segunda-feira, 16 de novembro de 2020

O tempo como recurso

 

A falta de assunto, a apatia provocada pela obrigação de ser simpático, ou até mesmo o desinteresse por qualquer informação advinda dos que nos são indiferentes, faz com que falemos do tempo. Leandro Karnal há pouco nos falou algo similar. E a coisa começa mais ou menos assim, geralmente em um elevador ou em ambiente que não permite o escape furtivo: “Bom Dia!” Alguém responde: “Bom Dia!” E o diálogo prossegue: “Está quente hoje, não?” E o outro responde: “É, acho que vem uma chuvinha por aí no final da tarde”. Sim, as previsões meteorológicas são permitidas. Todavia, não fazei como certa apresentadora que, além das previsões mentirológicas, deu-se ao desplante de criar neologismo, ao prever uma chuvica para o início da noite.

Fato curioso: uns falam em final da tarde, outros em início da noite. Mas, não se trata da mesma coisa? Ou entre estes haveria um breve lapso de tempo, o eterno desencontro entre Isabeau e Etienne em O Feitiço de Áquila? As relações sociais impostas deveriam assimilar a síndrome da não interação entre a águia e o lobo. Estranho, ... ainda falamos de tempo. Não mais do clima, evidentemente, mas do espaço que se interpõe aos acontecimentos. Sim, no romance citado, manifesta-se outro tipo de tempo: o tempo psicológico. Krishnamurti nos alerta: A distância entre o amante e o ser amado cria um tempo psicológico, pois que essa distância é nada mais que desejo, posse ...  Isso traduz-se como sofrimento. Poetas vários já declararam: “Amar é sofrer”.

Não obstante, amor e posse são inconciliáveis. Seres humanos, contudo, talvez devido à própria limitação, mostram-se obstinados na conciliação de desarmônicos, onde a polissemia é recurso profícuo. Já percebestes que a própria limitação humana faz com que, a título de dominar o conhecimento, busca a tudo mensurar? Os seres humanos querem mensurar, inclusive, o tempo. Como? De modo arbitrário criam medidas, convenções. E isso é possível? O tempo passado já não existe, o tempo presente não tem extensão, o tempo futuro ainda não existiu. Santo agostinho deve ter-se rido à larga com as patranhas dos que se lhes assemelhava.  

E na presente atmosfera (que também é tempo) percebo o surgimento de uma tormenta, um temporal (outra vez o tempo). Transitório porque prenhe de obrigações; a simpatia como obrigação; a solidariedade como imposição. A tormenta a que me refiro tem sentido figurado, pois significa agitação, tumulto, episódios que em muito destoam e destoarão de minha realidade, pois que vivo em outro tempo. Vivo em paisagens eivadas de branca areia, coqueiros e jandaias; eu não vivo a agressividade, não vivo o reformismo... Eu vivo o estar incauto em nômades acampamentos; eu vivo o deixar fazer-se poeta pela própria natureza e não pela crueza... de relações, de sentimentos.  

Oxalá, nesse caso, o tempo se me revele seu mais implacável e bem-vindo recurso: as cãs, as rugas, as limitações, o caminhar lento e olhares profundos a demonstrar cansaço, talvez algo furtivo, talvez lasso. A velhice é o tempo a demonstrar sabedoria: ele nos vem arrebatar para que não soframos os desgastes de novas circunstâncias, nem para que nos submetamos ao ridículo de uma imposição modal. O tempo, enfim, vem nos brindar com seu mais valoroso troféu: o depreciado e decantado funeral.

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