Alguns
conceitos, por se mostrarem amplos, acabam por transcender o entendimento
humano. O conceito de liberdade é exemplo disso. Uma singela definição, não um
conceito, nos diz que liberdade é o direito de agir de acordo como nosso
entendimento, contanto que esse direito não interfira e avilte o direito de
outrem. Nada obstante, se temos o direito de proceder de acordo com nossa
intelecção, por que a preocupação com o direito do outro? Afinal, o simples
fato de não poder agir em conformidade com nossa razão para não ferir o direito
de outrem, fere nossa liberdade. Em verdade, por se tratar de um direito,
estamos na presença de regras, normas, leis. Ora, mas as leis tem por
finalidade por limites à liberdade. Nesse caso, a liberdade assimila a condição
de dever e não mais um direito. Eis um primeiro obstáculo em face da amplidão
do conceito.
No
entanto, gozar de liberdade é ser livre? Enfim: o que é ser livre? Ora, ser livre
é poder dispor de si, é propor-se, é resolver-se, é resignar-se. Nesse caso,
podemos nos sentir livres sem dispormos de nós mesmos. Percebei, ser livre é um
sentir. Ser livre não é um direito, mas sim uma condição, uma circunstância,
uma autodeterminação, algo de foro íntimo; sentir-se livre estaria vinculado a
um eu idiossincrásico. Segundo Johann Gottlieb Fichte, “Livre é somente aquele
que quer tornar livre tudo à sua volta...” A sabedoria estoica diz-nos que
apesar de escravizados, os cidadãos podem sentir-se livres. O sentir-se livre
independe da liberdade, pois que liberdade é conduta social. “Todo aquele que
se considera um senhor de outros é ele mesmo um escravo”. A liberdade deve e
tem que passar pelo controle social para que não culmine no absoluto, no
libertário, no anarquismo.
Nossa
sociedade, todavia, busca incessantemente por liberdade. Por que as pessoas
clamam tanto por liberdade? A busca por conceitos, entretanto, não responde o
porquê dessa demanda quase doentia. Atentai para um pequeníssimo detalhe: não são
pessoas escravizadas que bradam por liberdade (a referência à escravidão na
presente oração é metafórica). Os mais exaltados em semelhantes expostulações são
pessoas, em geral, que desfrutam de todo um aparelhamento jurídico, construído
exatamente para lhes dar garantias e estabelecer direitos. Então, por que? O
que faz com que cidadãos, das mais variadas orientações políticas, religiosas,
culturais, das mais díspares classe sociais revelem-se obsessivos vindicadores
da liberdade?
Como
agravante, a liberdade pretendida desconhece qualquer responsabilidade e parece
querer transpor até mesmo o anarquismo, isto porque, em geral, é confundida com
imunidades e regalias. Nossa sociedade, graças a um insensato messianismo jurídico,
aliado a discursos escamoteados por irritante retórica e a afronta de uma
sofística, já prescinde de regras e adentra o orbe da libertinagem. Sim, nosso
comportamento social é totalmente desregrado; o povo mostra-se como dissoluto,
devasso, licencioso, indisciplinado, negligente e imorigerado.
A
que se deve, então, a origem de semelhante tropelia? Bem, poder-se-ia aventar a
hipótese de um discurso bem construído, como tantos outros, com o fito de
manipular comportamentos, algo bem presente em nossa realidade. Mas a coisa
transcende qualquer circunstância particular; não é um aqui, um acolá, um
algures; é um todo, uma preocupação quase universalizada. Bem, então a resposta
deve estar no próprio ser humano e nas relações que ele estabelece com as circunstâncias.
Porém, deve-se ter em mente que as circunstâncias não podem ser entendidas como
algo regionalizado, compartimentado; deve ser uma ou mais circunstâncias que se
revelem de modo generalizado; algo comum a todo ser humano.
Doravante,
então, tornar-nos-emos reféns de uma espécie de antropologia filosófica. Sim,
isto porque agora devemos analisar os seres humanos em seus aspectos mais
significativos. Por que seres humanos, apesar do amparo das leis que consolidam
suas liberdades sociais - até porque liberdade é apenas uma possibilidade
social, afinal, como usufruir da liberdade fora do contexto social? - continuam
a instar pelo já conquistado, pleiteando, desse modo, não mais a liberdade, mas
o libertário, o anárquico, o que pugna por ideais que destruiriam a sociedade
mesma? Ora, a destruição da sociedade implicaria, pelo menos, no avilte, no envilecimento, no ultraje à própria liberdade. Alceu Amoroso Lima, fazendo uso de uma metáfora, diz-nos que essa liberdade ilimitada seria a liberdade da raposa no galinheiro, pois ao não conhecer limites a liberdade volta-se contra si mesma.
Percebei,
a liberdade é buscada não por carência, mas para suprir uma outra carência qualquer. E mais
uma vez recorremos a Fichte; “Ainda não amadurecemos para o sentimento de nossa
liberdade e autoatividade...” Seres humanos bradam por liberdade porque se
reconhecem obscuros, limitados, levianos. Há necessidade premente de uma
justificativa. A angústia e a aflição presentes na má consciência criam como
que um mecanismo escapista. Seres humanos transferem à pseudo e simulada falta
de liberdade a responsabilidade para seus desmandos. Eles tentam fazer de suas
limitações alguma coisa admirável - para isso fazem uso da arte - pois que
conscientemente reconhecem suas maldades, suas fraquezas, suas torpezas. Seres
humanos querem liberdade para melhor disfarçarem suas baixezas. Tende cautela:
a busca obsessiva por ilimitada liberdade, já que usada para suprir uma
carência, é pura desfaçatez.
A liberdade é relativa. A moral e a ética impostas pela razão limitam e militam sobre as nossas inerentes imperfeições.
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