Certa
feita, lá pelos idos dos anos 80, estando eu em New Orleans, dispus-me
acompanhar um funeral. A tradicional New Orleans Jazz Funeral dava a tônica do
evento. Evidentemente que este tipo de cortejo vincula-se ao cultural e
revela-se sobremaneira de interesse dos amantes do jazz. Nesta oportunidade, pude perceber que o caixão era como que
embalado ao compasso da música, oferecendo ao recém-defunto uma última dança.
Talvez, nesta oportunidade (quem o sabe?) o clima do festivo Mardi Gras mescle-se
aos lamentosos acordes do jazz ou blues, proporcionando ao féretro um entusiástico
adeus.
E cá
estou, outra vez, como intrépido sequaz de outro cortejo funéreo, mas desta
feita submetido à outra cultura, e, ipso
facto, a outros valores. Não me perguntem pelo nome do defunto, profissão,
família, posição social, porque tais detalhes me soam inúteis. Como também não
posso discorrer sobre tipo físico, altura, peso, cor dos olhos ou cabelos; são
meros acidentes e não predicados, muito embora nenhum destes sejam objetos de
meu interesse. Apenas tenho por hábito acompanhar enterros e observar os ritos
e práticas desenvolvidas durante o mesmo. Poder-se-ia dizer que sou um
pretensioso defensor de uma insipiente antropologia macabra.
Na
frente, lentamente, segue o carro negro que conduz o corpo em seu derradeiro
passeio por ruas outrora exploradas. Atrás deste, ou melhor, grudado ao
para-choque do auto, como se fosse estepe ou acessório, o bêbado conhecido da
pesarosa família. O bebum parece desempenhar o papel coadjuvante a ele
conferido com a seriedade de um diplomata: cenho cerrado, ensimesmado,
cabisbaixo, resignado, cioso de um dever que lhe absorve por inteiro. Logo em
seguida a família: a viúva envolta em negros trapos, amparada por filhas de
olhos vermelhos. Filhos desfigurados com suas esposas afetadas. Netos
estupefatos, com rostos cansados e edulcorados de xarope e catarro, caminham
abraçados. Olhares perdidos, vagos, desamparados.
Uma
ala de velhas mulheres, de expressões laconicamente arrebatadoras e súplices do
nada, caminha com presumida insegurança. São carpideiras. E aqui me permito
verberar tal conduta: prática resumidamente obscena! Afinal, o que é chorar
pelo desconhecido, por quem não se tem admiração, por quem não se tem respeito, apreço?
O expediente apenas reitera minha quase certeza: seres humanos criaram uma
relação intrínseca com a piedade; eles têm necessidade de causar comoção e
estimular a piedade. Diferentemente do cortejo norte-americano, este premia o
féretro com a lamúria e o destempero.
Mas
continuemos com nosso atípico tour.
Depois vem a turba ínsita à comitiva, eivada de vozes apressadas e pastosas,
que rumina cânticos e orações, numa tentativa escandalosa e piegas de requestar
a atenção de algum anjo ou entidade metafísica que esteja ali, ao acaso, e
possa mitigar a dor, não de quem fica, mas de quem já se foi. Encerrando o
cortejo, aqueles, que como eu nada tem melhor a fazer, e que buscam ocupar o
tempo de forma singular. Entretanto, não pensem os assustados leitores que nós,
os estranhos à comitiva, ficamos imunes aos efeitos insalubres de tal jornada.
Não! As vozes que pranteiam, os soluços em murmúrio e as rezas arrebatadas
formam um conjunto sem igual, que se enformam num misto de mantra caricato e
sugerem depressão e insânia.
Então
meus possíveis leitores põem-se a questionar acerca do porquê do meu exótico tour. Em verdade, posso falar num
diletantismo; a teoria aristotélica da vontade de conhecer típica de todos os
seres humanos posta em prática. Gosto de observar os seres humanos afrontados
pelo ângulo anverso; gosto de percebê-los em suas carências e descomposturas;
gosto de defrontá-los diante da patente fragilidade; folgo em flagrá-los em
suas incúrias e comicidade. Nesse ponto, os que me leem, deliberada ou
casualmente, piedosos e indignados, esbravejam e me dizem um sádico. Mas por
que sádico? Eu não sinto menor prazer em seus sofrimentos, apenas lamento as
escolhas estúpidas. E qual seria a diferença entre o sádico e o masoquista?
Sadismo e masoquismo são correlativos necessários. A vida sim é sádica, e só se
mostra sádica porque os humanos se revelam como masoquistas. Antes mesmo de
masoquistas, os seres humanos me parecem tolos, pois tolos são os que exigem da
vida mais do que ela pode dar. Uns exigem da vida realização, outros a
felicidade, outros o reconhecimento, outros o respeito, outros ainda, os mais excêntricos
e arrebatados, reclamam da vida um viver eterno.
“Deixai
os mortos sepultarem seus mortos”.
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