Recordo-me,
e sem muita dificuldade, de um tempo passado. Foi tempo único, singular, onde
as relações se mesclavam entre mudanças, revoltas, superações. Na verdade,
“tudo ido, lido e vindo do vivido da minha adolescidade”. Com o próprio tempo
tínhamos uma relação de companheirismo, um partilhar fraterno. Mas as mudanças
chegaram súbitas e exigiram de nós, os paladinos da nova geração, uma rápida
readaptação. Ora, toda mudança é difícil; o obsoleto não nos conquista, o
desconhecido nos apavora. Então saímos em busca de recursos que viabilizassem
as irrevogáveis mudanças. Fugas, portanto, são toleráveis.
E
fugimos de casa, dos velhos hábitos, para a vida alternativa, para as drogas.
Mas a relação com as drogas tinha outra tônica; o uso de drogas revelava-se
como um libelo, algo como um postar-se contra novos ditames de um contexto
social que se nos revelava nefasto, mas nunca como um fazer reacionário. Em
suma, instávamos pela não mudança e igualmente por não manter o mesmo status quo. E vivemos o movimento Beatnik, Woodstock, Beatles,
Jimmy Hendrix, The Who, Rolling Stones etc. Vivenciamos também os
cabelos longos, os Hippies, as loucuras de uma juventude sempre escandalosa e
ardente, o sexo grupal, os acampamentos, as caronas sem destino e a maconha
para 100 anos.
“Bem
que eu me lembro, a gente sentava ali, a beira do aterro sob o Sol, observando
hipócritas, espalhados andando ao redor”. Mas os hipócritas estão em todo o
lugar; são ubíquos; superam o espaço-tempo. Não me recordo se foi exatamente
ali; pode ter sido em outro lugar, quando travei, pela vez primeira, meu
contato com a Filosofia Primeira. Em torno de uma “fogueirinha de papel”, o
grupo buscava explicações para o Ser. Mas não o Ser do Ente e igualmente
doentio heideggeriano. Não! Buscávamos unicamente a simplicidade do Ser; um Dasein ausente e presente ao mesmo
tempo, no mesmo lugar; o Ser aí podia, inclusive, não estar mais aí, e sim lá
ou em lugar nenhum. “Here, there in
everywhere”. As drogas nos tornavam ausentes de nossa própria presença.
O
primeiro pensador se manifesta acerca da temática. “Nossa essência é essa: não
saber o que somos. Se soubermos o que somos, agente perde o contato com agente
mesmo”. Alguém aquiesceu: “Falou!”. Um replicante interviu. “Mas se não
soubermos o que somos, continuamos não sendo nada”. O mesmo alguém concorda: “Beleza!”.
Um terceiro interrompe. “Cara, a essência agente tem buscar para saber qual é”.
O eco responde: “Falou, vou apertar mais um pra gente resolver essa parada”. E
um silêncio nos envolveu enquanto o cara pilava o fumo. Um mais destemido
arriscou: “Existe uma essência em nós e uma fora de nós. Se buscarmos uma
essência fora de nós que não se dê bem com a essência dentro de nós vai dar o
maior Xabu”. O que pilava o fumo cortou: “Ih, o cara aí, vem com esse papo
estranho querendo bagunçar com a nossa filosofia”. O baseado fica pronto e tem
início a partilha. Silêncio; um silêncio sacro, profundo, pensado. O que retomou a conversa propõe. “Eis a nossa essência! Buscada fora de nós que está
sempre de acordo com o que está dentro de nós”. Um sino-descendente replica:
“Prefiro a essência de um chá; é muito legal”. O mais ousado arremata: “Aí,
minha essência eu cheiro ou injeto.”
Mas
a polícia - os hipócritas que andavam ao redor - chegou e levou-nos todos para
a DP. “Que coisa deselegante, agente no meio de um congresso, de um encontro,
de um colóquio manero, sei lá, uma onde dessa aí. E vem os cara pra nos fazer
calar. Pô aí, onde é que tá a liberdade de expressão? Agente envolvido num
lance legal, à procura de nossa essência. Depois falam que os jovens não servem
pra nada; os cara não deixam nem agente pensar”.
Então
percebi que a seriedade da filosofia não se resume a quem filosofa ou sobre o
que se filosofa, mas sim no envolvimento e na determinação daquele que o faz,
independente se drogado, careta, chapado ou em crise de abstinência.
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