Ao
dedicar-me à procedência da linguagem, tendo como aporte o pensamento de
Giambattista Vico, pensamento este expresso em La Scienza Nuova, identifiquei
três momentos distintos que, segundo o filósofo, acompanharam o surgimento e
evolução da linguagem. São eles: 1 - aquela utilizada pelos deuses, ou seja,
uma linguagem muda, gestual, concebida por hieróglifos; 2 - a dos heróis: uma
linguagem simbólica, pois que os símbolos tinham então primazia; 3 - a linguagem
dos seres humanos, isto é, uma linguagem articulada, poética, até porque, de
início, era estruturada em versos jâmbicos. A constituição desta última, linguagem
articulada, teve início com as interjeições, isso em face do espanto diante do
desconhecido. Em seguida vieram os pronomes, onde pode-se imaginar o surgimento
do princípio de individuação. Depois vieram as preposições, ou seja, o
posicionamento destes mesmos indivíduos, as suas localizações em face do
ambiente. Em seguida os nomes, os substantivos, algo como uma imitação dos
fenômenos da natureza e dos sons emitidos pelos animais; na verdade uma
onomatopeia. Bem, e por fim surgiram os verbos, isto é, a descrição das ações
praticadas.
É
notório, contudo, que nossa linguagem, a humana, mesmo que bem articulada,
percebeu-se ainda limitada. Para superar tal carência, optou-se por fazer uso
do recurso das metáforas: uma herança óbvia da fase precedente, a simbólica.
Não obstante, perguntamo-nos pelos adjetivos. Sim, os adjetivos não foram
observados por Vico, visto que os primeiros escritos não faziam uso de
adjetivos; havia sim, e de modo abundante, o emprego de metáforas. Para
confirmar tal assertiva, observemos o Livro dos Mortos do Antigo Egito, um dos
livros mais antigos, senão o mais antigo da humanidade; neste é patente a
ausência de adjetivos. Na filosofia pré-socrática pode-se perceber a quase
ausência dos mesmos. Nos escritos bíblicos, independente se no Antigo ou Novo
Testamento, o fenômeno está presente. Para embasar meu arrazoado transcrevo
aqui apenas os dois primeiros versículos do Salmo 18. “Eu te amarei, ó Senhor,
fortaleza minha. O Senhor é o meu rochedo, o meu lugar forte, e o meu
libertador; o meu Deus, a minha fortaleza, em quem confio; o meu escudo, a
força da minha salvação e o meu alto refúgio”.
De
início podemos perceber que, na maioria das vezes, o termo usado é Senhor e não
Deus, isto porque a palavra Deus, originalmente constituída apenas por
consoantes -YHWH - não deveria ser pronunciada. Judeus que professam a
ortodoxia religiosa são proibidos de proferir o nome de Deus. Aqui podemos
identificar a linguagem dos deuses apontada por Vico, isto é, uma linguagem
muda, gestual, restrita a hieróglifos. A palavra usada então pelos religiosos
era Adonai, Senhor. Contudo, o termo Adonai exige algo que o diferencie e
exalte, um adjetivo. Deparamo-nos então com Elohim, um plural adjetivo de dois
gêneros da palavra Eloah, um plural majestático ou de excelência. Elohim é
adjetivo que se refere somente a Deus.
A
dar continuidade na observância dos versículos do Salmo 18, podemos entender
que chamar o Senhor de fortaleza, rochedo, lugar forte, libertador, escudo e
alto refúgio seria uma tentativa de expor e exaltar suas qualidades, as
qualidades de Deus, o que não deixa de ser uma tentativa de antropomorfizar o
que é desconhecido e sobre o qual não se deve falar. Em todo o Antigo
Testamento, sem exceção, faz-se inequívoca a quase total ausência de adjetivos;
as metáforas, por outro lado, são abundantes. Todavia, não podemos deixar de
assinalar que os adjetivos começam a se insinuar nos textos do Novo Testamento,
prova disto está no evangelho de Matheus, no conhecido “Sermão da Montanha”. No
Corão, escrito por volta de 632 d. C., pode-se observar de modo claro que a quase
totalidade das Suras inicia por: “Senhor Clemente e Misericordioso”, ou seja, o
adjetivo usado como louvor. Parece elucidativo que a presença dos adjetivos faz-se
necessária quando é premente não só colocar em relevância os atributos divinos,
bem como ressaltar a inferioridade, a má índole, a ausência de virtudes
naqueles considerados êmulos à divindade.
Nada
obstante, as línguas, de um modo geral, "evoluíram" e as metáforas começaram a
experimentar certa resistência, até porque o uso de uma palavra em sentido
incomum, tendo por base apenas certa relação de semelhança revela-se como algo
de extrema complexidade. Afinal existem metáforas e metáforas. Todavia, o filólogo
Nietzsche entendia a metáfora como excelente recurso comunicacional, haja vista
as limitações inerentes a qualquer linguagem. Entretanto, mesmo em face deste
embate filológico, o uso de adjetivos experimentou algo próximo do apogeu. Considerai
pois o sintoma. É evidente o fato de que algumas línguas se valem do recurso das
locuções adjetivas; outras ainda, com a ajuda de artigos definidos,
substantivam os adjetivos.
Bem,
a deixar de lado a parte histórica no que tange ao uso dos adjetivos,
surpreendemo-nos sobremodo com a utilização desta ferramenta linguística nos
dias atuais. Longe de qualquer tom de jocosidade, eu poderia dizer que o
adjetivo tornou-se indispensável para a comunicação no mundo hodierno; seria
uma espécie de ingrediente, sem o qual a comunicação seria impossível; o
oxigênio, o insumo fundamental à vida das relações. Por que? A pergunta
revela-se preponderante. Tanto no coloquial, como nos relatos jornalísticos,
literários e acadêmicos, é inequívoca a quantidade de adjetivos empregados no que
se refere a pessoas. No entanto, e infelizmente, a carga de adjetivação posta
em prática volta-se para dar vulto às inferioridades, às críticas, aos
achismos, aos ressentimentos; instrumento recursório para disseminar ódio,
rancor, criar desafetos e insinuar inverdades. Enfim, para que a patente subutilização
dos adjetivos? Infelizmente, estas palavras - os adjetivos - mostram-se apenas como
ferramenta na distribuição de títulos, de rótulos, de dísticos.
É o alastramento da corrupção endêmica da sociedade. Conseguindo por fim atingir e ferir a nossa evoluída comunicação. Até isso ela está transformando para pior, é a "letra que mata" socialmente falando.
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