quarta-feira, 18 de novembro de 2020

Um bonde chamado Alegria

Em mais um acometimento saudosista, (sintoma de velhice?) permito-me falar do Rio Antigo. Devo preocupar-me? Curioso, pois não me ocupo de atualidades; careço de memória recente. Alzheimer? Sei lá. Mas as memórias antigas são bem mais prazerosas... Talvez por causa do intenso vivido, das relações sem malícia ou afetação. Portanto, fixo-me em meu Rio de Janeiro; não o de agora, mas o de então, aquele que conheci, o que convivi, o que compartilhei.

Eu ainda menino, anos cinquentas... Calças curtas e cabelo à escovinha a acompanhar papai e mamãe em suas visitações. Mais tarde, adolescente, no bonde que muito me conduziu ao colégio. Eu dependurado no estribo, a imitar algum tipo de herói e saltar do vagão em movimento na curva frontal à Ladeira do Vintém, no Meyer. Quanta emoção! Sim, naquela época não havia surf, parapente, asa delta, bungee jump ou similares.

Recordo-me do intenso tráfego de bondes no Tabuleiro da Baiana, Largo da Carioca, entre a Rua Senador Dantas e a Avenida Treze de Maio. Ali era o ponto final; ali eu embarcava para visitar a mãe de uma saudosa tia na Rua Farani, em Botafogo. O bonde, não obstante dito ultrapassado e por muitos demonizado, traz-me tão boas lembranças que, ainda hoje, arrisco-me por Santa Tereza. Lá fico a olhar para suas ruas, pedras, calçamentos, os trilhos...

Dentre tantas lembranças, no entanto, uma mais se destaca: O Bonde Alegria. Uma dúvida: a Rua da Alegria seria alegre ou como todos nós também conheceria a mágoa? Alegria, por vezes, rima com melancolia. Bem, eu embarcava geralmente no Largo da Cancela; ele vinha lotado. Embora bastante jovem, ainda recordo-me de alguns gracejos que a “elite” masculina dirigia às mulheres, haja vista a turbamulta. Eram coisas do tipo: “Sempre haverá um lugar em meu colo” ou então “A senhora pode vir, pois o engate está livre”. Apesar de a pervertida conotação, nosso bonde não se chamava Desejo, e asseguro-vos de que não haviam personagens como Blanche ou Stanley criados por um Tennessee Williams.  

De súbito, meu saudosismo sente-se acanhado, desmotivado; o rótulo de extemporâneo faz-se presente, o real impõe-se e exige reparação. O espírito, então, abate-se, esmorece e conhece algo de tristeza, de abatimento. Todavia, fica a pergunta: por que as boas lembranças sempre são capazes de nos proporcionar o refrigério que a vida, em si, empenha-se em negar?  


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