segunda-feira, 30 de novembro de 2020

Nova amizade

 

O relato a seguir foi-nos contado e recontado - a mim, meu irmão e meu pai - em várias ocasiões por minha mãe. Tenhamos em mente, no entanto, que mamãe era uma dessas pessoas que se encanta facilmente com o mistério; o sobrenatural, ou aquilo que ela acreditava sê-lo, a fascinava. Curiosamente, ela não buscava entender o fato ou compreender as circunstâncias em que o evento se dava; bastava-lhe a narrativa. Todavia, o presente acontecimento é, por si só - vós podereis confirmar - cercado de mistério.

Ei-lo: foi num dia 02 de novembro de um ano qualquer. Dia de Finados! Mamãe, bastante religiosa e filha dedicada, não deixava de ir ao Cemitério de Inhaúma visitar o túmulo de seu pai, meu avô Daniel. Pois bem, além das flores, ela levava também materiais de limpeza. Não, não estranheis tal hábito; a fé a tudo justifica. Pois bem, após meticulosa faxina, ela enfeitava, ou melhor, engalanava o mausoléu da família. Por fim, fazia suas orações, conversava com o pai falecido e agradecia a Deus.

Em virtude do Dia dos Mortos, o cemitério aumentava sobremodo sua frequência. Mamãe, absorta em suas orações, não voltava a menor atenção para o que acontecia ao redor. De olhos fechados, contudo, sentiu delicadíssimo toque em um de seus ombros.  – “Quem se atrevia a perturbá-la durante suas orações?” – pensou irritada. Mesmo assim, abriu os olhos e voltou a cabeça para o lado esquerdo: uma mulher jovem - algo em torno dos trinta anos - de beleza invulgar sorria com doçura. Trajava elegante luto, com sapatos e luvas negras; na mão o chapéu forrado com renda igualmente negra. Desculpou-se repetidamente e explicou que o vento arrancara-lhe o chapéu e lhe desmanchara o penteado. Mamãe pode confirmar as mechas soltas de um cabelo castanho claro a espalhar-se em profusão por sua testa e rosto. Então veio a frase que conquistou mamãe; disse a estranha: – “Queres ser minha amiga?” Mamãe sorriu e assentiu: – “Sim”. A jovem mulher então solicitou: – “Empresta-me teu pente, para que eu possa ajeitar meu cabelo?” Mesmo atônita, minha mãe abriu a bolsa, buscou pelo artefato e o entregou a solicitante. Ao receber o pente, concluiu a mulher:  – “Sim, não esqueça de incluir-me em tuas orações”. Voltou-se e dirigiu-se à campa que erguia-se na alameda seguinte.

Minha mãe, acompanhou-a com o olhar, viu que ela ajoelhara na sepultura próxima e penteava os cabelos. Não obstante, voltou às suas orações. Ao terminá-las, juntou seus pertences e olhou para a campa onde a estranha se dirigira. O lugar estava ermo; nenhum sinal da mulher. Mamãe então aproximou-se do local. Pasmai: sobre o túmulo, o pente que mamãe emprestara. Minha mãe ainda olhou para a foto presa ao mármore do jazigo e reconheceu a estranha. Mamãe não mais deixou de orar pela nova amiga.     

domingo, 29 de novembro de 2020

Jardineiro

 

Dou início ao brevíssimo ensaio a falar de expectativas. Parece-me que o convívio, seja familiar ou social, nos leva a criar expectativas. Sim, esperamos sempre mais dos outros do que de nós mesmos. Alguma coisa próxima da esperança faz com que acreditemos ter supostos diretos; expectativa é lugar improvável onde trabalha-se com meras probabilidades. Mas enfim, e lamentavelmente, a expectação, na mor parte dos casos, deságua em decepção; sim, as expectativas são fontes de decepções. E como fugir do malogro, da desilusão? Uma resposta puramente racional aconselharia a total descrença, a não expectação, a negação de quaisquer esperanças. E, ipso facto, abandonaríamos também as características de seres humanos.  

Minhas decepções foram muitas; sim, e é bom frisar: minhas decepções. As decepções são de responsabilidade única do expectante; decepcionar deveria ser verbo defectivo, pois conjugado apenas na primeira pessoa. Decepcionei-me com companheiros de trabalho, vizinhos, conhecidos, familiares, amigos (???), etc. Ao tentar resumir, posso dizer que a totalidade das minhas relações foram as fontes de minhas decepções. Então vós, meus prováveis leitores (mais uma expectativa) diríeis: “Tu és o elemento complicador das relações!” Bem, réu confesso que sou, respondo-vos: mea culpa, mea maxima culpa, muito embora certa corrente de pensamento declarar que quando há um mea culpa não há sinceridade. Todavia, tenhamos em conta minha sinceridade: sem querer atribuir a terceiros qualquer culpa por ter-me tornado este “elemento complicador”, garanto-vos que sou fruto de uma sociedade que estimula expectativas. E onde buscar alento em face das desditosas esperanças?

Então descubro-me um jardineiro. Não um Jardineiro Fiel, pois não sou diplomata nem tive qualquer parente assassinado; pretendo nada investigar. Um simples jardineiro! Fiel somente a este introito botânico. Não me envolvo com paisagismo; cuido de jardins. Percebi-me apto e hábil a manusear e conviver com vegetais. Identifico folhas compostas; limbos divididos em folíolos. Não faço distinção entre monocotiledôneas e peninérveas. Nas flores, observo cálices e corolas; estimulo a visita de abelhas, borboletas, demais insetos e aves inseminadoras.  Eu as águo, as limpo, proporciono-lhes minhocas que produzem húmus; eu as adubo, folhas aparo, procedo as podas, as aparto de ervas daninhas. Posso vos afiançar: não há expectativas, não há decepções. Os vegetais não reclamam, não me afrontam, tampouco agradecem. Nossa relação é simples, calada, livre de recursos linguísticos e encenações. Minha realização está em vê-los desenvolverem-se, florirem... Tenho em cada flor uma parte de mim; em cada pequena mudinha a amizade que se me revela; em cada novo botão um filho, se assim o quiserdes.

E a sociedade? perguntar-me-eis. Bem, ocorre-me ser canteiro abandonado, terra maninha, ressequida, infértil; plantas em desalinho, desfiguradas, amarelecidas; flores baldas, murchas e fenecidas.

sexta-feira, 27 de novembro de 2020

Acumuladores

 

A casa erguia-se na esquina de duas avenidas bem movimentadas. A edificação com avarandado no andar superior ocupava o centro do terreno; jardins espalhavam-se por todo o entorno. Ali morava uma mocinha por nome Sônia: pessoa boa, cordata, bem educada. Conheci também seus pais e irmãos. Depois da morte do casal proprietário, os filhos permaneceram na casa; cada qual em seu cantinho. No entanto, pode-se perceber o início de certo hábito comum: algo, no mínimo, intrigante. Falo da acumulação compulsiva. Sim, os quatro irmãos deram início a tal prática. A fazer-me psicólogo amador, entendo que tudo esteja relacionado à morte dos pais; dir-se-ia uma família, de fato, unida; os pais buscaram suprir todas as necessidades e demandas dos filhos. Eles agora, acumulavam coisas a fim de embotar ou até retardar emoções e ansiedades.

Hoje, passados alguns poucos anos, quem transita pelo local, observa um quintal repleto de quinquilharias, caixas, papéis, madeiras, sucatas as mais variadas. Ao se abstrair a atividade econômica, estamos na presença de um “ferro-velho”. O interior da casa, segundo me segredaram, não está diferente. São pilhas de ferramentas, talheres, conjunto de panelas e aparelhos de jantar aos pedaços... O lixo está por toda a parte; os irmãos transitam e dormem, cada um em seu cômodo, rodeados de entulhos, quiçá ratos, baratas, escorpiões, etc. A vizinhança já se mostra incomodada e ameaça buscar ajuda nas autoridades sanitárias.

Coisa triste de se ver. Todavia, em se melhor observando, somos todos acumuladores. Sim, nosso “eu”, que prima por jactar-se, por vezes, quando contrariado, acumula decepções, desagrados, desapontamentos, desilusões. Quantos de nós mantemos abertas certas feridas, e estas, infeccionadas, dão origem as mágoas, aos ressentimentos, aos rancores. Depois da fase odienta, pode-se chegar à limítrofe etapa da vingança. Sim, ao acumularmos as miudezas com que nos deparamos no dia-a-dia, criamos uma espécie de “ferro-velho” existencial. Ao nos vergarmos às imposições do eu”, tornamo-nos numa espécie de adelo, só que de nada abrimos mão, apenas adquirimos. Adquirimos o lixo que, na mor parte das vezes, em nada nos favorece. E vós me perguntais: como nos livrarmos de criar semelhante ferro-velho? como não ser acumuladores? Simples, tenhamos em mente apenas uma coisa: servir! Ao servir, entorpeceremos possíveis emoções e/ou ansiedades.

Et requiem tibi Deus!

quarta-feira, 18 de novembro de 2020

Um bonde chamado Alegria

Em mais um acometimento saudosista, (sintoma de velhice?) permito-me falar do Rio Antigo. Devo preocupar-me? Curioso, pois não me ocupo de atualidades; careço de memória recente. Alzheimer? Sei lá. Mas as memórias antigas são bem mais prazerosas... Talvez por causa do intenso vivido, das relações sem malícia ou afetação. Portanto, fixo-me em meu Rio de Janeiro; não o de agora, mas o de então, aquele que conheci, o que convivi, o que compartilhei.

Eu ainda menino, anos cinquentas... Calças curtas e cabelo à escovinha a acompanhar papai e mamãe em suas visitações. Mais tarde, adolescente, no bonde que muito me conduziu ao colégio. Eu dependurado no estribo, a imitar algum tipo de herói e saltar do vagão em movimento na curva frontal à Ladeira do Vintém, no Meyer. Quanta emoção! Sim, naquela época não havia surf, parapente, asa delta, bungee jump ou similares.

Recordo-me do intenso tráfego de bondes no Tabuleiro da Baiana, Largo da Carioca, entre a Rua Senador Dantas e a Avenida Treze de Maio. Ali era o ponto final; ali eu embarcava para visitar a mãe de uma saudosa tia na Rua Farani, em Botafogo. O bonde, não obstante dito ultrapassado e por muitos demonizado, traz-me tão boas lembranças que, ainda hoje, arrisco-me por Santa Tereza. Lá fico a olhar para suas ruas, pedras, calçamentos, os trilhos...

Dentre tantas lembranças, no entanto, uma mais se destaca: O Bonde Alegria. Uma dúvida: a Rua da Alegria seria alegre ou como todos nós também conheceria a mágoa? Alegria, por vezes, rima com melancolia. Bem, eu embarcava geralmente no Largo da Cancela; ele vinha lotado. Embora bastante jovem, ainda recordo-me de alguns gracejos que a “elite” masculina dirigia às mulheres, haja vista a turbamulta. Eram coisas do tipo: “Sempre haverá um lugar em meu colo” ou então “A senhora pode vir, pois o engate está livre”. Apesar de a pervertida conotação, nosso bonde não se chamava Desejo, e asseguro-vos de que não haviam personagens como Blanche ou Stanley criados por um Tennessee Williams.  

De súbito, meu saudosismo sente-se acanhado, desmotivado; o rótulo de extemporâneo faz-se presente, o real impõe-se e exige reparação. O espírito, então, abate-se, esmorece e conhece algo de tristeza, de abatimento. Todavia, fica a pergunta: por que as boas lembranças sempre são capazes de nos proporcionar o refrigério que a vida, em si, empenha-se em negar?  


terça-feira, 17 de novembro de 2020

Amor de pandemia

 

Sinto-me desconfortável em tratar de semelhante tema, mas algumas coisas criam, por si mesmas, certas demandas. Esta é uma delas! Conceituá-la? Talvez eu nem consiga... Não, em nada se assemelha ao amor de carnaval, aquele que fala em “três dias de folia e brincadeira; você pra lá e eu pra cá até quarta-feira”. Não foram apenas três ou quatro dias... Pensando bem, esse ano “eu não brinquei, você também não brincou”. Fantasias? Não ficaram guardadas; simplesmente não existiram! Mas houve máscaras, e quantas... Pessoas usando máscaras. Como confiar em pessoas - personas (máscaras) a usar máscaras? E como entender o isolamento que quer comunicar-se, que quer convivência?

E fala-se em amor. Poderia, de fato, existir o amor sem a convivência? Seria possível um love home? Como surgiria a admiração entre pessoas - personas (máscaras) - que dispõem apenas de relacionamentos virtuais? Teria lugar o respeito? A falta de confiança, parece-me, subverte o amor. Mas, ... que digo eu? Limitei-me a observar o amor pelo ponto de vista eminentemente humano. Há que se entender o amor como sentimento que transcende toda humanidade; que de si mesmo alimenta-se; o amor não se preocupa em ser amado, pois mantém-se à custa de sua própria substância. Sim, embora de difícil compreensão, o amor simplesmente ama. Não nos preocupemos, portanto, em conceituar o amor, conhecer sua essência ou entender seu porquê. O amor é como a rosa de Silesius. Assim como o amor, “A rosa não tem porquê. Floresce porque floresce. Não cuida de si mesma. Nem pergunta se alguém a vê...”


segunda-feira, 16 de novembro de 2020

O tempo como recurso

 

A falta de assunto, a apatia provocada pela obrigação de ser simpático, ou até mesmo o desinteresse por qualquer informação advinda dos que nos são indiferentes, faz com que falemos do tempo. Leandro Karnal há pouco nos falou algo similar. E a coisa começa mais ou menos assim, geralmente em um elevador ou em ambiente que não permite o escape furtivo: “Bom Dia!” Alguém responde: “Bom Dia!” E o diálogo prossegue: “Está quente hoje, não?” E o outro responde: “É, acho que vem uma chuvinha por aí no final da tarde”. Sim, as previsões meteorológicas são permitidas. Todavia, não fazei como certa apresentadora que, além das previsões mentirológicas, deu-se ao desplante de criar neologismo, ao prever uma chuvica para o início da noite.

Fato curioso: uns falam em final da tarde, outros em início da noite. Mas, não se trata da mesma coisa? Ou entre estes haveria um breve lapso de tempo, o eterno desencontro entre Isabeau e Etienne em O Feitiço de Áquila? As relações sociais impostas deveriam assimilar a síndrome da não interação entre a águia e o lobo. Estranho, ... ainda falamos de tempo. Não mais do clima, evidentemente, mas do espaço que se interpõe aos acontecimentos. Sim, no romance citado, manifesta-se outro tipo de tempo: o tempo psicológico. Krishnamurti nos alerta: A distância entre o amante e o ser amado cria um tempo psicológico, pois que essa distância é nada mais que desejo, posse ...  Isso traduz-se como sofrimento. Poetas vários já declararam: “Amar é sofrer”.

Não obstante, amor e posse são inconciliáveis. Seres humanos, contudo, talvez devido à própria limitação, mostram-se obstinados na conciliação de desarmônicos, onde a polissemia é recurso profícuo. Já percebestes que a própria limitação humana faz com que, a título de dominar o conhecimento, busca a tudo mensurar? Os seres humanos querem mensurar, inclusive, o tempo. Como? De modo arbitrário criam medidas, convenções. E isso é possível? O tempo passado já não existe, o tempo presente não tem extensão, o tempo futuro ainda não existiu. Santo agostinho deve ter-se rido à larga com as patranhas dos que se lhes assemelhava.  

E na presente atmosfera (que também é tempo) percebo o surgimento de uma tormenta, um temporal (outra vez o tempo). Transitório porque prenhe de obrigações; a simpatia como obrigação; a solidariedade como imposição. A tormenta a que me refiro tem sentido figurado, pois significa agitação, tumulto, episódios que em muito destoam e destoarão de minha realidade, pois que vivo em outro tempo. Vivo em paisagens eivadas de branca areia, coqueiros e jandaias; eu não vivo a agressividade, não vivo o reformismo... Eu vivo o estar incauto em nômades acampamentos; eu vivo o deixar fazer-se poeta pela própria natureza e não pela crueza... de relações, de sentimentos.  

Oxalá, nesse caso, o tempo se me revele seu mais implacável e bem-vindo recurso: as cãs, as rugas, as limitações, o caminhar lento e olhares profundos a demonstrar cansaço, talvez algo furtivo, talvez lasso. A velhice é o tempo a demonstrar sabedoria: ele nos vem arrebatar para que não soframos os desgastes de novas circunstâncias, nem para que nos submetamos ao ridículo de uma imposição modal. O tempo, enfim, vem nos brindar com seu mais valoroso troféu: o depreciado e decantado funeral.

sábado, 14 de novembro de 2020

Comer faz mal à saúde

 

Não vou perder meu tempo em apontar os malefícios causados pelos alimentos industrializados. E aqui refiro-me pontualmente às refeições prontas e congeladas, aos alimentos embutidos, aos caldos e temperos, aos biscoitos recheados, aos salgadinhos, às margarinas, refrigerantes, adoçantes artificiais, pipocas de micro-ondas, macarrão instantâneo. As frituras, de fato, são prejudiciais. Existem ainda os que veem no churrasco um inimigo, afrontando a gauchada sôfrega por carnear.

O açúcar e o chocolate ficam interditos não só aos diabéticos. Nada obstante, vem a turma que coloca-se contra os pães, principalmente o pão branco, dizendo-o muito calórico, responsável por altas taxas de glicose, aumento de peso, glúten, etc. e que prejudicam a pele. Mas a pele também pode ser afetada pelo açúcar e sal refinados, temperos industrializados, pela soja, pela pizza, o hambúrguer (carnes vermelhas) e bebidas alcoólicas.

Sim, e por falar em carne, o excesso de proteína prejudica os rins. Portanto, abstenhamo-nos de carnes vermelhas, brancas, de peixe, de leite e ovos. As carnes vermelhas são prejudiciais também ao fígado, assim como a manteiga, queijos, leite integral, iogurtes com açúcar. Por outro lado, nosso coraçãozinho pode sofrer com os hambúrgueres de fast food, com as carnes processadas, doces, biscoitos, bolos, pizza. Nossos olhos jamais voltarão a lançar o famoso “olhar 43” se em presença de óleos vegetais, açúcares e boas doses de vinho.

Bem, a batata inglesa há muito foi defenestrada; tornou-se a vilã por conta de um novo imperativo estético. Sim, e depois de frita, produz acrilamida, uma substância altamente tóxica e nociva à saúde. Mas...e a batata doce? Dizem que a vitamina A nela abundante, quando armazenada pelo corpo, faz com que pele e unhas ganhem cor alaranjada. Oh, my God! The Orange is a new black! Mas a pobre da batatinha doce, por possuir oxalato, contribui para a formação de cálculos renais.

Ficamos por aqui? Não, a berinjela tem muito fósforo, a cenoura pode causar hipertensão. Ervilha e espinafre, por conta do muito fitato, impedem a absorção de seus próprios nutrientes. Não vos enganeis com as aparências, pois apesar do aspecto angelical, alimentos ricos em purina pode provocar gota úrica, inclusive, aumentando sobremodo as dores. E atenção: o pimentão pode causar inflamação. O trigo, a aveia e a cevada possuem glúten, sem contar que a ingestão de grãos, haja vista o flato, prejudicam o meio ambiente.

Sabíeis que existem frutas consideradas tóxicas e que podem afetar rins, estômago, intestino e até o pulmão? Sim, são elas: a banana, por causa do potássio, a cereja, porque pode liberar ácido cianídrico, o tomate e seu glicoalcaloide, maçãs, pêssegos e ameixas possuem cianeto, o melão agrava a candidíase e a carambola pode causar desordem neurológica. Atônito, descobri que o excesso de frutas faz mal. Nesse caso, a salada de frutas tornar-se-ia um prazeroso tipo de castigo a ser ministrado aos sentenciados.

O curioso, entretanto, é que ninguém, em momento algum, questionou as práticas utilizadas no plantio, semeadura, manutenção de lavouras, hortos e experiências laboratoriais da indústria alimentícia; coisa do tipo: pesticidas, fertilizantes sintéticos, o lodo, a água provinda de esgoto, os organismos geneticamente modificados, as radiações ionizantes e um abrangente etc.  

Bem, eu, cientista amador que sou, pesquisador insipiente quiçá, pautado nos presentes dados, por inferência, sou levado a declarar o insólito: comer faz mal à saúde!  

quinta-feira, 12 de novembro de 2020

O Estado multifacetado

As pessoas parecem não ver, ou fingem que não veem as diversas faces do Estado. Sim, redigiram uma Constituição tendenciosa, eivada de ideologia, preocupada em dificultar punições nos que se acreditam inatingíveis. Para isso, usaram como recurso leis que dizem proteger o povo menos esclarecido e de menor poder aquisitivo. Apesar de massa de manobra, esse povo precisava ver-se beneficiado. Foram tantas as vantagens aventadas que a dita “Constituição Cidadã” não cabe no nosso PIB. E qual seria a saída? Simples: incentiva-se a proliferação de ONGs. As Organizações Não Governamentais, pelo menos oficialmente, buscam dar cumprimento às “preocupações constitucionais”. Enfim, o Estado fez-se terceirizado. E aqui permito-me uma paráfrase: Triste da nação que precisa de ONGs!

Mas não paramos por aí. Temos ouvido reiteradamente sobre a existência de um estado paralelo, principalmente nas grandes capitais do país. Esse estado estaria ligado ao crime organizado. Ora, o Estado mesmo nega a existência de tal paralelismo. Todavia, ao negar a existência de um estado paralelo, ele praticamente está sendo permissivo com a existência do que diz não existir. Sim, o Estado não pode concordar abertamente com a existência da dimensão paralela, porque, na verdade, o estado dito paralelo não é paralelo; ele faz parte do próprio Estado. Se assim não fosse, por que alguns “gestores” do poder público, em nome da “democracia”, sentar-se-iam com os chefões do crime organizado para estabelecerem uma trégua? Por que políticos permitem ser financiados pelo crime organizado, se o crime organizado não fizesse parte do Estado?

Uma outra face do Estado é revelado pela milícia. Ora, quem compõe a milícia? Militares, policiais militares, ex-militares, ex-policiais militares. Por que? Simples, a face oculta do poder de polícia, que reveste-se de plena autoridade para dar combate ao crime. De fato? Não! São apenas criminosos travestidos de autoridades, que buscam recursos nas mais diversas atividades cíveis, pois necessitam destes recursos para sobreviverem ao crime organizado que dizem combater. A milícia, oficiosamente, tem suporte do próprio Estado, pois que este carece de quem lhes execute o “serviço sujo”.  

Bem, no momento só nos resta perguntar pela verdadeira face de nosso Estado. E o que temos como resposta? Um Frankenstein. Sim, eis a melhor imagem de uma nação que ainda não desaprendeu a ser colônia, que não amadureceu, um país de Peter Pans, que prima pela irresponsabilidade e disso se envaidece, que importa ideias e noções, que mescla valores e ideologias as mais díspares, que brinca de democracia enquanto seus políticos, juízes e gestores vilipendiam sua gente - o povo, o cidadão - e também a própria nação.


sexta-feira, 6 de novembro de 2020

A Coletivização da Estultice

 

Trata-se de processo lento, amplo e deveras abrangente. Diferentemente do que possa parecer, a estultice pode ser implantada e também coletivizada. O processo parece ter tido vários inícios ou reinícios, e ainda deve diversificar-se; tudo vai depender dos interesses em foco. Pois bem, vou, portanto, falar de um destes inícios ou de um reinício em particular: refiro-me ao movimento hippie. E o que seria este movimento em sua origem? A coisa começou ainda nos anos cinquentas como uma espécie de comportamento contra cultural e acabou por tomar vulto. Na década de 60, os hippies pregavam o amor e o pacifismo, donde o lema Peace and Love, o respeito à natureza, o retorno à vida simples, o não ao consumismo e, o mais importante, colocavam-se contra a industrialização. Pergunto-vos: será que isso contrariava algum interesse? Lógico, principalmente as indústrias bélica e alimentícia. Primeira providência: demonizar o movimento. Sim, os hippies foram vinculados às drogas, aos desvarios sexuais, à falta de asseio corporal, à irresponsabilidade, à inconsequência, ao não comprometimento, à ociosidade, à vadiagem. E o movimento enfraqueceu... Hoje temos apenas alguns moradores de rua, despreocupados, sem quaisquer vaidades. Existem ainda alguns artesãos com família e moradia fixa.

Mas a industrialização, em contrapartida, conhece seu melhor momento. Com os tratados de não proliferação de armas e tantas discussões, muito embora estéreis em seu cerne, o belicismo parece - pelo menos parece - estar em queda, mas a indústria alimentícia desenvolveu-se e trouxe à reboque a indústria farmacêutica. O discurso da industrialização centra-se no respeito ao próximo com a melhor distribuição de alimentos e remédios ao mundo. Verdade? E a fome que, passadas tantas décadas, ainda mata aos milhares em países do chamado “terceiro mundo”? E as epidemias que dizimam populações inteiras em locais menos favorecidos? E o pior de tudo é a proliferação de hábitos e mentalidades absurdas. Exemplo? O discurso que o leite ao natural é nocivo, porque carrega microrganismos que podem afetar a saúde humana. Contudo, promovem a venda e distribuição de laticínios em embalagem tetrapak. O leite natural, que entra em processo de decomposição em menos de 24 horas, pode durar meses nas ditas embalagens. A troco de quê? E haja produtos químicos! A estultícia corrobora com toda esta farsa. E a fome continua a matar pelo mundo...

Os “bem alimentados”, entretanto, tornam-se intolerantes à lactose. Seria cômico, se não fosse triste. Aí a indústria alimentícia cria o leite sem lactose - o mesmo que criar um ferro que não enferruja ou a água que não molha - e os “bem alimentados e informados” pagam mais pelo engodo. A isso junta-se a indústria farmacêutica, especialíssima em criar “poções mágicas” para cuidar dos males “pós-modernos”. E os estultos pagam também por isso. Com a campanha contra os agrotóxicos e a presença dos ecologistas de plantão, a indústria de alimentos arranjou uma saída: os produtos naturais, os alimentos orgânicos. Estes custam “os olhos da cara” e beneficiam somente os de alto poder aquisitivo. E os demais? A indústria farmacêutica vem em socorro. Aqui permito-me um interregno para chamar vossa atenção para um detalhe: As indústrias alimentícias e farmacêuticas pertencem a algumas poucas famílias. Interessante, não?

Ficamos por aqui? Não, discorramos um pouquinho mais... Neste passo, permito-me fornecer-vos uma receita de rabanadas. Pois bem. Minha mãe assim o fazia: o pão duro cortado em fatias, mergulhado no leite quente com cravo e canela em pau. Depois de escorrido era passado em ovos batidos, frito em gordura quente e depois coberto com açúcar e canela em pó. Como bom filho que agora sou, busco fazer exatamente a receita da mamãe. Não consigo; é diferente. A diferença está no pão. Já percebestes que o pão “pós-moderno” demora a endurecer? Isso mesmo. Quando o pão “duro” fatiado é mergulhado no leite, ele desfaz-se; não temos como escorrê-lo como manda a receita original. O leite deve ser apenas aspergido sobre o pão. Pergunta-se: Por que? Evidentemente houve qualquer modificação no trigo, na farinha de trigo, acredito que por conta das experiências genéticas propostas pela indústria alimentícia preocupada em erradicar a fome no mundo (tento não esboçar sorriso). E os especialistas, estudantes, formandos e formados pelas universidades espalhadas pelo mundo, repetem e sustentam à exaustão os mantras com os quais foram educados: alergia ao glúten. E a indústria alimentícia cria uma nova fonte de rendas: alimentos sem glúten! A indústria farmacêutica, por sua vez, traz o “tiro de misericórdia”: medicamentos para minimizarem o efeito do glúten no organismo. Perdoem-me, mas aqui permito-me rir. Não um sorriso de contentamento, mas algo voltado ao deboche, ao escárnio, porque é a única coisa que o estulto merece.

O processo de coletivização da estultice dá-se por inteiro com a ajuda da internet, redes sociais e seus sequazes. Mesmo o leigo encontra respaldo na cultura oferecida no Google - a mesma cultura de compêndio disponibilizada aos acadêmicos -; o ignorante é capaz de repetir ipsis litteris todas as “máximas” da degradação humana ali presente. Um outro recurso utilizado pelas grandes indústrias é, com auxílio da mídia e “especialistas”, espalhar o pânico. Exemplo: o câncer de pele. E a indústria farmacêutica demonizou o Sol e criou o protetor solar fator 2000 (risadas). E a estultícia corrobora tudo o que foi dito e passa a consumir protetor solar. E o organismo humano? Como produzir Vitamina D, ou seja, aumentar a imunidade? Aí a mesma indústria tem a solução: ele cria um sucedâneo artificial à vitamina D. Quem não tem recursos para adquirir, fica com a imunidade baixa e exposto a qualquer vírus de origem suspeita e de passaporte chinês, haja vista o Covid19.

Para se ter uma ideia da eficácia do processo, os mais criteriosos dentre os estultos promovem e contemplam o uso de bebidas artificiais em detrimento aos sucos naturais, amparados na falácia que identifica perigo no aumento das taxas de glicose. Bem, certo de que já falei o suficiente, deixo-vos entregue ao seguinte questionamento: A que se deve atribuir o aumento em progressão geométrica dos casos de diabetes? Por que o mundo está repleto de obesos? O que pode provocar tantos casos de hipertensão? Como explicar o aumento exponencial nos casos de câncer? Por que o retorno de doenças tido por erradicadas? Espero que ainda sejais capazes de perguntar a vós mesmos se o que divulgam é, de fato, verdade.  

quarta-feira, 4 de novembro de 2020

A Confraria do Caldo de Cana

 

Foi uma mensagem breve, sucinta, na qual eu noticiara a moenda recém adquirida e instalada, a cana colhida, o sumo extraído e o quanto essa “paisagem” estaria vinculada à minha infância e adolescência. Em verdade, a “paisagem” de que falo é nada mais que memória; memória involuntária ligada a imagens, cheiros e sabores. Eu, ciente de minha não originalidade, pois que Marcel Proust, através do aroma das madeleines pode reviver toda sua infância, surpreendi-me sobremodo foi com a repercussão dentre os familiares, pois que a todos a narrativa despertou sentimentos tão homogêneos. Não estou bem certo tratar-se de uma confraria ... talvez uma irmandade, um sodalício ou algo que o valha. O fato é que há um laço em comum, inconsciente por certo, a nos unir, irmãos e primos nascidos nos idos dos anos cinquentas e membros de uma mesma família.  

E lá estávamos nós, pequenos, encantadoramente irresponsáveis, a nadar no córrego próximo, a correr pela pequena chácara, a perseguir aves, a subir, dependurar e balançar em árvores. A amendoeira a sustentar um bando de meninos em seus galhos. As mães e a avó, aos gritos, a exigir um mínimo de correção em face das provocações dentre a pirralhada; os pais e o avô a instalarem a moenda manual. E foi extraído o primeiro caldo; todos queriam ser os pioneiros a provar do néctar da cana de açúcar. Os pais se revezavam no exercício estafante proposto pela moenda e sua finalidade; sempre havia alguém que gostaria de beber mais um pouquinho. E junto a tudo isso vinha a amizade, a alegria, a descontração, a camaradagem, o respeito... Eis a origem do inequívoco e irrefletido laço.

Aqui volto a pensar em Proust; ele estava “Em busca do Tempo Perdido”. Eu não, e creio que nenhum de nós, membros da suposta confraria, entenderá o tempo, o nosso tempo, como perdido. Os que permearam aquele tempo, nossos ascendentes, foram personagens exemplares. O agradável da memória é a consciência que temos dela. Esta consciência, por certo, é quem estimula o irrefletido, a espontaneidade da pretendida confraria. Preocupações com o tempo passado? Não, mas com o tempo futuro. Por que? Que imagens, aromas e sabores norteiam, acompanham e acompanharão as novas gerações? Que mensagens, cheiros e paladares vamos legar a nossos descendentes?

Bem, perante a similaridade de sentimentos incitados por minha proto narrativa, a responsabilizar-me, inclusive, pelo bem estar dos familiares/personagens e leitores deste breve texto, afirmo-vos de que o açúcar contido na cana não é refinado e possui baixo índice glicêmico. Ficai, portanto, à vontade quanto à degustação. Nada obstante, muito embora não consigamos transmitir o vivenciado, busquemos, pelo menos, repassar nossos sabores e aromas de modo a torná-los vívidos às gerações seguintes.     

terça-feira, 3 de novembro de 2020

Escudeiro

 

Houve um tempo, e aqui refiro-me aos primórdios, em que seres humanos tinham deuses para tudo. Estes, entretanto, dada à condição de superioridade e distanciamento proporcionado pelo Olimpo, foram substituídos por heróis. Todavia, os tais heróis, nada mais nada menos que filhos de deuses com humanos, bastardos na verdade, manifestavam as mesmas paixões que qualquer mortal. Então tem lugar o advento de um único Deus. Destarte, despontam homens a dizerem-se representantes deste único Deus, tornando-O um déspota em clima de ditadura divina. A humanidade, portanto, passa a negá-Lo, e isso amparado pelo discurso dito racional e pelo conhecimento científico. Ateus militantes, inclusive, anunciam a morte de Deus, se bem que incapazes de definir a data do acontecimento. A celebração de sua morte mostra-se como espetáculo aêmero.

Mas o vivenciar da ciência não tornou melhor a humanidade, nem mesmo trouxe a prometida felicidade. Em virtude disso, seres humanos começaram a fazer da política uma tábua de salvação. A política, no entanto, é feita por políticos, que - como diria minha falecida mãe - “não são flores que se cheire”. Pergunta-se: onde a humanidade buscaria algum alento? De início apelou-se para a ética, mas grave crise de valores lançou por terra tais esperanças; a crise mesma culminou em criar obstáculos à aplicação das leis. E a humanidade cada vez mais perdida.

Então o ser humano decidiu tornar-se o único referencial; uma total relativização. Teve lugar o individualismo exacerbado, a projeção social, a vaidade desmedida, o interesse particular acima das demandas sociais. Num ambiente em que todos desejam tornar-se celebridade, cresce sobremodo a atividade cínica, os discursos empolados. Agrava-se a falácia sofística que diz buscar a perfeição humana, prega-se a retidão das ações, o respeito aos semelhantes, exalta-se o amor à família, a piedade com os menos favorecidos, preconiza-se a meiguice, a bondade com crianças e mulheres, clama-se por justiça e lealdade... Qual nada, apenas gongorismo retórico!

Contudo, em se melhor observando todo este caudal de virtudes postuladas pela retórica pós-moderna, pode-se perceber o código dos Cavaleiros da Távola Redonda. Perdoai-me, mas permito-me rir a valer, pois estou certo que dentre os fanfarrões verborrágicos não encontrarei nenhum similar de Parsifal ou Lancelot. Nem mesmo um Dom Quixote, pois este, pelo menos, fora um idealista, não um vigarista. Não obstante, muitos poderão incorporar a designação de “Triste figura”.

O que vos proponho, afinal? Não, não me ocupo com críticos; a estes respondo que não se trata de paliativo. Preocupo-me sim, instar omnium, com as consequências de uma sociedade que está a manifestar-se cada vez mais de modo irresponsável. E vós me perguntais: Mas o que é necessário? E eu vos respondo: A vontade aliada àqueles valores vistos como ultrapassados. Ultrapassados? Mas mostram-se atualíssimos e tão presentes nos discursos arrojados dos que se projetam e auto-intitulam celebridades.

Sejamos escudeiros! Escudeiros? Sim, escudeiros; não um Sancho Pança.  Observemos o conceito. Partilhemos dos valores pregados pelos cavaleiros, mas aliemos os valores às nossas ações. Não estabeleçamos diferenças entre assertivas e ações. Coloquemo-nos em posição diferenciada, acima da condição dos que se pretendem cavaleiros. Deixemos a condição de knight para nos tornarmos um quase gentleman. A propósito, escudeiro foi um dos primeiros títulos da extinta nobreza.

domingo, 1 de novembro de 2020

Lenitivo

 

O som característico de mensagens. Volto-me indolente: o celular; é meu irmão. Ainda com certo desleixo observo a tela do aparelho. Súbito, sou extraído daquela primeira indiferença: as fotos expõem a coleção de discos clássicos que pertencera a meu pai. Lá estão J. S. Bach, Schubert, Vivaldi... Pasmo, teclo em resposta uma série de interrogações. Aguardo ansioso... ainda não... ele está digitando. Mais um pouco e a mensagem surge: “Coloquei à venda; estou a precisar de dinheiro”. Lancei o telefone sobre a cama e permiti-me lamentar. Eis meu retorno ao desalento. Enfim, que poderia eu fazer? Aquilo nos fora o legado, não herança. Mas estava na casa dele; a ele pertencia...

Pus-me a pensar: a obra de arte, por si mesma, impõe certo tipo de relação com os seres humanos; a coisa vai muito além da posse, transcende a propriedade. Certa feita, ao assistir “O Carteiro e o Poeta”, filme baseado na obra de Antonio Skármeta, aprendi que a arte é para quem precisa dela. Depois de divulgada, a obra emancipa-se de seu autor, de seu idealizador; torna-se de domínio público. Mas o ser humano deve fazer por merecer a arte; deve haver interação, solidariedade, cumplicidade entre objeto e admirador, e meu irmão, infelizmente, não preenche tais requisitos. Mesmo ciente dos entraves jurídicos, insisto em pensar que aquela coleção deveria ser minha, pois eu precisava dela. Eu não falo em posse, em contato ou proximidade; eu falo em merecer dizê-la minha. Mas... que operador do direito entenderia este conceito?

E assim fiquei a cismar até o fim do dia. O início da noite igualmente desagradava-me. Recordo-me de ter orado; uma oração mista de mágoa e comedimento. Eu suplicara a Deus pela manutenção do legado. Certo estou de que Ele entendeu meu arrazoado, muito embora não tenha atendido minha reivindicação. Mas Deus tem lá suas razões, seus motivos insondáveis. O sono buscou fazer-se ausente, regateou, custou, e por fim rendeu-se. Eu rendi-me.

E veio o sonho. Em resposta à minha súplica, tornei-me personagem de um dos contos das Mil e Uma Noites de Scheherazade. Sim, era um Simbad e dançava com desembaraço o Largo e maestoso e o Allegro non troppo da primeira parte da suíte composta por Rimsky-Korsakov. Ainda no ambiente russo, vi-me como um quebra-nozes vestido de soldado. Experimento sorrir para Clara, minha neta, assim como o personagem sorria para a protagonista Clara do ballet composto por Tchaikovski. Contudo, deixo o Reino dos Doces e vejo-me a caminhar sob a luz do luar, ao som da sonata nº 14 para piano de Beethoven, a famosa Sonata ao Luar. Debussy continua a encantar-me com seu Clair de Lune. Todavia, o espetáculo não perdura. A noite cede espaço e surge uma amanhecer primaveril acompanhado por Vivaldi... mesmo em sonho eu me perguntava: O que mais estaria por vir?

Então desponta uma paixão arrebatadora, algo adolescente, embalado pelo Liebestraum de Franz Liszt. Mas a paixão, aliás como toda paixão, conhece seu apogeu e, ipso facto, seu final, muito embora Schubert nos tenha brindado com a apaixonante Inacabada. Ao longe, percebo o aproximar-se de Brahms a encantar-nos com seu Concerto nº 2 para piano. Chopin dá sequência a meu fantástico devaneio com sua valsa op. 64, nº 2. Acordes de O Guarani revelam-me um Carlos Gomes visceral, heroico. Meu sonho, contudo, não estaria vinculado à rogativa feita ao Senhor se não terminasse acalentado por Bach com sua Tocata e Fuga em Ré Menor.

Despertei. O ambiente o mesmo; as circunstâncias outras. O sonho, de algum modo, respondera a meus questionamentos, mitigara impressões, amainara as expectativas, instara a perdoar meu irmão por seu pragmatismo ou não sensibilidade. Senti-me bem, senti-me em paz. Não mais o sentimento de perda em relação à coleção que fora de papai; não mais a necessidade de dizê-la minha. Percebi, então, que a música estava em mim; este fora o legado. Ela, a música, habitava-me; isso bastava-me. Sentei-me no leito e agradeci a Deus.