domingo, 1 de novembro de 2020

Lenitivo

 

O som característico de mensagens. Volto-me indolente: o celular; é meu irmão. Ainda com certo desleixo observo a tela do aparelho. Súbito, sou extraído daquela primeira indiferença: as fotos expõem a coleção de discos clássicos que pertencera a meu pai. Lá estão J. S. Bach, Schubert, Vivaldi... Pasmo, teclo em resposta uma série de interrogações. Aguardo ansioso... ainda não... ele está digitando. Mais um pouco e a mensagem surge: “Coloquei à venda; estou a precisar de dinheiro”. Lancei o telefone sobre a cama e permiti-me lamentar. Eis meu retorno ao desalento. Enfim, que poderia eu fazer? Aquilo nos fora o legado, não herança. Mas estava na casa dele; a ele pertencia...

Pus-me a pensar: a obra de arte, por si mesma, impõe certo tipo de relação com os seres humanos; a coisa vai muito além da posse, transcende a propriedade. Certa feita, ao assistir “O Carteiro e o Poeta”, filme baseado na obra de Antonio Skármeta, aprendi que a arte é para quem precisa dela. Depois de divulgada, a obra emancipa-se de seu autor, de seu idealizador; torna-se de domínio público. Mas o ser humano deve fazer por merecer a arte; deve haver interação, solidariedade, cumplicidade entre objeto e admirador, e meu irmão, infelizmente, não preenche tais requisitos. Mesmo ciente dos entraves jurídicos, insisto em pensar que aquela coleção deveria ser minha, pois eu precisava dela. Eu não falo em posse, em contato ou proximidade; eu falo em merecer dizê-la minha. Mas... que operador do direito entenderia este conceito?

E assim fiquei a cismar até o fim do dia. O início da noite igualmente desagradava-me. Recordo-me de ter orado; uma oração mista de mágoa e comedimento. Eu suplicara a Deus pela manutenção do legado. Certo estou de que Ele entendeu meu arrazoado, muito embora não tenha atendido minha reivindicação. Mas Deus tem lá suas razões, seus motivos insondáveis. O sono buscou fazer-se ausente, regateou, custou, e por fim rendeu-se. Eu rendi-me.

E veio o sonho. Em resposta à minha súplica, tornei-me personagem de um dos contos das Mil e Uma Noites de Scheherazade. Sim, era um Simbad e dançava com desembaraço o Largo e maestoso e o Allegro non troppo da primeira parte da suíte composta por Rimsky-Korsakov. Ainda no ambiente russo, vi-me como um quebra-nozes vestido de soldado. Experimento sorrir para Clara, minha neta, assim como o personagem sorria para a protagonista Clara do ballet composto por Tchaikovski. Contudo, deixo o Reino dos Doces e vejo-me a caminhar sob a luz do luar, ao som da sonata nº 14 para piano de Beethoven, a famosa Sonata ao Luar. Debussy continua a encantar-me com seu Clair de Lune. Todavia, o espetáculo não perdura. A noite cede espaço e surge uma amanhecer primaveril acompanhado por Vivaldi... mesmo em sonho eu me perguntava: O que mais estaria por vir?

Então desponta uma paixão arrebatadora, algo adolescente, embalado pelo Liebestraum de Franz Liszt. Mas a paixão, aliás como toda paixão, conhece seu apogeu e, ipso facto, seu final, muito embora Schubert nos tenha brindado com a apaixonante Inacabada. Ao longe, percebo o aproximar-se de Brahms a encantar-nos com seu Concerto nº 2 para piano. Chopin dá sequência a meu fantástico devaneio com sua valsa op. 64, nº 2. Acordes de O Guarani revelam-me um Carlos Gomes visceral, heroico. Meu sonho, contudo, não estaria vinculado à rogativa feita ao Senhor se não terminasse acalentado por Bach com sua Tocata e Fuga em Ré Menor.

Despertei. O ambiente o mesmo; as circunstâncias outras. O sonho, de algum modo, respondera a meus questionamentos, mitigara impressões, amainara as expectativas, instara a perdoar meu irmão por seu pragmatismo ou não sensibilidade. Senti-me bem, senti-me em paz. Não mais o sentimento de perda em relação à coleção que fora de papai; não mais a necessidade de dizê-la minha. Percebi, então, que a música estava em mim; este fora o legado. Ela, a música, habitava-me; isso bastava-me. Sentei-me no leito e agradeci a Deus.

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