terça-feira, 23 de outubro de 2012

Último desejo




Meu suicídio é iminente. E todos, todas, e eu também me pergunto porquê. O vetusto semanário entre as mãos me leva a estabelecer uma primeira verdade: a notícia é uma necessidade, mas é igualmente um desmande insano e incoerente.
A estupefação leva-me a optar por ouvir música; de modo apressado escolho aleatoriamente um CD, introduzo-o naquele estreito receptáculo e cerro a tampa, pressiono alguns poucos botões e Judy Garland canta “Over the Rainbow”. Meus olhos voltam-se ao semanário, percorrem-no um tanto aflitos, um tanto aturdidos. Discordo de imediato de Platão, pois minha realidade não está dentro, nem está fora da caverna: está no surreal.
Barak Obama mata um inseto diante das câmaras e faz questão de apontar para o moribundo numa atitude simbolicamente eufêmica. Recebe críticas de uma organização pró-animais! Eu já não sei mais o que é absurdo. Invejo Kafka. Mas continuemos: o mesmo Obama indica Lula para a presidência do Banco Mundial, num preito ilimitado ao apedeutismo.
Agora estou certo do que quero: um suicídio intelectual, se é que algum dia da intelectualidade me fiz portador. E quero o que quero, por saber o que não quero: jazer compactuado com a ideologia que dá suporte a uma cínica ignorância. Mas quero um suicídio diferente, algo passível de tornar-se ditoso; eu quero a comicidade do suicídio, algo de fazer inveja a Frederico Fellini. E por falar em absurdo, o CD player agora reproduz os últimos acordes de “Moon River”.
Meu suicídio intelectual terá como ponto de partida o silêncio, mas não um silêncio passivo ou calado ou submisso. Não! Meu silêncio será aviltante, ofensivo, escarnecedor; caracterizar-se-á pela insolência do silenciar. O CD player, depois de um breve silenciar, permite que Tony Bennett cante “Days of Wine and Roses”. Que contradição! A contradição é nossa cotidianidade.
Como todo suicida, deixo por escrito meu último desejo: Não quero homenagens, encômios nem prantos. Sem a alegria profana preferiria ficar insepulto - e decerto ficaria, pois não tenho Antígona por irmã. Não quero missas de corpos ausentes e presentes. Eu quero um churrasco, algo bem brasileiro e tupiniquim. Eu quero a farofa, o pagode, a “pelada” depois da bebedeira. Eu quero a presença de mulheres lúbricas e seminuas; eu quero a sistêmica e institucional baixaria. Enfim, eu quero uma confraternização tipo – e digna – da “Granja do Torto”. Que convidem políticos, corruptos, inimigos; em suma: a canalha! Quero sorrisos em demasia. Posso vos garantir: no evento não haverá prantos nem ranger de dentes!
Testamento?! Não, nem mesmo um legado. A meus filhos - gerados quando ainda havia crença no amor - o pedido expresso de perdão por tê-los lançado na cômica, insensata e desprezível dimensão a que chamam mundo. Que meus livros sejam queimados e suas cinzas se tornem pigmentos de tintas baratas que pintam os muros de terrenos baldios.
Um último pensamento absurdo ainda passa pela minha confusa e dementada cabeça: ouvir o réquiem de Mozart. Qual nada! Deixemos Mozart fora disso, dessa torpe bizarria. O CD player reproduz agora “What a Wonderful World” na voz de Louis Armstrong.  

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