(acerca da conquista do pentacampeonato de futebol)
“Brava gente brasileira”; somos pentacampeões! Bravíssimo! E temos heróis; e mais de vinte. Heróis de sobra; pra dar e vender. Isso é que é uma nação!
A Força Aérea os escolta e saúda em pleno voo. E pousam os heróis; a multidão acotovela-se para poder contemplá-los. São pessoas simples; dispensam o carro do Corpo de Bombeiros, algo muito formal, e postam-se sobre o pedestal de um trio elétrico para se sentirem mais próximos do povão.
O cortejo em festa segue pelas ruas da capital apinhadas de gente e estaca na rampa do Palácio do Planalto. Os expoentes do governo os aguardam; são heróis. O Excelentíssimo Sr. Presidente da República recebe das mãos de nosso humilde capitão o cobiçado troféu já tão osculado. Medalhas de Honra ao Mérito são colocadas em peitos inflados de soberba; delírios de um povo. Honras dispensadas a chefes de Estado. Nossos heróis são simulacros de estadistas.
E tem início a festa. Uma primitiva orquestra acompanha o Hino Nacional. Vozes se somam e se agigantam; lágrimas. Vem o desfile em carro aberto acompanhado de uma singela, torpe e mística canção: seria um novo hino? “E vai rolar a festa; vai rolar. O povo do gueto mandou avisar”.
De fato, este país é um enorme gueto. O gueto, segundo a visão histórica, seria o bairro onde judeus foram obrigados a viver. Mas não se trata da Áustria, nem da Polônia; estamos no Brasil: um imenso gueto.
Reconheço minhas raízes: sou filho deste gueto; essa é minha nacionalidade. Triste sina ter um gueto como pátria. Não, não sou judeu, mas deveria sê-lo. Acabo por invejá-los. Os judeus passaram por maus pedaços, mas saíram dos guetos e construíram uma nação. Devo rebelar-me. Onde está minha nação? Pra que tantos heróis se não temos nação? Heróis de um gueto?!
Mas o “gueto” está em festa. Os heróis, além do troféu, agora exibem medalhas de honra. É um merecido reconhecimento, mas onde está o reconhecimento àqueles que tentaram erguer, que contribuem e ainda tentam erguer este “gueto”? São professores, são cientistas, são intelectuais, homens que dedicam toda uma vida tentando melhorar a vida do “gueto”. São insensatos! A sensatez agora repousa no semianalfabetismo que conquista glórias efêmeras. A efemeridade é a nova tônica. A sensatez está na insensatez.
Há, e não poucos, os que afirmam que esta “glória” vem arrefecer os sofrimentos, mitigar as dores; faz que, mesmo por um instante, tudo seja esquecido: o povo imerso na miséria, no desemprego, na violência, na corrupção, na injustiça social, na instabilidade, na má distribuição de renda, na ineficácia do sistema de saúde, na falta de moradia, de terras, de escolas, de comida,... Ufa! Bem, mas se esse for o objetivo de tal “glória”, percebo que o povo do “gueto” gosta de viver de ilusão. A “família Scolari”, portanto, conseguiu transformar o “gueto” em o “País das Maravilhas”. Leibniz declarou: “esse é o melhor dos mundos possíveis”. Eu gostaria de acrescentar: “o melhor lugar do mundo é aqui”; este imenso “gueto”; o “Sítio do Pica-pau amarelo”, onde tudo é faz de conta.
Estamos em festa! Que interessa o risco Brasil? Qual a importância da alta do dólar? Que diferença faz se há fuga de capital neste “gueto globalizado?” Pra que tanta preocupação com a sucessão presidencial? É festa! Deixemos de lado o PIB, a dívida externa e interna. Somos penta! Aproveitemos a festa!
Não, não questiono de modo algum a conquista. Afinal é a felicidade geral e irrestrita; é a conquista dos insensatos. Não me queiram mal, pois também sou insensato. Insensato quando assisto inerme tais cenas pela TV; insensato quando creio que mais alguém partilha comigo desta inócua revolta; insensato quando escrevo estas apressadas linhas; insensato quando penso. É isso, meu problema, minha insensatez está em pensar. Até para viver em um “gueto” é preciso pensar. Talvez Descartes estivesse certo: “Cogito, ergo sum”. O existir advém do pensar. Acredito que Descartes estabeleceu o projeto ideal: para que o Estado exista de fato, faz-se mister que seus cidadãos pensem.
Descubro atônito que, além de insensato e nascido em um “gueto”, este sequer tem existência real, pois meus concidadãos prescindem e esnobam a capacidade de pensar. Pobre “gueto” meu!
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