sábado, 10 de agosto de 2013

Cortejos


Certa feita, lá pelos idos dos anos 80, estando eu em New Orleans, dispus-me acompanhar um funeral. A tradicional New Orleans Jazz Funeral dava a tônica do evento. Evidentemente que este tipo de cortejo vincula-se ao cultural e revela-se sobremaneira de interesse dos amantes do jazz. Nesta oportunidade, pude perceber que o caixão era como que embalado ao compasso da música, oferecendo ao recém-defunto uma última dança. Talvez, nesta oportunidade (quem o sabe?) o clima do festivo Mardi Gras mescle-se aos lamentosos acordes do jazz ou blues, proporcionando ao féretro um entusiástico adeus.

E cá estou, outra vez, como intrépido sequaz de outro cortejo funéreo, mas desta feita submetido à outra cultura, e, ipso facto, a outros valores. Não me perguntem pelo nome do defunto, profissão, família, posição social, porque tais detalhes me soam inúteis. Como também não posso discorrer sobre tipo físico, altura, peso, cor dos olhos ou cabelos; são meros acidentes e não predicados, muito embora nenhum destes sejam objetos de meu interesse. Apenas tenho por hábito acompanhar enterros e observar os ritos e práticas desenvolvidas durante o mesmo. Poder-se-ia dizer que sou um pretensioso defensor de uma insipiente antropologia macabra.  
 
Na frente, lentamente, segue o carro negro que conduz o corpo em seu derradeiro passeio por ruas outrora exploradas. Atrás deste, ou melhor, grudado ao para-choque do auto, como se fosse estepe ou acessório, o bêbado conhecido da pesarosa família. O bebum parece desempenhar o papel coadjuvante a ele conferido com a seriedade de um diplomata: cenho cerrado, ensimesmado, cabisbaixo, resignado, cioso de um dever que lhe absorve por inteiro. Logo em seguida a família: a viúva envolta em negros trapos, amparada por filhas de olhos vermelhos. Filhos desfigurados com suas esposas afetadas. Netos estupefatos, com rostos cansados e edulcorados de xarope e catarro, caminham abraçados. Olhares perdidos, vagos, desamparados.

Uma ala de velhas mulheres, de expressões laconicamente arrebatadoras e súplices do nada, caminha com presumida insegurança. São carpideiras. E aqui me permito verberar tal conduta: prática resumidamente obscena! Afinal, o que é chorar pelo desconhecido, por quem não se tem admiração, por quem não se tem respeito, apreço? O expediente apenas reitera minha quase certeza: seres humanos criaram uma relação intrínseca com a piedade; eles têm necessidade de causar comoção e estimular a piedade. Diferentemente do cortejo norte-americano, este premia o féretro com a lamúria e o destempero.

Mas continuemos com nosso atípico tour. Depois vem a turba ínsita à comitiva, eivada de vozes apressadas e pastosas, que rumina cânticos e orações, numa tentativa escandalosa e piegas de requestar a atenção de algum anjo ou entidade metafísica que esteja ali, ao acaso, e possa mitigar a dor, não de quem fica, mas de quem já se foi. Encerrando o cortejo, aqueles, que como eu nada tem melhor a fazer, e que buscam ocupar o tempo de forma singular. Entretanto, não pensem os assustados leitores que nós, os estranhos à comitiva, ficamos imunes aos efeitos insalubres de tal jornada. Não! As vozes que pranteiam, os soluços em murmúrio e as rezas arrebatadas formam um conjunto sem igual, que se enformam num misto de mantra caricato e sugerem depressão e insânia.

Então meus possíveis leitores põem-se a questionar acerca do porquê do meu exótico tour. Em verdade, posso falar num diletantismo; a teoria aristotélica da vontade de conhecer típica de todos os seres humanos posta em prática. Gosto de observar os seres humanos afrontados pelo ângulo anverso; gosto de percebê-los em suas carências e descomposturas; gosto de defrontá-los diante da patente fragilidade; folgo em flagrá-los em suas incúrias e comicidade. Nesse ponto, os que me leem, deliberada ou casualmente, piedosos e indignados, esbravejam e me dizem um sádico. Mas por que sádico? Eu não sinto menor prazer em seus sofrimentos, apenas lamento as escolhas estúpidas. E qual seria a diferença entre o sádico e o masoquista? Sadismo e masoquismo são correlativos necessários. A vida sim é sádica, e só se mostra sádica porque os humanos se revelam como masoquistas. Antes mesmo de masoquistas, os seres humanos me parecem tolos, pois tolos são os que exigem da vida mais do que ela pode dar. Uns exigem da vida realização, outros a felicidade, outros o reconhecimento, outros o respeito, outros ainda, os mais excêntricos e arrebatados, reclamam da vida um viver eterno.


“Deixai os mortos sepultarem seus mortos”.

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