sábado, 5 de março de 2022

A era dos Acromáticos

 

Numa total oposição à infância, quando a música clássica era apreciada em volume moderado, vivenciei, na adolescência, um tal de Rock and Roll. Sim, era o estridular de guitarras, os compassos vincados por vibrantes baterias e a harmonia partilhada com imoderados contrabaixos eletrônicos. Mais tarde, num preito à incerteza, a internar-me nas praças de máquinas de navios, desfrutei amplamente dos ruídos naturalmente amplificados pelos motores de combustão interna. Creio que por conta de atípica autopreservação, passei, notadamente, a evitar fragores ou até mesmo os menores bulícios. Recordo-me que, em certas ocasiões, deleitava-me a auscultar o silêncio. O zumbido, assim o dizem, seria a percepção do som na ausência do mesmo. 

Bem, o silêncio absoluto não existe (pelo menos é o que dizem). Eis-me, então, algo próximo de um aventureiro, alguém empenhado em descobrir e cultuar o silêncio total. Mas... Ledo engano! A vida traça seus próprios caminhos. O mundo atual encheu-se de novos ruídos; as pessoas parecem gostar do alvoroço, da gritaria. Pelo menos a música moderna assim o comprova; há um culto ao estrépito, ao tumulto, ao estardalhaço. Nas grandes cidades, aves canoras, fonte ímpar de enriquecimento espiritual, em sinal de protesto, optaram por calar-se. Os aparelhos utilizados para reproduzir a música do momento esbanjam decibéis. Nos bares e restaurantes a música ambiente sobeja e agride tímpanos, martelos, bigornas e estribos. Nas conversas informais parece haver um encômio à bulha. Neste exato momento passa uma motocicleta sob minha janela: o espalhafato dos motores à explosão.

Não obstante, passado algum tempo e a me ver derrotado na busca pelo total silêncio, na verdade uma luta inglória, começo a não perceber algumas cores. Sim, as paisagens começam por se mostrarem modorrentas, cansadas, descoloridas. Instala-se uma apatia nas cores. Já não consigo distinguir as cores prismáticas formadoras do branco. A cor branca faz-se absoluta, ingênita, indivisível... Em seguida vem a palidez das paisagens. Como sucedâneo, meu desespero: o branco e o negro é tudo que vejo. A diversidade de colorações e tons tão agradáveis e deleitosos deixou de existir. De início baniu-se o silêncio; agora não há mais cores. O que há então? Nada!  O que posso discernir? Longe de pretender-me um Shakespeare, faço minhas as palavras de Hamlet: “Tudo que vejo é nada”. 

Lógico, é isso.  O mundo assimilou estas duas características tão ... antagônicas. Como harmonizar o ruído excessivo com a acromatismo? Não pode haver prazer em paisagens acromáticas, ainda mais quando acompanhadas pela bizarrice dos ruídos. Sim, está explicado: as pessoas, hodiernamente, carecem de cores porque cultuaram o ruidoso. A verdade é manifesta: vivemos num novo mundo, numa nova era, a era dos acromáticos. Talvez, quem o sabe, em pouco tempo, possa eu estar a reescrever a presente crônica e a divulgar uma outra realidade: o embaciar das mentes, quiçá, o embranquecer das almas. Our mind will be blank!

Um comentário:

  1. Primo, terminada a leitura de teu texto, fiquei parada pensando em tudo que li. Também me sinto assim em relação à cultura atual. Nossos ouvidos e olhos acostumados ao que ouvimos e vimos em nossa infância e adolescência se recusam a aceitar o que ouvimos e vemos hoje. Sem julgar o que está certo ou errado, apenas me recuso a ver e ouvir. Obrigada pelo texto. Abraço!

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