terça-feira, 29 de janeiro de 2019

Conveniente



Alguns conceitos, por se mostrarem amplos, acabam por transcender o entendimento humano. O conceito de liberdade é exemplo disso. Uma singela definição, não um conceito, nos diz que liberdade é o direito de agir de acordo como nosso entendimento, contanto que esse direito não interfira e avilte o direito de outrem. Nada obstante, se temos o direito de proceder de acordo com nossa intelecção, por que a preocupação com o direito do outro? Afinal, o simples fato de não poder agir em conformidade com nossa razão para não ferir o direito de outrem, fere nossa liberdade. Em verdade, por se tratar de um direito, estamos na presença de regras, normas, leis. Ora, mas as leis tem por finalidade por limites à liberdade. Nesse caso, a liberdade assimila a condição de dever e não mais um direito. Eis um primeiro obstáculo em face da amplidão do conceito.

No entanto, gozar de liberdade é ser livre? Enfim: o que é ser livre? Ora, ser livre é poder dispor de si, é propor-se, é resolver-se, é resignar-se. Nesse caso, podemos nos sentir livres sem dispormos de nós mesmos. Percebei, ser livre é um sentir. Ser livre não é um direito, mas sim uma condição, uma circunstância, uma autodeterminação, algo de foro íntimo; sentir-se livre estaria vinculado a um eu idiossincrásico. Segundo Johann Gottlieb Fichte, “Livre é somente aquele que quer tornar livre tudo à sua volta...” A sabedoria estoica diz-nos que apesar de escravizados, os cidadãos podem sentir-se livres. O sentir-se livre independe da liberdade, pois que liberdade é conduta social. “Todo aquele que se considera um senhor de outros é ele mesmo um escravo”. A liberdade deve e tem que passar pelo controle social para que não culmine no absoluto, no libertário, no anarquismo.

Nossa sociedade, todavia, busca incessantemente por liberdade. Por que as pessoas clamam tanto por liberdade? A busca por conceitos, entretanto, não responde o porquê dessa demanda quase doentia. Atentai para um pequeníssimo detalhe: não são pessoas escravizadas que bradam por liberdade (a referência à escravidão na presente oração é metafórica). Os mais exaltados em semelhantes expostulações são pessoas, em geral, que desfrutam de todo um aparelhamento jurídico, construído exatamente para lhes dar garantias e estabelecer direitos. Então, por que? O que faz com que cidadãos, das mais variadas orientações políticas, religiosas, culturais, das mais díspares classe sociais revelem-se obsessivos vindicadores da liberdade?

Como agravante, a liberdade pretendida desconhece qualquer responsabilidade e parece querer transpor até mesmo o anarquismo, isto porque, em geral, é confundida com imunidades e regalias. Nossa sociedade, graças a um insensato messianismo jurídico, aliado a discursos escamoteados por irritante retórica e a afronta de uma sofística, já prescinde de regras e adentra o orbe da libertinagem. Sim, nosso comportamento social é totalmente desregrado; o povo mostra-se como dissoluto, devasso, licencioso, indisciplinado, negligente e imorigerado.

A que se deve, então, a origem de semelhante tropelia? Bem, poder-se-ia aventar a hipótese de um discurso bem construído, como tantos outros, com o fito de manipular comportamentos, algo bem presente em nossa realidade. Mas a coisa transcende qualquer circunstância particular; não é um aqui, um acolá, um algures; é um todo, uma preocupação quase universalizada. Bem, então a resposta deve estar no próprio ser humano e nas relações que ele estabelece com as circunstâncias. Porém, deve-se ter em mente que as circunstâncias não podem ser entendidas como algo regionalizado, compartimentado; deve ser uma ou mais circunstâncias que se revelem de modo generalizado; algo comum a todo ser humano.

Doravante, então, tornar-nos-emos reféns de uma espécie de antropologia filosófica. Sim, isto porque agora devemos analisar os seres humanos em seus aspectos mais significativos. Por que seres humanos, apesar do amparo das leis que consolidam suas liberdades sociais - até porque liberdade é apenas uma possibilidade social, afinal, como usufruir da liberdade fora do contexto social? - continuam a instar pelo já conquistado, pleiteando, desse modo, não mais a liberdade, mas o libertário, o anárquico, o que pugna por ideais que destruiriam a sociedade mesma? Ora, a destruição da sociedade implicaria, pelo menos, no avilte, no envilecimento, no ultraje à própria liberdade. Alceu Amoroso Lima, fazendo uso de uma metáfora, diz-nos que essa liberdade ilimitada seria a liberdade da raposa no galinheiro, pois ao não conhecer limites a liberdade volta-se contra si mesma. 

Percebei, a liberdade é buscada não por carência, mas para suprir uma outra carência qualquer. E mais uma vez recorremos a Fichte; “Ainda não amadurecemos para o sentimento de nossa liberdade e autoatividade...” Seres humanos bradam por liberdade porque se reconhecem obscuros, limitados, levianos. Há necessidade premente de uma justificativa. A angústia e a aflição presentes na má consciência criam como que um mecanismo escapista. Seres humanos transferem à pseudo e simulada falta de liberdade a responsabilidade para seus desmandos. Eles tentam fazer de suas limitações alguma coisa admirável - para isso fazem uso da arte - pois que conscientemente reconhecem suas maldades, suas fraquezas, suas torpezas. Seres humanos querem liberdade para melhor disfarçarem suas baixezas. Tende cautela: a busca obsessiva por ilimitada liberdade, já que usada para suprir uma carência, é pura desfaçatez.  

Um comentário:

  1. A liberdade é relativa. A moral e a ética impostas pela razão limitam e militam sobre as nossas inerentes imperfeições.

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