domingo, 28 de outubro de 2012

Brevíssimo ensaio sobre a cegueira



Antes mesmo que especulem se a cegueira de que falo vem tratar de obscurecimento da razão, da falta de discernimento ou algo que o valha, posso vos afiançar, com muita pretensão e sem muita modéstia, que até o presente momento não apresentei quadro grave de qualquer transtorno de raciocínio.
Ainda que se pretenda que a cegueira em questão refira-se à extrema afeição a algo ou a alguém; adianto-vos que não dispenso a objetos importância maior do que realmente têm. Quanto a pessoas, - a essas dispenso uma importância menor ainda - dado a procedimentos vistos por mim como inconvenientes, optei por certo autoemasculamento.
A cegueira de que falo está na capacidade, ou falta dela, de deixar de perceber detalhes nas imagens que se nos apresentam. Em verdade, essa minha metafórica cegueira, esse não ver o todo, envolve a parte aprazível do ver, ou seja, envolve o deixar de ver indesejáveis detalhes que a acuidade visual proporciona. Em suma, seria regalar-se com a imperfeição do fenômeno. O fato de enxergar o todo cria embaraços, pois com o auxílio de lentes - um recurso, antes saudosista, para tentar resgatar o que fora uma perfeita visão - eu vejo o tempo que se revela nos rostos cansados, nas rugas e dobras de peles outrora aveludadas, em paredes desbotadas, em cãs prateadas. Com o olhar perscrutador podemos desvelar a falta de asseio nos utensílios, a roupa enodoada, o crime que horroriza, a cena que constrange, a vaidade que ensoberbece. Por que primar por uma visão aguçada no simples intuito de contemplar a forma, a exterioridade, apanágio desta pós-mediocridade, em detrimento do conteúdo, ou seja, da essência? Cultuar meramente a forma é fazer-se ente; é prescindir da condição de Ser, e a tecnologia em muito tem contribuído para isso.
Enfim, qual a utilidade prática de uma perfeita visão? Copérnico já nos alertara: o que vemos não é como vemos. Em termos científicos, nossa visão é falha. O simples ver não auxilia muito o conhecimento. Não somos deuses ou deusas para conhecer a partir do tudo ver. Parece-me que a visão só tem finalidade estética, ou seja, o agradável que carece de conceito e busca por universalização. Se o fundamento estético reside no agradável, para que tamanha acuidade visual? A agudeza no olhar certamente dificulta o prazer estético. Bem aventurados, portanto, os de limitada visão!
Não tenciono cometer um suicídio oftálmico ou aviar receitas fundamentalistas. Logo, se meus olhos forem motivos de escândalos não pretendo arrancá-los e lançá-los distantes de mim; quero tê-los por perto, ainda que neste meu presumido enceguecimento. Minha desatenção conforta-me; meu alheamento priva-me de escândalos. Na verdade o estar alheio é minha única, constante e providencial lente.
Dirão, e eu o sei, que esta minha estranha apologética encontra explicação na covardia, na insegurança; quem sabe num idealismo retrógrado, ou num existencialismo rude, ou até mesmo num empirismo insipiente. Mas basta, basta-me o rótulo da ingerência.   

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