sexta-feira, 14 de agosto de 2020

Polegares opositores

Dizem-me um alienígena. Isso talvez porque eu o seja, de fato. Vim de galáxia distante, atraído por sons maravilhosos (aqui chamam de música): eram frases melódicas admiráveis que nos conduzia à reflexão, à paz interior. Mas, em virtude da distância e o tempo que nos separa - anos luz, segundo os terráqueos - quando aqui cheguei, fiquei sabendo que estes sons já não mais são construídos; agora fazem algo rústico, barulhento, agressivo. Na falta de melhor adjetivo, eu diria ... contundente. Sim, nós - minha querida raça - do distante planeta Cepta, admirávamos os terráqueos por sua arte. Todavia, isto agora pertence ao passado...

Muitas outras são as características desta raça; creio poder chamá-la estranha. Sim, são extremamente agressivos: em nome da autopreservação, destroem os semelhantes. E o que dizer dos dessemelhantes? Eu sou testemunha. Tenho a cor acobreada, a pele crestada pelo nosso Saul (os humanos têm o seu Sol) pelos escuros avermelhados, estatura mediana e tenho forte compleição, como os demais de minha raça. Sou agredido não só verbalmente. Para terdes uma ideia, obrigam-me a beber café requentado. Além da bebida alcoólica, o café é muito muito popular; creio que por ser uma rubiácea, tenha poderes medicinais. Os humanos chamam-me pelos piores nomes. Sim, as várias linguagens dos terráqueos permitem o uso de um recurso que eles chamam de retórica: é uma frase esteticamente bem construída, mas que se bem analisada quer dizer absolutamente nada, e tem por objetivo defender os interesses de uns em detrimento de outros.

Coisa curiosa o terráqueo: reconhecem a finitude, mas temem a morte; evitam até mesmo falar sobre o tema. Como nada de material levarão para o túmulo (lugar em que se deposita o corpo sem vida da raça humana), durante a breve vida, ou esbanjam dinheiro à rodo com todo tipo de futilidades ou juntam bens para que a família desfrute após a morte. Os humanos não lidam bem com a morte, mas curiosamente vivem em guerra; pregam a paz, mas divertem-se com competições de extrema violência. Dizem prezar o próximo, falam em fraternidade, mas colocam os interesses individuais acima até mesmo do Estado. Os seres deste orbe empenham-se em tornar a própria vida impossível de ser vivida; para compensar, então, recorrem às drogas. Os humanos experimentaram grande avanço científico, mas usam estes conhecimentos para o que chamam de tecnologia, o que os torna acomodados, indolentes e obesos. Não obstante o avanço da ciência, é patente o recrudescimento moral. Dizem defenderem a natureza e as demais espécies, mas usam a carne animal como alimento.  

Outra particularidade dos humanos: eles desenvolveram um “negócio” (desculpai o mau jeito, mas nada existe similar em nosso idioma, em nossa realidade) chamado política. Eles passam os dias bradando por uma tal de democracia, que dissemina a ideia de que o poder emana do povo (eis o uso da retórica), mas, na verdade, alguns assumem o mais alto cargo, ou através do voto, ou do golpe, ou até mesmo de uma revolução e governam de modo a tornarem-se ricos e lá perpetuarem-se. Os humanos, os governados, adoram ser enganados pelos discursos retóricos, talvez porque a maioria deles seja analfabeto (quando os humanos não sabem ler ou escrever o próprio idioma). Falam também em analfabetos funcionais: aqueles que, apesar de terem frequentado as instituições de ensino, nada assimilaram e são usados como manada (ganampu em nosso idioma) pelos que pretendem eternizarem-se no poder.

E o mais importante antes de eu terminar este meu breve relatório: os poderosos pretendem criar um governo central, único, uma única lei, uma única cultura, uma única religião, um único idioma, única moeda, apesar da multiplicidade de culturas, crenças e valores. Para isso eles se valem do ganampu, dos políticos corruptos, de ideologias abstrusas e dos órgãos de imprensa (os que espalham as notícias) que traficam com a verdade. Estai certos de que “o bicho vai pegar” (expressão usada pelos terráqueos para declararem que tudo vai dar errado e, consequentemente, trará lamentáveis consequências).

Eis o porquê deste relatório; estou voltando para Cepta. Clamo a Diev (Deus), único em todo o universo, que inspire nossos cientistas no sentido de abrirem logo o pórtico - a dobra do tempo - para que eu retorne a meu planeta, à minha galáxia natal. A propósito, um detalhe antes de terminar; aliás, o único que torna os humanos próximos de nós: eles têm polegares opositores.  

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