quarta-feira, 4 de novembro de 2020

A Confraria do Caldo de Cana

 

Foi uma mensagem breve, sucinta, na qual eu noticiara a moenda recém adquirida e instalada, a cana colhida, o sumo extraído e o quanto essa “paisagem” estaria vinculada à minha infância e adolescência. Em verdade, a “paisagem” de que falo é nada mais que memória; memória involuntária ligada a imagens, cheiros e sabores. Eu, ciente de minha não originalidade, pois que Marcel Proust, através do aroma das madeleines pode reviver toda sua infância, surpreendi-me sobremodo foi com a repercussão dentre os familiares, pois que a todos a narrativa despertou sentimentos tão homogêneos. Não estou bem certo tratar-se de uma confraria ... talvez uma irmandade, um sodalício ou algo que o valha. O fato é que há um laço em comum, inconsciente por certo, a nos unir, irmãos e primos nascidos nos idos dos anos cinquentas e membros de uma mesma família.  

E lá estávamos nós, pequenos, encantadoramente irresponsáveis, a nadar no córrego próximo, a correr pela pequena chácara, a perseguir aves, a subir, dependurar e balançar em árvores. A amendoeira a sustentar um bando de meninos em seus galhos. As mães e a avó, aos gritos, a exigir um mínimo de correção em face das provocações dentre a pirralhada; os pais e o avô a instalarem a moenda manual. E foi extraído o primeiro caldo; todos queriam ser os pioneiros a provar do néctar da cana de açúcar. Os pais se revezavam no exercício estafante proposto pela moenda e sua finalidade; sempre havia alguém que gostaria de beber mais um pouquinho. E junto a tudo isso vinha a amizade, a alegria, a descontração, a camaradagem, o respeito... Eis a origem do inequívoco e irrefletido laço.

Aqui volto a pensar em Proust; ele estava “Em busca do Tempo Perdido”. Eu não, e creio que nenhum de nós, membros da suposta confraria, entenderá o tempo, o nosso tempo, como perdido. Os que permearam aquele tempo, nossos ascendentes, foram personagens exemplares. O agradável da memória é a consciência que temos dela. Esta consciência, por certo, é quem estimula o irrefletido, a espontaneidade da pretendida confraria. Preocupações com o tempo passado? Não, mas com o tempo futuro. Por que? Que imagens, aromas e sabores norteiam, acompanham e acompanharão as novas gerações? Que mensagens, cheiros e paladares vamos legar a nossos descendentes?

Bem, perante a similaridade de sentimentos incitados por minha proto narrativa, a responsabilizar-me, inclusive, pelo bem estar dos familiares/personagens e leitores deste breve texto, afirmo-vos de que o açúcar contido na cana não é refinado e possui baixo índice glicêmico. Ficai, portanto, à vontade quanto à degustação. Nada obstante, muito embora não consigamos transmitir o vivenciado, busquemos, pelo menos, repassar nossos sabores e aromas de modo a torná-los vívidos às gerações seguintes.     

2 comentários:

  1. Lembro bem da moenda. Por muitas vezes só bebíamos caldo de cana.
    Tempo bom

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  2. Moenda, avós, primos, casa da vó Hannah, vô Dario com seus livros. O riacho cristalino, as árvores frutíferas... obrigada, primo por me fazer relembrar!

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