domingo, 28 de outubro de 2012

Brevíssimo ensaio sobre a cegueira



Antes mesmo que especulem se a cegueira de que falo vem tratar de obscurecimento da razão, da falta de discernimento ou algo que o valha, posso vos afiançar, com muita pretensão e sem muita modéstia, que até o presente momento não apresentei quadro grave de qualquer transtorno de raciocínio.
Ainda que se pretenda que a cegueira em questão refira-se à extrema afeição a algo ou a alguém; adianto-vos que não dispenso a objetos importância maior do que realmente têm. Quanto a pessoas, - a essas dispenso uma importância menor ainda - dado a procedimentos vistos por mim como inconvenientes, optei por certo autoemasculamento.
A cegueira de que falo está na capacidade, ou falta dela, de deixar de perceber detalhes nas imagens que se nos apresentam. Em verdade, essa minha metafórica cegueira, esse não ver o todo, envolve a parte aprazível do ver, ou seja, envolve o deixar de ver indesejáveis detalhes que a acuidade visual proporciona. Em suma, seria regalar-se com a imperfeição do fenômeno. O fato de enxergar o todo cria embaraços, pois com o auxílio de lentes - um recurso, antes saudosista, para tentar resgatar o que fora uma perfeita visão - eu vejo o tempo que se revela nos rostos cansados, nas rugas e dobras de peles outrora aveludadas, em paredes desbotadas, em cãs prateadas. Com o olhar perscrutador podemos desvelar a falta de asseio nos utensílios, a roupa enodoada, o crime que horroriza, a cena que constrange, a vaidade que ensoberbece. Por que primar por uma visão aguçada no simples intuito de contemplar a forma, a exterioridade, apanágio desta pós-mediocridade, em detrimento do conteúdo, ou seja, da essência? Cultuar meramente a forma é fazer-se ente; é prescindir da condição de Ser, e a tecnologia em muito tem contribuído para isso.
Enfim, qual a utilidade prática de uma perfeita visão? Copérnico já nos alertara: o que vemos não é como vemos. Em termos científicos, nossa visão é falha. O simples ver não auxilia muito o conhecimento. Não somos deuses ou deusas para conhecer a partir do tudo ver. Parece-me que a visão só tem finalidade estética, ou seja, o agradável que carece de conceito e busca por universalização. Se o fundamento estético reside no agradável, para que tamanha acuidade visual? A agudeza no olhar certamente dificulta o prazer estético. Bem aventurados, portanto, os de limitada visão!
Não tenciono cometer um suicídio oftálmico ou aviar receitas fundamentalistas. Logo, se meus olhos forem motivos de escândalos não pretendo arrancá-los e lançá-los distantes de mim; quero tê-los por perto, ainda que neste meu presumido enceguecimento. Minha desatenção conforta-me; meu alheamento priva-me de escândalos. Na verdade o estar alheio é minha única, constante e providencial lente.
Dirão, e eu o sei, que esta minha estranha apologética encontra explicação na covardia, na insegurança; quem sabe num idealismo retrógrado, ou num existencialismo rude, ou até mesmo num empirismo insipiente. Mas basta, basta-me o rótulo da ingerência.   

terça-feira, 23 de outubro de 2012

Último desejo




Meu suicídio é iminente. E todos, todas, e eu também me pergunto porquê. O vetusto semanário entre as mãos me leva a estabelecer uma primeira verdade: a notícia é uma necessidade, mas é igualmente um desmande insano e incoerente.
A estupefação leva-me a optar por ouvir música; de modo apressado escolho aleatoriamente um CD, introduzo-o naquele estreito receptáculo e cerro a tampa, pressiono alguns poucos botões e Judy Garland canta “Over the Rainbow”. Meus olhos voltam-se ao semanário, percorrem-no um tanto aflitos, um tanto aturdidos. Discordo de imediato de Platão, pois minha realidade não está dentro, nem está fora da caverna: está no surreal.
Barak Obama mata um inseto diante das câmaras e faz questão de apontar para o moribundo numa atitude simbolicamente eufêmica. Recebe críticas de uma organização pró-animais! Eu já não sei mais o que é absurdo. Invejo Kafka. Mas continuemos: o mesmo Obama indica Lula para a presidência do Banco Mundial, num preito ilimitado ao apedeutismo.
Agora estou certo do que quero: um suicídio intelectual, se é que algum dia da intelectualidade me fiz portador. E quero o que quero, por saber o que não quero: jazer compactuado com a ideologia que dá suporte a uma cínica ignorância. Mas quero um suicídio diferente, algo passível de tornar-se ditoso; eu quero a comicidade do suicídio, algo de fazer inveja a Frederico Fellini. E por falar em absurdo, o CD player agora reproduz os últimos acordes de “Moon River”.
Meu suicídio intelectual terá como ponto de partida o silêncio, mas não um silêncio passivo ou calado ou submisso. Não! Meu silêncio será aviltante, ofensivo, escarnecedor; caracterizar-se-á pela insolência do silenciar. O CD player, depois de um breve silenciar, permite que Tony Bennett cante “Days of Wine and Roses”. Que contradição! A contradição é nossa cotidianidade.
Como todo suicida, deixo por escrito meu último desejo: Não quero homenagens, encômios nem prantos. Sem a alegria profana preferiria ficar insepulto - e decerto ficaria, pois não tenho Antígona por irmã. Não quero missas de corpos ausentes e presentes. Eu quero um churrasco, algo bem brasileiro e tupiniquim. Eu quero a farofa, o pagode, a “pelada” depois da bebedeira. Eu quero a presença de mulheres lúbricas e seminuas; eu quero a sistêmica e institucional baixaria. Enfim, eu quero uma confraternização tipo – e digna – da “Granja do Torto”. Que convidem políticos, corruptos, inimigos; em suma: a canalha! Quero sorrisos em demasia. Posso vos garantir: no evento não haverá prantos nem ranger de dentes!
Testamento?! Não, nem mesmo um legado. A meus filhos - gerados quando ainda havia crença no amor - o pedido expresso de perdão por tê-los lançado na cômica, insensata e desprezível dimensão a que chamam mundo. Que meus livros sejam queimados e suas cinzas se tornem pigmentos de tintas baratas que pintam os muros de terrenos baldios.
Um último pensamento absurdo ainda passa pela minha confusa e dementada cabeça: ouvir o réquiem de Mozart. Qual nada! Deixemos Mozart fora disso, dessa torpe bizarria. O CD player reproduz agora “What a Wonderful World” na voz de Louis Armstrong.  

domingo, 21 de outubro de 2012

Lulear



Sim, estou enviando projeto à ABL - Academia Brasileira de Letras - no sentido de incorporar um novo verbete ao nosso idioma. Em verdade se trata de um verbo defectível; talvez esteja mais para anômalo. Mas isso veremos mais tarde.
Trata-se do verbo LULEAR. Etimologicamente tem sua origem em lula, molusco marinho da ordem dos cefalópodes, ou seja, que tem os pés na cabeça. Por ilação deduzimos: ora, se da cabeça brotam os pés, não sobra lugar para o cérebro. Então seria alguém ou alguma coisa que pensa com os pés. Enfim: um andarilho anencéfalo.
Mas o verbo é bem parecido com viajar, só que com algumas diferenças. Seriam elas: viajar com o dinheiro do contribuinte, visitando outros países e, imerso numa total arrogância, falar um monte de besteiras em nome de um povo que, por ser naturalmente imbecilizado, o elegeu como representante.
Mas por que defectível? Porque seria suscetível de enganos, ou seja, nem toda a “casta” política teria como conjugá-lo de fato. Importante: conjugar de fato seria praticar a ação proposta pelo verbo. Mas anômalo? Sim, pela sua irregularidade; poucos cidadãos poderiam conjugá-lo. Eis a característica marcante do verbo LULEAR: a discriminação. Nem todos nós podemos ou queremos LULEAR. Um verbo a ser conjugado pela banalidocracia (um novo verbete a ser objeto de estudos e, quiçá, futuro projeto junto a ABL), ou seja, o poder da banalidade, do recrudescimento, da desmesura.

sexta-feira, 19 de outubro de 2012

Meu pequeno Zacarias ou parodiando E.T.A. Hoffmann




Nossa história tem origem num lugar qualquer, entre o aqui e o nada, desde que seja abaixo do equador e num ambiente similar ao agreste pernambucano.
Certa feita, uma senhora sentou-se à sombra da algarobeira visando descansar do sol inclemente; era uma tarde mormacenta, de ar pesado, parado, sufocante. Ao lado depositou seu pequeno fardo: um menino de quase três anos, mirrado, extremamente feio, que mal balbuciava uma meia dúzia de palavras. Seu cabelo era espigado e de cor negra, os olhos grandes e astuciosos, a cabeça disforme e com feições rústicas. Enfim: uma monstruosidade. E à sombra do vegetal a pobre mulher murmurou algo como que uma prece rancorosa. Queixou-se da família já numerosa, da pobreza, do marido desempregado e sumido, e agora aquele pequeno gnomo raquítico. A prece ainda se alongou por alguns minutos de lamúria até que mãe e filho adormecessem.
Uma fada (fada!?) entendeu de passar exatamente pela margem do caminho onde ambos repousavam. A fada estacou apavorada. Mas o que era aquilo? – Pobre mãe! – exclamou a fadinha – como alguém pode acalentar e amar tal aberração? De tão incomodada, resolveu aspergir suas últimas gotas de poção mágica sobre a cabeça do menino. Acariciou seus cabelos, que instantaneamente tornaram-se encaracolados. Girou sobre os calcanhares e seguiu seu caminho de fada.
Algum tempo depois a mãe despertou experimentando um inexplicável consolo; procurou pelo filho, e Zacarias Luis (este era seu nome) não estava a seu lado; estava mais adiante pulando, dando cambalhotas, soltando gargalhadas. Estupefata a mãe se interrogava: - Mas o que acontecera? O filho não andava, era um moleirão, preguiçoso, só fazia comer e dormir... E agora aquela atividade... Gritou: - Zula! (Zula seria um substantivo composto por aglutinação). E o menino voltou-se e veio correndo a responder: - Sim, mamãe! Sua voz era rouca, gutural, quase uma agressão. Outra surpresa, pois o menino pouco falava; eram poucos os vocábulos resmungados. A mãe exultou: - Então meu filho fala! Quis ouvir outra vez sua voz. E num tom de súplica solicitou: - Fala alguma coisa para a mamãe, filho, fala... E o filho falou: - Nunca antes nesse país... A mãe soltou uma gargalhada e uma imprecação.
O vigário do lugarejo passava neste instante e parou para interrogar: – Por que tanto riso? A mulher apontou para o filho. – Ali seu padre, aquele monstrinho, meu filho, mal começou a falar e já está a mentir. O padre explodiu: - Cala-te mulher! Como podes dizer isto de teu filho? E o menino é tão lindo. Ao dizer isso passou a acariciar a cabeça de Zula, que sorria debochado. Constrangida, a mãe conseguiu balbuciar: - Pois o leve, crie-o! O padre com Zula nos braços concluiu: - Vou criá-lo e dar-lhe uma profissão digna; será torneiro mecânico!     
Mas Zula cresceu indiferente a tudo. Ele queria vencer na vida e não sabia como. Enquanto torneiro mecânico foi um fracasso, haja vista ter perdido um dedo na máquina. Mas aproveitou a oportunidade para receber o seguro, filiar-se a um sindicato e fazer política, tornando-se porta-voz dos metalúrgicos quando o país vivia sob o regime ditatorial.
Mas a ditadura acabou, e Zula, conseguindo arrebatar as massas com o carisma fabricado do encantamento da fada, chegou a Presidente da República. O país vai bem - economicamente - e graças à “herança maldita”. Hoje Zula é personalidade internacional, muito embora não tenha aprendido a falar e seu governo ser eivado de escândalos e de trapaças. O escrúpulo foi banido do léxico. Zula lançou a ética, a coerência e a sensatez aos porcos, seus iguais, politiqueiros.
Mês passado encontrei a fadinha ... coitada. Confessou-me seu arrependimento. Está doente, desempregada; está recebendo vale gás e bolsa família. Uma lástima.    

domingo, 14 de outubro de 2012

Brasil, 512 anos.


Comemorando o 22 de abril de 1500


Parabéns pra você!

Para você Brasil, que trás no corpo a grandeza; que tem nos filhos servis heróis e abatidos guerreiros; que se cobre de máculas e estigmas; que se veste de noiva ultrajada, corrompida, violada; que tenta sacudir o jugo da tirania imposta por outros filhos bastardos; que se torna ditoso em pequeninas realizações e se ufana em quimeras de improbidades veladas.
Parabéns Brasil pelo teu grande poder de acomodação; que aceita passivo “cármicos” desmandos; que se perde em questiúnculas intestinas, deixando ao léu objetivos essenciais. Bravo Brasil, que favorece a tão poucos e excluiu a tantos; que despreza o suor de teus filhos, heróis anônimos, e enaltece o poder daqueles que te não amam.

Nesta data querida!

É nesta data, querida mãe, que ensejamos um maior empenho; empenho em banir aqueles que primam pelo descaso, que se locupletam nas torpezas, que buscam os próprios interesses ou os dos poderosos, não-filhos, dos quais se tornam súditos e arautos. Nesta data, rogamos para que teu lábaro tremule e te revele a verdadeira face, não esta face que te mostra fleumática, quando na verdade sentes na carne o vitupério dos filhos ingratos.

Muitas felicidades!

Felicidades, Ó Pátria Amada, é tudo que desejamos. Que possas sorrir o longo sorriso de uma felicidade austera e não mais fingir uma alegria de pálidos lábios; que possas cicatrizar em breve das chagas que tantos vilipêndios causaram; que balsâmicos ares te envolvam e protejam, e não o odor repulsivo de falsos ideais; que tua cultura se alastre e frutifique e não mais assimiles os hábitos e valores de culturas outras, tão bizarras quanto hediondas; que tuas “vilas, filas, favelas” se livrem da barbárie e, então, juntos possamos partilhar desta felicidade. 

Muitos anos de vida!


Que outros 512 anos possamos comemorar, mas que fiquem no passado, hoje presente: a miséria, a fome, o desemprego, a saúde em irreversível estado terminal, o analfabetismo imposto e igualmente funcional, a imensurável exclusão social, a corrupção institucionalizada, o arbítrio, o nepotismo, a falta de vontade política, o caráter mesquinho de sua ditadura social travestida em sócio democracia. Que outros cinco séculos te sejam suficientes para expurgar os vícios e imposturas. Que tua síndrome, malgrado o disfarce de crise econômica, mas que sabemos ter seus fundamentos numa carência ética, seja enfim sarada. Que declares desta feita uma nova e veraz independência, objetivando o banimento da apatia e subserviência. Que repenses os critérios de delegar teu poder àqueles que de fato o mereça, para que a soberania seja exercida com justiça, lisura e temperança.
Instamos para que saias de teu íntimo exílio, e sejas para “os filhos deste solo”, enfim, a “Mãe Gentil”.


Parabéns Brasil

segunda-feira, 8 de outubro de 2012

Em defesa dos insensatos

(acerca da conquista do pentacampeonato de futebol)


“Brava gente brasileira”; somos pentacampeões! Bravíssimo! E temos heróis; e mais de vinte. Heróis de sobra; pra dar e vender. Isso é que é uma nação!
A Força Aérea os escolta e saúda em pleno voo. E pousam os heróis; a multidão acotovela-se para poder contemplá-los. São pessoas simples; dispensam o carro do Corpo de Bombeiros, algo muito formal, e postam-se sobre o pedestal de um trio elétrico para se sentirem mais próximos do povão.
O cortejo em festa segue pelas ruas da capital apinhadas de gente e estaca na rampa do Palácio do Planalto. Os expoentes do governo os aguardam; são heróis. O Excelentíssimo Sr. Presidente da República recebe das mãos de nosso humilde capitão o cobiçado troféu já tão osculado. Medalhas de Honra ao Mérito são colocadas em peitos inflados de soberba; delírios de um povo. Honras dispensadas a chefes de Estado. Nossos heróis são simulacros de estadistas.
E tem início a festa. Uma primitiva orquestra acompanha o Hino Nacional. Vozes se somam e se agigantam; lágrimas. Vem o desfile em carro aberto acompanhado de uma singela, torpe e mística canção: seria um novo hino? “E vai rolar a festa; vai rolar. O povo do gueto mandou avisar”.
De fato, este país é um enorme gueto. O gueto, segundo a visão histórica, seria o bairro onde judeus foram obrigados a viver. Mas não se trata da Áustria, nem da Polônia; estamos no Brasil: um imenso gueto.
Reconheço minhas raízes: sou filho deste gueto; essa é minha nacionalidade. Triste sina ter um gueto como pátria. Não, não sou judeu, mas deveria sê-lo. Acabo por invejá-los. Os judeus passaram por maus pedaços, mas saíram dos guetos e construíram uma nação. Devo rebelar-me. Onde está minha nação? Pra que tantos heróis se não temos nação? Heróis de um gueto?!
Mas o “gueto” está em festa. Os heróis, além do troféu, agora exibem medalhas de honra. É um merecido reconhecimento, mas onde está o reconhecimento àqueles que tentaram erguer, que contribuem e ainda tentam erguer este “gueto”? São professores, são cientistas, são intelectuais, homens que dedicam toda uma vida tentando melhorar a vida do “gueto”. São insensatos! A sensatez agora repousa no semianalfabetismo que conquista glórias efêmeras. A efemeridade é a nova tônica. A sensatez está na insensatez.
Há, e não poucos, os que afirmam que esta “glória” vem arrefecer os sofrimentos, mitigar as dores; faz que, mesmo por um instante, tudo seja esquecido: o povo imerso na miséria, no desemprego, na violência, na corrupção, na injustiça social, na instabilidade, na má distribuição de renda, na ineficácia do sistema de saúde, na falta de moradia, de terras, de escolas, de comida,... Ufa! Bem, mas se esse for o objetivo de tal “glória”, percebo que o povo do “gueto” gosta de viver de ilusão. A “família Scolari”, portanto, conseguiu transformar o “gueto” em o “País das Maravilhas”. Leibniz declarou: “esse é o melhor dos mundos possíveis”. Eu gostaria de acrescentar: “o melhor lugar do mundo é aqui”; este imenso “gueto”; o “Sítio do Pica-pau amarelo”, onde tudo é faz de conta.
Estamos em festa! Que interessa o risco Brasil? Qual a importância da alta do dólar? Que diferença faz se há fuga de capital neste “gueto globalizado?” Pra que tanta preocupação com a sucessão presidencial? É festa! Deixemos de lado o PIB, a dívida externa e interna. Somos penta! Aproveitemos a festa!
Não, não questiono de modo algum a conquista. Afinal é a felicidade geral e irrestrita; é a conquista dos insensatos. Não me queiram mal, pois também sou insensato. Insensato quando assisto inerme tais cenas pela TV; insensato quando creio que mais alguém partilha comigo desta inócua revolta; insensato quando escrevo estas apressadas linhas; insensato quando penso. É isso, meu problema, minha insensatez está em pensar. Até para viver em um “gueto” é preciso pensar. Talvez Descartes estivesse certo: “Cogito, ergo sum”. O existir advém do pensar. Acredito que Descartes estabeleceu o projeto ideal: para que o Estado exista de fato, faz-se mister que seus cidadãos pensem.
Descubro atônito que, além de insensato e nascido em um “gueto”, este sequer tem existência real, pois meus concidadãos prescindem e esnobam a capacidade de pensar. Pobre “gueto” meu!

domingo, 7 de outubro de 2012

Do decoro parlamentar



Por vezes, algumas expressões me incomodam sobremodo, e justamente por se tornarem expressões. Uma dessas é o já decantado decoro parlamentar.
Se falássemos apenas em decoro, estaríamos nos reportando à dignidade, à nobreza, à honradez, a alguém de moral ilibada, à pessoa de extrema decência. Mas quando unimos tal verbete a outro, que, por sua vez envolve tantas imposturas, a coisa não só não soa de modo agradável, bem como parece perverter a própria morfologia. Os conceitos teimam por se excluírem mutuamente.
Parlamentar é o membro de um parlamento, que, no exercício de sua função, entra em negociações. Ora, parece-me que o simples fato de negociar envolve o muito falar, o tagarelar, uma certa irreverência, a tergiversação. E porque não impudência? A tagarelice em si já demonstra sinais de falta de honradez, de falta de nobreza, pois recende a vaidade, a dissimulação, a emulação. Enfim, falamos do parlapatão.
E como se misturar água ao óleo? Ou melhor, como entender o decoro parlamentar? Um tagarela negociador que tem como característica ser digno e honrado! Sim, mas então o que seria a falta de decoro parlamentar? Utilizar-se da mendacidade enquanto exercer a atividade de parlamentar, isto é, de negociador. Mas qual é a novidade? O parlapatão não demonstra nenhum traço de dignidade, decência, ou algo que o valha. Em perfunctória análise etimológica, parlamentares não devem demonstrar nobreza, honradez etc. Quando o fazem, fogem a regra, e então manifestam decoro parlamentar. Falta de decoro parlamentar, em si, é apenas redundância. Portanto, deixemos os rapazes à vontade; são ossos do ofício.  

sábado, 6 de outubro de 2012

A Paixão e o Tempo



O tempo traz em si a característica ímpar da incomensurabilidade.  Santo Agostinho assim o demonstrara: como medir algo que não mais existe, o já decorrido, que atravessa o que não tem extensão, o presente, e chega ao que ainda não aconteceu, o porvir? O tempo é uma dimensão puramente perceptual, pois que implica movimento. Para cada um de nós o tempo decorre de modo diferenciado. Todavia, insistimos em mensurá-lo, e isso só e possível através de convenções. Na verdade, nós espacializamos o tempo.
Mas muito embora não possa ser medido, nós com ele travamos uma relação. Ora, longe de qualquer jocosidade, podemos afirmar que o tempo é filho de seu tempo. Houve uma época em que o tempo nos era parceiro, companheiro; podíamos passear ao longo das alamedas e observar detalhes, avisos, letreiros, outdoors. Hoje o tempo nos precede; já não mais desfrutamos de sua companhia, já não mais passeamos. Atualmente, corremos atrás do tempo, pois as coisas se transformam em velocidade vertiginosa. E, ipso facto, abandonamos detalhes, porque as transformações assim o exigem.
Isso nos leva a uma “corrida contra o tempo”. Aproveitamos sempre o momento presente, porque “o tempo voa; escorre pelas mãos”. Nós adensamos todas as nossas relações porque o tempo fluente - a transformação sistêmica - assim o requer. E não é diferente quando se trata da paixão. A fluidez do tempo nos torna apaixonados. A paixão aqui é totalmente abrangente, mas inegavelmente efêmera. Tratamos de tudo - não só as relações amorosas - intensamente, mas também momentaneamente. Somos súditos do império da efemeridade. Carpe Diem! 
Amamos (?) intensamente porque o momento presente é o único que acreditamos ser acessível; amanhã a pessoa, o amor, a paixão, todas as relações, enfim, podem estar indisponíveis. Nada cômoda essa situação. Não obstante, o ser humano a tudo se amolda, se adequa, se acomoda. Então seguimos nossa vidinha agitada, confusa, carente, sorrindo na tentativa de demonstrar bem estar. Não esqueçamos, no entanto, que o fugaz, exatamente por ser fugaz, banaliza as relações, sejam elas de companheirismo, de amizade, de família, de amor e sexo.

quinta-feira, 4 de outubro de 2012

Um novo Canudos?



Pergunto-me pelo fenômeno social divulgado largamente pela imprensa nos dias atuais. Afinal, o que está acontecendo no Rio de Janeiro? E em São Paulo? A que se deve os shows de barbarismo?
Temperamentos instáveis advindo de uma súbita esquizofrenia? Parece-me que estes fenômenos representam exteriorizações de um grande conflito; algo interior travado entre impulsos e instintos que buscam a satisfação de outros desejos.
Creio que neste estado já não há mais a dita e afamada “personalidade”. Esta perdeu suas regras e se torna conflitante com as reações tidas por “normais” em face de solicitações exógenas. O “eu” desaparece, desintegra-se, e com ele todo controle mental - self control -; não há mais escrúpulos e inibições; a moral social se esgota.
E onde fica a consciência? Apaga-se diante do conflito do instinto e outros interesses. É o que Sorokin chamava de “a lei da diversificação e polarização dos efeitos”. Surgem então as psicopatias de faces distintas: os bandidos e os santos – sinners and saints. Podemos perceber sem muito esforço a quantidade de agremiações religiosas que a cada dia se tornam mais numerosas e com elas um certo grau de fanatismo. Podemos perceber também que nos dias de hoje não é o crime que nos causa espécie, mas o requinte de crueldade com que estes são praticados. No primeiro caso há uma exaltação moral instando por conjurar os instintos; no último uma crise de loucura sanguinária; a personificação de Amok.
Seria no mínimo inocente declarar que tal fato somente é observado na mancha periférica dos grandes centros urbanos; o fenômeno transcendeu aos “guetos”. Contudo, é dentre os aglomerados da população carente que se percebe o surgimento de líderes tribais. Afinal, numa esdrúxula lição de cidadania, os líderes tribais, os “Antonios Conselheiros” dos tempos modernos, distribuem alimentos, remédios, empregos, assistência médica e, como foi publicado recentemente, bolsas de estudo para cursos superiores. A educação não esteve sempre a serviço do Estado? Esse é o Estado paralelo que o Estado oficial teima em negar realidade.
 Mas qual seria a origem de tal fenômeno? Seria simplista demais falar unicamente em desemprego, fome, exclusão social e adjacências. Há ainda fatores como: a tecnologia que visa à satisfação individual prometendo um abstrato status quo; uma mídia que vende a idéia consumista estimulando a expectativa de fazer de cada jovem um Ronaldinho, um Leonardo De Caprio, uma Gisele Bündchen; o paraíso dos shoppings; a griffe renomada; o carrão importado etc.
Hoje se faz uma apologética negativa das drogas, como se estas fossem unicamente responsáveis pelas ações praticadas. Mas as drogas mais não fazem do que potencializar essas forças latentes; essa desorganização adquirida que desorienta e desajusta as relações sociais e familiares.
Seria muito cômodo colocar a educação como solução ao problema, mas a educação é ainda parte do problema. Falar em emprego como solução seria uma outra ingênua proposta, pois o emprego deve, além de atender às expectativas do profissional, fornecer condições dignas para o desempenho de tal função. Rogamos, além de uma reforma fiscal, da previdência, das instituições, que a sociedade pensante - não aquela que se acotovela diante da tv para “fofocar” e manter-se informado de tudo o que acontece no “Big Brother” - preconize aos mais jovens a necessidade de “colocar os pés no chão”. Caso contrário, a cada dia que passa, estaremos nos deparando com um novo “Canudos” e com novos “Antonios Conselheiros”.

quarta-feira, 3 de outubro de 2012

Dos Princípios de Prazer e Realidade



A princípio o “eu” ilimitado, totalmente desembaraçado, totalmente desimpedido: o prazer que desconhece limites. Mas surge o “outro”, a realidade, aquilo que obsta, que faz oposição. O “eu” é prazer; o “outro” realidade. De Jean Paul Sartre a declaração: “o inferno são os outros”. Tem lugar o embate, a necessidade da convivência, da adequação à presença do “não-eu”. Desenvolvem-se os costumes, faz-se mister a lei, porque em face do “outro”, a realidade, o “eu” pode delinquir. Então justificam-se as sanções.
A realidade mostra-se-nos contundente, agressiva. Quando esta, ou seja, o “outro”, revela-se perversa, o “eu” busca uma fuga. O “eu” em-si é trânsfuga. E sobrevêm os delírios; delírios são nada mais que recursos utilizados por um “eu” em fuga, o que talvez explique nossas neuroses. É impossível não ser neurótico; a neurose é um fato.
A paixão, aqui entendida como inclinação afetiva, algo intenso e incontrolável, é quem governa o princípio de prazer. E a paixão, apesar do “outro”, tenta saciar-se, enriquecer-se, repletar-se. O prazer continua a não querer conhecer limites. E de que recurso pode o prazer valer-se para dar azo a seu desideratum? Da razão. A razão nada mais é do que um expediente da paixão; é construção tipicamente abstrata, uma hipóstase. Em verdade, não há divergência entre o apolíneo e o dionisíaco. Dionísio ainda governa; Apolo, mesmo sem o saber, ou fingindo não sabê-lo, dá continuidade a obra de Dionísio. A estupidez humana reside na pretensão de colocar a razão em patamar superior a paixão. E dessa vez me reporto a Nietsche: eis “A Origem da Tragédia”.

segunda-feira, 1 de outubro de 2012

Do amor dos filhos




Devo começar esclarecendo que, de início, não falo do amor como manifestação, mas sim como sentimento; falo da profunda afeição, bem como do objeto dessa afeição; falo do afeto a pessoas. Não se trata de ágape (a caridade), nem mesmo de qualquer relação onde se revela a dissimetria, a desigualdade, algo que estabeleça distinção entre ativos e passivos. Falo de uma filia, ou seja, do amor de amizade, uma relação de igualdade que encerra uma passível comensurabilidade.
Mas como falar de sentimentos desvinculando-os de sua expressão? Justamente por ser comensurável, a ausência de expressões, quando não percebidas por aquele que dele se pretende objeto, conduze-o a um brando agastamento. Falo em brando agastamento porque, apesar da irritação, o que busca ser amado - o demandante - sufoca qualquer afecção. Em se tratando de filia, nenhuma das partes da relação permite-se uma posição passiva. O amor, neste caso, exige reciprocidade com igual intensidade. O amor, quando não percebido, transforma-se em mera expectativa. E a expectativa é cáustica, aberrante, cria um tempo que se revela como sofrimento. O interessante é que, quando, nesta relação, uma das partes reconhece-se como pivô da falta de intensidade recíproca, passa a experimentar certo mal estar, o que deságua no arrependimento, na crise de consciência, na culpa.
Vejamos: quando viajava pelo mundo, em conversa com um amigo, confessei que tinha em mente presentear meu pai com um objeto qualquer. Como esse amigo já perdera seu pai, eu o interroguei acerca do melhor presente que um pai gostaria de receber. Então ele respondeu-me, deixando patente enorme pesar: “O melhor presente que um pai quer receber é a atenção dos filhos. Converse com teu pai em toda oportunidade que tiver; ela ficará extremamente feliz”. E continuou, demonstrando remorso: “Quando estudante de medicina, nunca tinha tempo para conversar com meu pai, embora ele também fosse médico. Hoje sinto vontades de com ele conversar, mas já não posso desfrutar de sua companhia”. E rematou solene: “Converse com teu pai o mais que puder!”
Mas eu era um cosmopolita, um errante, um aventureiro: apanágio da juventude. E a vida seguiu seu rumo de modo implacável. Hoje sinto falta de conversar com meu pai. Meu pai se foi: outra dimensão, outra existência, outro lugar, outro patamar, outra vida, outra das tantas moradas da casa do Pai. Talvez no limbo, quem sabe ao certo? Mas ainda quero encontrá-lo.
Percebo, e não a contragosto, que o amor, o sentimento, necessita ser expresso. Sem a expressão o amor se evola, faz-se mudo, faz-se deficitário, inócuo, sem sentido, faz-se anômalo, parco, pífio, estúpido, despido de qualquer conteúdo, e, portanto, indiferente. E a indiferença já não é amor.