narrativa do fato, mas a
interpretação do fato; algo bem particularizado, manifestamente subjetivo. Ora,
a visão particularizada de um fato já destoa do fato, já não mais se trata do
fato. Então surge o não-fato, e que não raramente opõe-se ao fato. Corroborando
nossa assertiva, citamos Jean Piaget, abnegado pesquisador da epistemologia
genética: “O fato puro é inexistente”. A inexistência do fato deve ser
entendida como a dificuldade de relatá-lo na sua integralidade.
O fato só pode ser descrito enquanto fenômeno, pois na
condição de pureza sempre será inenarrável. Friedrich Nietzsche nos dizia que
“o que há são interpretações de fatos”. O fato-em-si não só não é
transmissível, como também não é descritível. Faz-se importante apontar que a
intransmissibilidade do fato dá-se não por se tratar de um noumeno,
segundo a diferenciação estabelecida por Kant em sua epistemologia, mas pela
dificuldade em não se deixar de vincular ao fato algo de subjetivo. O fato é
apreensível, mas não transmissível em sua limpidez. No entanto, as pessoas
esforçam-se por narrar fatos, acontecimentos. E como observamos, ao fazê-lo, as
pessoas o submetem às suas ópticas particulares, ou seja, o fazem segundo suas
crenças, valores, princípios, o que implica distanciamento do fato mesmo.
Bem, e o que dizer da condição do ouvinte? Na verdade, o
ouvinte apreende apenas interpretações do mesmo fato. Atenção: não há diferença
em relação à interpretação de um texto, pois que nas interpretações estão
presentes enormes cargas valorativas. E essas valorações dão origem às
convicções. Mas como crer na narrativa de outrem, já que tal narrativa tem por
base apenas uma convicção particular? O que se pode entender por convicção?
Tendo como ponto de partida o termo latino convictio,
percebe-se que o mesmo manifesta certa polissemia. A título de esclarecimento,
o verbete pode ser entendido como comprometimento, cumplicidade, certeza obtida
através de razões ou fatos indubitáveis e inobjetáveis; mostra-se como uma
opinião obstinada, uma crença, pois que se baseia em provas ou motivos
particulares, ou ainda fruto do convencimento, da persuasão. Importante frisar
que o vocábulo tem por sinônimo os termos crença ou fé.
O
que fazer, portanto, quando nos vimos presas na condição de ouvintes em uma
acirrada polêmica entre partes? quando não temos, ou não tivemos acesso aos
fatos e/ou razões que possam nos criar uma certeza indubitável ou inobjetável? Algum
leitor mais imprudente poderia apelar para algo do tipo a Navalha de Ockham, mas
não estamos a discorrer sobre teorias científicas. Então, ou nos permitimos
cooptar por um dos lados da polêmica ou estabelecemos uma nova crença - fé -
acerca do mesmo assunto, para assim criarmos nossa convicção particularizada.
Enquanto as narrativas restringirem-se ao senso comum, sustentadas pelo adágio
popular de que “cada um é dono de sua verdade”, por certo não irromperão
consequências maiores. Mas, perguntamo-nos: e a verdade dos fatos? Esta, a
verdade, ... permanecerá inacessível, apesar das diferentes convicções, pois o
fato mesmo mostrar-se-á, irremediavelmente, como inefável.
Nenhum comentário:
Postar um comentário