Antes mesmo que especulem se a
cegueira de que falo vem tratar de obscurecimento da razão, da falta de
discernimento ou algo que o valha, posso vos afiançar, com muita pretensão e
sem muita modéstia, que até o presente momento não apresentei quadro grave de
qualquer transtorno de raciocínio.
Ainda que se pretenda que a cegueira
em questão refira-se à extrema afeição a algo ou a alguém; adianto-vos que não
dispenso a objetos importância maior do que realmente têm. Quanto a pessoas, -
a essas dispenso uma importância menor ainda - dado a procedimentos vistos por
mim como inconvenientes, optei por certo autoemasculamento.
A cegueira de que falo está na
capacidade, ou falta dela, de deixar de perceber detalhes nas imagens que se
nos apresentam. Em verdade, essa minha metafórica cegueira, esse não ver o
todo, envolve a parte aprazível do ver, ou seja, envolve o deixar de ver
indesejáveis detalhes que a acuidade visual proporciona. Em suma, seria
regalar-se com a imperfeição do fenômeno. O fato de enxergar o todo cria
embaraços, pois com o auxílio de lentes - um recurso, antes saudosista, para
tentar resgatar o que fora uma perfeita visão - eu vejo o tempo que se revela
nos rostos cansados, nas rugas e dobras de peles outrora aveludadas, em paredes
desbotadas, em cãs prateadas. Com o olhar perscrutador podemos desvelar a falta
de asseio nos utensílios, a roupa enodoada, o crime que horroriza, a cena que
constrange, a vaidade que ensoberbece. Por que primar por uma visão aguçada no
simples intuito de contemplar a forma, a exterioridade, apanágio desta
pós-mediocridade, em detrimento do conteúdo, ou seja, da essência? Cultuar
meramente a forma é fazer-se ente; é prescindir da condição de Ser, e a
tecnologia em muito tem contribuído para isso.
Enfim, qual a utilidade prática de uma perfeita visão?
Copérnico já nos alertara: o que vemos não é como vemos. Em termos científicos,
nossa visão é falha. O simples ver não auxilia muito o conhecimento. Não somos
deuses ou deusas para conhecer a partir do tudo ver. Parece-me que a visão só
tem finalidade estética, ou seja, o agradável que carece de conceito e busca
por universalização. Se o fundamento estético reside no agradável, para que
tamanha acuidade visual? A agudeza no olhar certamente dificulta o prazer
estético. Bem aventurados, portanto, os de limitada visão!
Não tenciono cometer um suicídio oftálmico ou aviar
receitas fundamentalistas. Logo, se meus olhos forem motivos de escândalos não
pretendo arrancá-los e lançá-los distantes de mim; quero tê-los por perto,
ainda que neste meu presumido enceguecimento. Minha desatenção conforta-me; meu
alheamento priva-me de escândalos. Na verdade o estar alheio é minha única,
constante e providencial lente.
Dirão, e eu o sei, que esta minha estranha apologética
encontra explicação na covardia, na insegurança; quem sabe num idealismo
retrógrado, ou num existencialismo rude, ou até mesmo num empirismo insipiente.
Mas basta, basta-me o rótulo da ingerência.
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