terça-feira, 8 de janeiro de 2019

Adjetivos



Ao dedicar-me à procedência da linguagem, tendo como aporte o pensamento de Giambattista Vico, pensamento este expresso em La Scienza Nuova, identifiquei três momentos distintos que, segundo o filósofo, acompanharam o surgimento e evolução da linguagem. São eles: 1 - aquela utilizada pelos deuses, ou seja, uma linguagem muda, gestual, concebida por hieróglifos; 2 - a dos heróis: uma linguagem simbólica, pois que os símbolos tinham então primazia; 3 - a linguagem dos seres humanos, isto é, uma linguagem articulada, poética, até porque, de início, era estruturada em versos jâmbicos. A constituição desta última, linguagem articulada, teve início com as interjeições, isso em face do espanto diante do desconhecido. Em seguida vieram os pronomes, onde pode-se imaginar o surgimento do princípio de individuação. Depois vieram as preposições, ou seja, o posicionamento destes mesmos indivíduos, as suas localizações em face do ambiente. Em seguida os nomes, os substantivos, algo como uma imitação dos fenômenos da natureza e dos sons emitidos pelos animais; na verdade uma onomatopeia. Bem, e por fim surgiram os verbos, isto é, a descrição das ações praticadas.

É notório, contudo, que nossa linguagem, a humana, mesmo que bem articulada, percebeu-se ainda limitada. Para superar tal carência, optou-se por fazer uso do recurso das metáforas: uma herança óbvia da fase precedente, a simbólica. Não obstante, perguntamo-nos pelos adjetivos. Sim, os adjetivos não foram observados por Vico, visto que os primeiros escritos não faziam uso de adjetivos; havia sim, e de modo abundante, o emprego de metáforas. Para confirmar tal assertiva, observemos o Livro dos Mortos do Antigo Egito, um dos livros mais antigos, senão o mais antigo da humanidade; neste é patente a ausência de adjetivos. Na filosofia pré-socrática pode-se perceber a quase ausência dos mesmos. Nos escritos bíblicos, independente se no Antigo ou Novo Testamento, o fenômeno está presente. Para embasar meu arrazoado transcrevo aqui apenas os dois primeiros versículos do Salmo 18. “Eu te amarei, ó Senhor, fortaleza minha. O Senhor é o meu rochedo, o meu lugar forte, e o meu libertador; o meu Deus, a minha fortaleza, em quem confio; o meu escudo, a força da minha salvação e o meu alto refúgio”.

De início podemos perceber que, na maioria das vezes, o termo usado é Senhor e não Deus, isto porque a palavra Deus, originalmente constituída apenas por consoantes -YHWH - não deveria ser pronunciada. Judeus que professam a ortodoxia religiosa são proibidos de proferir o nome de Deus. Aqui podemos identificar a linguagem dos deuses apontada por Vico, isto é, uma linguagem muda, gestual, restrita a hieróglifos. A palavra usada então pelos religiosos era Adonai, Senhor. Contudo, o termo Adonai exige algo que o diferencie e exalte, um adjetivo. Deparamo-nos então com Elohim, um plural adjetivo de dois gêneros da palavra Eloah, um plural majestático ou de excelência. Elohim é adjetivo que se refere somente a Deus.

A dar continuidade na observância dos versículos do Salmo 18, podemos entender que chamar o Senhor de fortaleza, rochedo, lugar forte, libertador, escudo e alto refúgio seria uma tentativa de expor e exaltar suas qualidades, as qualidades de Deus, o que não deixa de ser uma tentativa de antropomorfizar o que é desconhecido e sobre o qual não se deve falar. Em todo o Antigo Testamento, sem exceção, faz-se inequívoca a quase total ausência de adjetivos; as metáforas, por outro lado, são abundantes. Todavia, não podemos deixar de assinalar que os adjetivos começam a se insinuar nos textos do Novo Testamento, prova disto está no evangelho de Matheus, no conhecido “Sermão da Montanha”. No Corão, escrito por volta de 632 d. C., pode-se observar de modo claro que a quase totalidade das Suras inicia por: “Senhor Clemente e Misericordioso”, ou seja, o adjetivo usado como louvor. Parece elucidativo que a presença dos adjetivos faz-se necessária quando é premente não só colocar em relevância os atributos divinos, bem como ressaltar a inferioridade, a má índole, a ausência de virtudes naqueles considerados êmulos à divindade.

Nada obstante, as línguas, de um modo geral, "evoluíram" e as metáforas começaram a experimentar certa resistência, até porque o uso de uma palavra em sentido incomum, tendo por base apenas certa relação de semelhança revela-se como algo de extrema complexidade. Afinal existem metáforas e metáforas. Todavia, o filólogo Nietzsche entendia a metáfora como excelente recurso comunicacional, haja vista as limitações inerentes a qualquer linguagem. Entretanto, mesmo em face deste embate filológico, o uso de adjetivos experimentou algo próximo do apogeu. Considerai pois o sintoma. É evidente o fato de que algumas línguas se valem do recurso das locuções adjetivas; outras ainda, com a ajuda de artigos definidos, substantivam os adjetivos.

Bem, a deixar de lado a parte histórica no que tange ao uso dos adjetivos, surpreendemo-nos sobremodo com a utilização desta ferramenta linguística nos dias atuais. Longe de qualquer tom de jocosidade, eu poderia dizer que o adjetivo tornou-se indispensável para a comunicação no mundo hodierno; seria uma espécie de ingrediente, sem o qual a comunicação seria impossível; o oxigênio, o insumo fundamental à vida das relações. Por que? A pergunta revela-se preponderante. Tanto no coloquial, como nos relatos jornalísticos, literários e acadêmicos, é inequívoca a quantidade de adjetivos empregados no que se refere a pessoas. No entanto, e infelizmente, a carga de adjetivação posta em prática volta-se para dar vulto às inferioridades, às críticas, aos achismos, aos ressentimentos; instrumento recursório para disseminar ódio, rancor, criar desafetos e insinuar inverdades. Enfim, para que a patente subutilização dos adjetivos? Infelizmente, estas palavras - os adjetivos - mostram-se apenas como ferramenta na distribuição de títulos, de rótulos, de dísticos.

Um comentário:

  1. É o alastramento da corrupção endêmica da sociedade. Conseguindo por fim atingir e ferir a nossa evoluída comunicação. Até isso ela está transformando para pior, é a "letra que mata" socialmente falando.

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