O navio chegava em Maracaibo, Venezuela; em breve pegaríamos o prático. Então o alarme soou discreto no console do Centro de Controle da Máquina. De que se tratava? Busquei identificar. Maldição, o nosso destilador desarmara. Que teria acontecido? Até há pouco ele funcionava bem. Apesar da máquina estar em atenção, abandonei o CCM e dirigi-me ao local do destilador. Verifiquei as válvulas e pensei em rearmar o motor localmente, mas percebi o vazamento. O problema fora causado pelo aquecedor: o flange vazava; água em abundância na base do motor elétrico. O aquecedor precisava de manutenção, passar por uma limpeza, ter as juntas dos flanges trocadas...
De volta ao CCM, busquei comunicar-me
com o chefe. A aguardar no telefone, folguei com a certeza de que assim que
dispensassem a máquina eu estaria liberado. O chefe informou-me que a empresa
seria comunicada e que logo em seguida solicitaria um grupo de terra para
realizar o reparo. O prático embarcou e pouco depois lançamos o ferro. Pois bem,
já no fundeadouro, preenchi relatórios, o diário e passei o serviço. Eu fora
rendido por um cara de eterno mau humor. Mas ... fazer o quê? No camarote,
optei por relaxar um pouco antes de banhar-me e trocar-me. Deitado de costas
sobre o piso, tendo pela frente o armário aberto, eu admirava meu mais novo
paisano.
Ergui-me, despi-me e banhei-me.
Durante o banho a preocupação em limpar as mãos e as unhas. Examinei o rosto no
espelho; estava bem barbeado. Agora era vestir-me e “correr pro abraço” - o que
deve ser entendido como pegar a lancha que conduziria a tripulação para o
porto, para terra firme. E assim foi feito. Algo em torno de 20 minutos de viagem
e estávamos desembarcando em Maracaibo. Se me perguntarem pelo clima local, eu
diria, a esbanjar meu portunhol: “Per
supuesto una tierra muy caliente”. Sim, há muito eu me entrosara com os
maracuchos. E teve lugar o pollo con
papas y la cerveza local. Sim, talvez por causa do meu paisano alinhado, las chicas me llamaban muy hermoso.
Todavia, devo confessar que eu não estava a procurar por companhia de bellas chicas.
Deixei o bar e os companheiros para
ingressar no shopping Fin de Siglo.
Eu precisava adquirir alguns itens de higiene pessoal. No entanto, quem se
dispusesse a seguir-me naquela moderna “feira de vaidades”, atestaria o meu
zanzar desordenado. Eu ia e voltava, olhava vitrines, entrava em lojas,
mostrava-me interessado em comprar tênis, roupas, CDs, máquinas fotográficas,
relógios, instrumentos musicais, talvez um pet ... Não, eu não era um buyer ou um shopper; nada de compulsão. Sei lá, talvez fosse apenas busca por
ressocialização. De repente o tímido cansaço, afinal foram horas de serviço na
praça de máquinas. Naquele momento eu queria outro tipo de praça: eu queria ver
gente, ver sorrisos, perceber sentimentos; eu queria ver a espontaneidade,
liberdade, alegria...
A carência por interagir, talvez, não
sei ao certo, guiava-me o olhar de modo voraz. Em verdade, eu buscava quaisquer
personagens, indiferentemente se protagonistas, coadjuvantes ou figurantes. E
de repente a grande perturbação. Não só o corpo, mas também meu olhar tornou-se
fixo. Meu semblante, assim supus, manifestava assombro, confusão. Não sei
mensurar o tempo em que permaneci pasmo; era como se eu estivesse pregado ao
piso. Lá estava ele: meu Dopplegänger,
meu sósia, meu outro eu... Deveria ter a minha idade. Trajava calça jeans e
camiseta. Súbito nosso olhar se cruzou. Imagino que tenha experimentado
sensação análoga a minha. Ele sustentou o meu olhar. Mantivemo-nos a encarar.
Nada desafiador, apenas o querer atestar a descrença no óbvio, no palpável, no crível.
Outra pessoa partilhava sua companhia:
uma mulher. Ele ergueu-se e dirigiu-se a mim lentamente. A mulher apenas o
seguia com olhos atentos. Eu também desloquei-me em sua direção. Aproximamo-nos,
mantivemos o mesmo olhar, o nosso olhar. Paramos um de frente para o outro.
Pessoas alheias, creio que por nos ver como gêmeos, esperavam um abraço como
desfecho. Mas sequer um sorriso passou por nossos lábios. Ele pensava como eu:
sentíamo-nos incomodados porque sabíamos não ser irmãos. Entendíamos aquilo
como uma espécie de agressão; nossa imagem fora roubada, nosso eu plagiado.
Decorridos alguns poucos segundos, sua voz (ou seria a minha?) murmurou: “Mi nombre es Agustin, soy chileno y no estoy
feliz de conocerte”. Estendi minha mão, disse-lhe meu nome, a nacionalidade
e o convidei a sentar-se. Sem afetação respondeu-me: “No me gusta”. Girou nos calcanhares e afastou-se.
Bem, ainda a refazer-me do primeiro
impacto, pus-me a pensar no inusitado. Não se trata de fenômeno fantasmagórico
ou paranormal; não o entendo como prenúncio de má sorte ou existência de
possível irmão gêmeo do mal. Nem eu nem Agustin, disso estou certo, vivêramos
em universo paralelo ou em mundo bizarro. Tampouco provamos de dimensões
alternativas ou do hiperespaço. Por outro lado, há teorias que afirmam a
existência de duplos em todo o mundo. A título de exemplo, cito Wolfgang
Goethe, dramaturgo alemão, que em sua obra Dichtung
und Wahrheit (Poesia e Verdade), declarou ter cruzado com seu duplo, ambos
a cavalgar.
Como assimilar, então, tal
acontecimento? Eu consegui entender a atitude de Agustin: simplesmente experienciamos
o insólito. Eus que se viam como únicos foram infamados. Sentimo-nos como que
aviltados, invadidos. Não, não há raiva ou motivo algum para tê-la. Seres
humanos são, de alguma forma, identificados. A partir da identidade, os seres
mesmos estabelecem suas individualidades. O outro, a irromper de forma
inesperada, muito embora a impressionante semelhança, vem, de alguma forma,
colocar em cheque a crença naquela específica unicidade.
E assim, embalado pelo cogitar,
retornei ao porto. Anoitecera, a lancha deveria estar partindo em pouco tempo;
eu necessitava de descanso. Apressei-me. Poucos os tripulantes a retornar para
bordo. Escolhi um banco afastado, sentei-me e cerrei os olhos. A lancha
manobrou e saiu. Ventos e vagas balançavam-na de modo brusco. Abri os olhos e
observei em torno. Logo ali a meu lado, no mesmo assento, deparei-me com a
vacilante publicação. Desdobrei o que me pareceu um semanário e li o título de
certo artigo: “Solo negándote a ti mismo
puedes asimilar al outro”. O interesse conduziu-me à leitura.
Sim, a individualidade facilmente
transforma-se em individualismo. O eu, então, espera que o mundo lhe gravite ao
redor. O indivíduo quer postar-se acima dos interesses da própria espécie. Com
o individualismo, a vaidade. As pessoas só falam de si mesmas, só veem a si
mesmas. Aliás, o presente texto exemplifica tal declaração. E o outro? O mal
humorado que me substituíra no serviço, por exemplo. Seria ele, de fato, mal
humorado, ou apenas não atendia minhas expectativas, isto é, as demandas do meu
eu? Pensei em Agustin, meu Dopplegänger,
alguém que acreditei ter furtado meu corpo, meu rosto, meu eu... Hoje, contudo,
após pesar a relevância do negar-se a si mesmo, vejo-o como pessoa; querer tê-lo
como irmão seria apenas mais um recurso da vaidade. Vanitas vanitatum!
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