terça-feira, 25 de junho de 2019

Personagens



Entendo que andar por lugares antigos desperta-nos para uma consciência histórica, pois que a memória, de certo modo, vincula-se à história. Os “lugares” da memória são como que estimulados com a visita e convoca-nos à reflexão. Pondo de lado a faceta melancólica, deparo-me, então, com um ressurgir de personagens que me povoaram a infância.

E lá estava eu a deleitar-me com o Largo do Boticário: o casario antiquíssimo, as ruas forradas de pedras, fios de águas ainda cristalinas, a parte exuberante de uma floresta... O caminhar a que me obrigara pelo Beco do Boticário, mesmo que lento, após o "desbravar da Rua Cosme Velho, acabara por provocar certo cansaço. Recordei-me das escadas nas margens da floresta e para lá dirigi-me.

Ao longe, tive a nítida impressão, ou melhor, a certeza de que outra pessoa já descansava sobre os rústicos degraus. À medida que me aproximava, percebi tratar-se de elegante e jovem senhora trajada com roupas antigas, na verdade, algo bem démodé. Sobre os cabelos presos - o penteado antiquado - um extravagante chapéu. Apoiado à mureta que limita lateralmente as escadas, um curioso guarda-chuva. Pareceu-me triste... sim, eu a conhecia; eu a reconheci: Mary Poppins. Não, não me reporto a Julie Andrews, a intérprete do personagem, mas ao personagem mesmo. Sim era a governanta, a babá, a nanny se assim preferirdes. Todavia, eu não estava em Londres, não se tratava de Upper Richmond Road ou do West End, nem mesmo de um hinterland; estávamos no Brasil, Rio de Janeiro, Cosme Velho...

Aproximei-me. E Mary sorriu-me: um sorriso cansado, desalentado. Observei-a mais atentamente: os anos não lhe haviam maltratado, apesar do patente esmorecimento. Pus fim ao silêncio: – “É surpreendente e bem prazeroso encontrar-te. Trata-se de uma experiência gratificante. Mas... o que te traz a este lugar?” Lançou-me um olhar mais intenso para responder: – “As evocações, as expectativas, as aspirações e vontades de pupilos como tu”. Extasiei-me ao ouvir aquela voz. Acredito que alguns segundos se interpuseram em nosso diálogo. A personagem pareceu tomar fôlego e prosseguiu: – “Vossa geração aspira uma melhor educação e orientação aos filhos. Os rebentos desconhecem limites, vivem a fantasia de um mundo acabado e criado para os servir; as crianças e jovens carecem de valores, pois vos mostrastes incapazes de transmiti-los. Esta geração apenas retrata o vosso fracasso, o vosso descrédito. Crianças e adolescentes prescindem de educadores, pois mesmo que indiretamente, têm a tutela do Estado”. A famosa babá precisou tomar algum fôlego para continuar: – “E isso teve origem na vossa incúria. Antes mesmo de abdicardes de princípios e valores, abristes mão de Deus. Então quisestes colocar o ser humano para preencher tal lacuna, mas sem Deus abdicastes também do próprio ser humano; então, experimentastes o vazio. Distantes de Deus, vós vos lançastes no desespero do individualismo; eis o fruto da vossa inépcia”. Misto de pasmo e súbita ancilose limitei-me a olhar para a senhorita Poppins. Ela, então, rematou nosso encontro: – “Nada a fazer”. Um sorriso lacônico e o pálido “Adeus!” A nanny ergueu-se, empertigou-se, ajeitou o chapéu na cabeça ornada por antigo penteado, pegou o guarda-chuva e fez-se ausente dentre a nesga de floresta.

Permiti-me ficar preguiçoso pelos degraus da escada. Experimentei certo desânimo, muita embora estar tentado a esboçar em papel Mary Poppins no Largo do Boticário. Ainda investido desta ideia, ouvi uma voz infantil que instava: – “Desenha-me a criança do mundo atual”. Surpreso com a voz, voltei-me de súbito para a mata adjacente. E lá estava ele, exatamente como Saint-Exupéry descrevera: o principezinho. Todavia, estou certo, naquela mata não havia Baobás. Sim, o Pequeno Príncipe permitira-se abandonar o asteroide B612. Visitava-me! Em face do meu aturdimento, o recém chegado personagem insistiu: – “Desenha-me a criança do mundo atual. Retrate-a; precisas melhor conhecê-la e cativá-la”. Nada pude fazer e/ou responder; fiz-me mudo, apático. Então, o principezinho continuou: – “Pelo que pude perceber, às crianças faltam ingenuidade. A infância lhes foi projetada; a meiguice extraviada. Onde estão o lúdico e o espontâneo? Não há mais a nobre interação infantil; há apenas a influência de pais assustados, que para preservarem os rebentos de um mundo rival, priva-lhes do convívio com o próprio mundo. Vós não conheceis vossos filhos, pois que sequer os cativastes. As crianças são instaladas em bolhas; tanto os condomínios fechados quanto os brinquedos eletrônicos as afastam da sadia convivência. As crianças, hoje em dia, temem não só os tigres e as serpentes, mas também as correntes de ar, a terra nua sob os pés, os alimentos”. Uma tentativa de sorriso e continuou: – “Os jovens dificilmente observam estrelas. Jovens jamais se fariam exploradores porque perderam o interesse na ação que faculta o conhecimento; tudo lhes é administrado de modo virtual; tudo lhes é introjetado. Até a revolta vivida pela juventude tornou-se algo protocolar; tudo é tão previsível... Infelizmente, crianças hodiernas, na verdade adultos esquisitos, não aguam flores nem revolvem vulcões!”.

Mesmo distante de qualquer serpente, o menino príncipe permitiu-se desaparecer devagarinho entre as névoas do meu imaginar, deixando-me entregue à máxima que deve resumir, inclusive, toda relação pais e filhos: “Tu te tornas eternamente responsável por aquilo que cativas!” 

segunda-feira, 24 de junho de 2019

Primitivos



Vi-me bastante contrariado ao deparar com a aranha; justo ali, junto a meus sapatos. Aquilo me pareceu inconveniente, um óbice ao meu conceito de higiene. Aquele bichinho articulado, com oito patas, causava-me repulsa. Dele devo livrar-me o quanto antes. Mas, ... mamãe dizia para que nunca as matasse; um lar com aranha é um lar saudável. Seria, de fato? Onde se fundamenta essa “sabedoria” dos antigos? Ciência? Não, mas a ciência vem corroborar tal crença. Aranhas nem sempre são agressivas ou perigosas e podem nos oferecer alguma proteção, pois operam no controle de pragas.

Incrível como nossa primitividade, essa característica tão presente nos seres humanos, assume descaradamente o título de “instinto de sobrevivência”. O ser humano clama por proteção, mas mata por diversas razões; ele mata até seus iguais e pelos motivos mais torpes. O ser humano mata para alimentar-se, mas também mata aqueles dos quais não se alimenta. O ser humano mata por esporte, por prazer. E que culpa tem o instinto em tudo isso? O simples fato de matar para comer revela primitividade.

A estupidez humana não conhece limites, e o pior é que sempre busca desculpas para sua patente crueldade. Outra justificativa para tirar a vida de animais é o “bem estar da sociedade”. Certa vez, ao folhear um exemplar da “Revista Seleções do Reader’s Digest”, pude deleitar-me com um fato ocorrido na Índia, se não me falha a memória. No interior do país, em distante região agrícola, os moradores perceberam a presença de expressivo número de serpentes numa plantação de batatas. Reuniram-se, e preocupados com o “bem estar dos agricultores”, resolveram declarar verdadeira guerra aos répteis rastejantes. Pois bem, e assim foi feito: as serpentes foram dizimadas. A colheita daquele ano? Total fracasso; os tubérculos foram totalmente devorados pela população de lebres.  

Bem, se falar acerca de aracnídeos e serpentes soa sobremodo deselegante aos detentores de sensibilidade, podemos discorrer sobre outro protagonista considerado “praga”, pois que este assumiu péssima fama no convívio com os ditos “racionais”. Ao assistir pela TV uma reportagem sobre as comemorações dos 500 anos da Universidade de Coimbra, dediquei maior atenção no que dizia respeito à Biblioteca Joanina, afinal, lá podem ser encontrados exemplares com mais de 800 anos. Todavia, pasmai, enquanto acontecia a entrevista com o ínclito bibliotecário, certo morcego fazia malabarismo dentre os circunstantes. Interrogado acerca do “intruso”, o entrevistado esclareceu que os morcegos habitam as bibliotecas; ele enalteceu a importância do mamífero voador para o ambiente, pois que estes se alimentam de traças e outros parasitas prejudiciais aos livros.

Desculpem-me, mas sou levado a encerrar esta brevíssima crônica com uma ilação grotesca: os morcegos têm mais apreço pelos livros do que a grande maioria dos discentes que conheci. Talvez isso explique, em parte, nossa primitividade.    

sábado, 22 de junho de 2019

Amico mio



Estava eu de férias em Florença, na famosa e não menos exuberante região da Toscana. Meu deleite, já que conhecimento é prazer, experimentava o ápice quando em visitas a palácios e igrejas na cidade símbolo do Renascimento. Meu italiano, muito embora a colaboração de Roberto Benigni, era bem resumido. E graças a ele, Benigni, eu usava e abusava do romântico “Buongiorno, principessa”. Este era o mote de que me utilizava para cumprimentar e chamar a atenção da simpática hospedeira, que com algum esforço orientava-me com seu inglês típico da “cosa mostra”. E foi desse jeito que apresentou-me a Carlo Collodi Terzo, senhor já bem entrado em anos, neto do autor de “As Aventuras de Pinocchio” e que, apesar da idade, conseguia falar com desembaraço e exibir sorrisos joviais.
Em outra oportunidade, lembro-me inopinadamente, conhecera alguém cujo avô fora também renomado: em Mikonos, Grécia, conheci o neto de Nikos Kazantzakis. Sim, o neto, cujo nome não me recordo, possui ou possuía um restaurante especializado em iguarias a base de frutos do mar. Não obstante a boa memória, algo me causa incômodo: pessoas da minha idade, da minha geração, podiam ser consideradas como pertencentes a uma geração de netos. Nossos avós, sim, foram pessoas de destaque, não celebridades; nossos avós foram patriarcas, esteios, exemplos, ícones. E a nós cabe ou coube a mais embaraçosa das partes: sermos esnobes.
Mas retornemos à Florença e seu curioso personagem. Certa tarde, refestelados em um terraço ornado de flores, visitado amiúde por esvoaçantes farfalle, depois de algumas taças do maravilhoso vinho de Chianti e sorrisos a granel, signore Carlo segredou-me algo estarrecedor. Disse-me ele que a tentativa de manter viva a memória de seu avô o levara a realizar as mais ousadas pesquisas. A partir de As aventuras de Pinocchio, sua obra maior, o neto resolveu buscar as desdobramentos e consequências dos personagens Geppetto e Pinocchio. É óbvio, a história não terminara daquele jeito. O reencontro entre os dois não se realizou simplesmente após um deles, Pinocchio, ter-se transformado em ser humano normal. Não, a coisa vai bem mais longe. Para melhor compreensão, vale a pena relembrar um pouco da história oficial.
Geppetto, carpinteiro ou marceneiro? Faz diferença? Bem, vamos a ele, Geppetto, além de carpinteiro, fazia um bico como manipulador de marionetes, haja vista sua condição humílima. Ao conseguir o bloco de madeira com um tal de Antônio, dá início ao esculpir do boneco. Todavia, ele começa pelas pernas. Perguntamo-nos: Por que? Coisa que só o manipulador e carpinteiro pode responder. Quando somente as pernas estavam prontas, o futuro fantoche começa a chutar seu criador. Cosa pazzesca! Mas ... continuemos. Ao ficar totalmente esculpido e depois de ter aprendido a andar, Pinocchio sai correndo e entra na cidade. Preso pelos carabiniere, acusa Geppetto de não gostar de crianças, o que leva seu criador a ser detido e acusado de maus tratos. Conselho Tutelar? Geppetto, depois de libertado, demonstrando o amor do criador por sua criatura, substitui os pés queimados do boneco e chega a vender seu único casaco para comprar livros e matriculá-lo na escola. Mas uma coisa chama a atenção do velhinho carpinteiro: o nariz de Pinocchio está maior; cada vez que o boneco mente seu nariz cresce. Atentai para o detalhe: a mentira é apenas reflexo de uma personalidade doentia. Em Pinocchio não havia integridade, honra, caráter ilibado e/ou qualquer princípio moral. A marionete foge de casa e Geppetto constrói um barco para dar início a busca por sua criatura. Levado por um pombo, Pinocchio encontra Geppetto navegando à deriva; lançado na água, o boneco de madeira tenta nadar em direção ao velhinho, até que ambos são engolidos e levados à praia por enorme atum. Pinocchio tornar-se-ia menino depois de zelar a cabeceira de seu pai até que ele se refizesse da doença adquirida.
Bem, de posse destas informações básicas, podemos dar continuidade ao que não é de vosso conhecimento. Segundo as pesquisas do signore Carlo, Geppetto, ao retornar para casa, não reassumiu a profissão de carpinteiro; woodcarving se assim preferirdes. O fato de o boneco Pinocchio ter-se transformado em menino conferiu destaque ao velhinho; a ele, inclusive, foram atribuídos poderes místicos. Foi procurado por um grupo de empresários, financiados pela família Fellicci, “cosa nostra”, que propôs financiar a construção de vários bonecos esculpidos, e depois que adquirissem vida – anima – seriam colocados em pontos chaves do governo. Afinal, apesar de terem aparência humana, na verdade não passariam de fantoches, marionetes, ou seja, fáceis de manipular. E assim foi feito. Geppetto enriqueceu, dando origem a uma vasta produção de bonecos, cujo problema com a hipertrofia nasal foi corrigida. Os bonecos tornados bambini seriam entregues a famílias de imigrantes italianos.
Não só na Itália, mas em grandes potências do mundo pode-se perceber claramente a presença e influência de marionetes em cargos e funções de destaque. Talvez isso possa explicar as duas grandes guerras, a revolução bolchevique, o surgimento do comunismo/ socialismo, o politicamente correto, a teoria da terra plana, etc.  Acontece que nem todos os bonecos, ao adquirirem o status de humanos, conseguem desempenhar a função de marionetes; alguns deles rebelam-se e pensam ter liberdade para fazer o que lhes dá na telha. E isso aconteceu com um exemplar confiado à família de imigrantes italianos vinda para o Brasil: a família Toffoli. Segundo ainda signore Carlo, este exemplar hoje é membro do judiciário daquele país, que junto com outros exemplares – exemplares estes oriundos de bonecos rejeitados pelo controle de qualidade da linha de produção da Geppetto’s enterprises e contrabandeados para o Brasil; gente sobremodo abjeta – pretendem fazer da nação uma pocilga.
Aqui solidarizo-me com os brasileiros: Pior do que ser manipulado é ser manipulado por fantoches!

quinta-feira, 20 de junho de 2019

Mensagem



“Quando o carteiro chegou e o meu nome gritou com uma carta na mão...” Fazeres ultrapassados; hábitos ultrapassados; expectativas ultrapassadas... A canção tem mais de 70 (setenta) anos e eu lamento por Isaurinha Garcia e Cícero Nunes. Nos dias atuais a preocupação não está em receber determinada mensagem, mas em receber mensagens. E para que essa prioridade seja satisfeita, outras preocupações se fazem igualmente importantes: sinal da internet; senha do wifi, etc. E os valores sofreram tantas deformidades que até a espera pela mensagem, a meu ver algo positivo, caiu em desuso. Seria a celeridade, de fato, saudável às relações? Não sei, os antigos também diziam que “a pressa é inimiga da perfeição”, ou inimiga das coisas bem feitas, se assim preferirdes, já que a perfeição inexiste. Mas isso também está ultrapassado, pois o paradigma vigente recomenda a pressa, a velocidade, como padrão para o sucesso.

Então falemos do sucesso: seria bem sucedido aquele ou aquela que não mais consegue escrever uma missiva? Sim, porque a pressa não os permite lançar mão de trabalhada linguagem para externar, através de cartas, a nobreza de sentimentos. As pessoas limitam-se, ou melhor, permitem-se revelar sentimentos através de emojis. Contudo, parece-me que o termo revelar não foi bem empregado no contexto. Em dias de hoje as pessoas não mais se revelam; elas se expõem! E quanto mais expostas melhor. E quando não se expõem, um hacker busca expô-las. A inviolabilidade das cartas, entretanto, era muito respeitada. Por que há essa necessidade premente em conhecer e expor a intimidade alheia?

Bem, falamos das expectativas (a espera) ultrapassadas; falamos dos hábitos (escrever cartas) ultrapassados. Só falta falarmos do fazer (aquele que entrega a carta) ultrapassado. Que saudades daquela imagem – estereótipo maldosamente construído – do cão perseguindo o carteiro! E a insistente campainha da porta a nos avisar da chegada de notícias?! A correspondência em profusão: os postais, os convites, telegramas, os resultados dos exames, a convocação... O que fica é só uma última mensagem: não há mais informes, comunicados, recados, felicitações. Há somente a carga desnecessária e fútil de torpes deformações.  

segunda-feira, 17 de junho de 2019

Master Chef



Venho, por meio desta, informar-vos de que estou disposto a participar do programa MasterChef, graças à veia culinária em mim recém desperta, e, acredito, que tal veia tenha se manifestado em virtude da popularidade da alimentação vegana. Sei que é bastante difícil para vós, que me conheceis como homem de letras, acreditar-me um gourmet, mas tentai modificar este estereótipo, pois criei receitas inimitáveis baseadas nos princípios do veganismo. Sim, um bolo - cupcake se preferirdes - de bertalha, berinjela e gengibre. Nada de açúcar, nem mesmo mascavo ou demerara; nada de óleos ou quaisquer recursos para dar liga. Enfim, uma delícia! E, não busqueis, já que nem sequer provastes, sopitar o sucesso que busco alcançar. Posso, inclusive, divulgar a receita, mas isso ficará para uma outra ocasião.
Eu poderia ainda discorrer sobre o meu quibe feito somente de aveia e trigo, minha pizza confeccionada apenas com berinjelas. E que tal meu salpicão feito de milho, passas, ervilhas e maçãs, tudo cozido com arroz integral? Meu Pot-au-feu, no lugar da carne, acrescento algumas lascas de cedro; meu Ackee é feito com macaxeira; meu Bulgogi, em vez de iscas de carne, uso folhas de mangueira. No Goulash, tiro a carne e introduzo mandioquinha. Minha Mussaca leva granola. Em meu Irish Stew, o cará (inhame) substitui a carne de carneiro. E, por fim, minha Paella, que além do arroz, azeite, açafrão e demais temperos, eu adiciono arroz, arroz e arroz.
Senhoras e senhores, prezados leitores, longe de mim diminuir ou fazer chacota com os que se dizem veganos, mas sou, inconscientemente, conduzido a Pedro Malasartes e sua Sopa de Pedras. O personagem tradicional na cultura ibérica mostra que, na verdade, a sopa não é de pedras; são os demais legumes e temperos que fazem da dita sopa algo delicioso. As pedras são descartáveis, meros artifícios. Em verdade, tudo não passa de maquinações de um caipira sagaz. Não obstante, dentro da antropologia filosófica, há uma corrente que coloca o paladar como o diferencial entre seres humanos e demais animais, afinal somos os únicos a cozinhar os alimentos e se valer de temperos. Essa conversa de se usar a razão para pôr em destaque os seres humanos em detrimento de outras espécies está ultrapassada, pois capacidade de pensar e desenvolver sentimentos são pertinentes também a outras animálias. As críticas daqueles considerados “carnívoros”, por sinal bem pertinentes, aludem a nossa condição animal e as nossas características de predadores. Proteína animal, portanto, seria indispensável a nossa manutenção e saúde.
Bem, já que referi-me à filosofia, a versão vegetariana seria o meio termo aristotélico, a harmonia entre extremos, o equilíbrio, a síntese dialética em sua mais ampla, saudável e saborosa acepção.    

domingo, 16 de junho de 2019

Protegendo o anônimo



Eis o grande desafio de momento: proteger o anônimo! E eu começo citando a Constituição Federal, em seu artigo 5º, Dos Direito e Deveres Individuais e Coletivos, no que se refere, especificamente ao Direito à Segurança. Nossa Carta garante a segurança pública para todos, – anônimos inclusive? – e refere-se não só a segurança policial, mas também jurídica. Como na lei devem ser definidos os crimes e as penalidades para quem os comete, pergunta-se: quem é esse (ou este) quem? Enfim, quem seria o anônimo? P----, trata-se de anônimo... Sim, e a quem atribuir os tais direitos ou crimes? Está difícil e tirando o sono de muita gente. Nessun dorma! Nessun dorma! Entretanto, continuemos, pois a Ciência Jurídica, ou suas interpretações, torna tudo possível. Vejamos: o anônimo é pessoa jurídica de direito privado ou público? Quem o sabe, afinal? Ele é anônimo. Talvez estejamos trilhando o caminho errado; corrijamos nosso rumo e observemos a coisa pelo âmbito da linguagem.

Anônimo: que não tem nome ou identificação; não está assinado; autor não identificado. Todavia, neste caso, pergunto: seria, de fato, um anônimo, ou pessoa que pretende passar por anônima? Sim, caso tenhais dúvidas sobre a diferença, consultai – melhor dizer assisti – a película italiana “Anônimo Veneziano”, com Tony Musante e a brasileira Florinda Bolkan. Só para recordar: “un viso anônimo che sà l’ingratitudine cos’è, e una parola troverà anche per te, per te”. Apesar da beleza do filme, retornemos ao tema. E se, porventura, não for respeitado o princípio constitucional que protege a todos, inclusive o anônimo? E se couber indenização? Quem defenderá seus direitos? Como ficaria a relação do anônimo com seu representante legal? Anônimo se relaciona? Ora, se o anônimo assinar uma procuração qualquer ele estará abrindo mão de seu anonimato.

Bem, sem querer ser um chato, mas já o sendo, e por inferência – ou seria convicção? – afirmo que o dito anônimo é irreal; e se existir é ser metafísico. Percebeis: não há materialidade alguma em afirmar a não existência do anônimo, como também não existe materialidade alguma em afirmar sua existência. Mas não me dou por vencido e quero esgotar toas as possibilidades. Que tal o discurso de um hacker e jornalista de esquerda norte-americano, que empenha-se sobejamente em defender um pilantra apenado, e para isso não mede esforços, não vê limites, não tem escrúpulos? E o mais relevante: ou ele não domina o português, ou é um perfeito imbecil, e isso pelo simples fato de confundir “defender o anonimato de sua fonte”, princípio jornalístico, com “defender fonte anônima”. Neste caso, proponho a seguinte solução: não se trata aqui de proteger o anônimo, mas sim de proteger o inimigo.

sábado, 15 de junho de 2019

All by myself



A noite fora horrível: insônia, frio, tosse, dores pelo corpo. Acabo de abandonar a cama. Desânimo seria a palavra correta para mensurar o tamanho da minha indisposição. O café com leite é sorvido a custo; o pão com requeijão engolido sem o menor prazer. Vago pela casa e busco uma atividade, sobre o que me interessar. Nada, como todos os dias... Penso em ler ou reler um livro qualquer. Mas eu não tenho um livro qualquer ou quaisquer; meus livros não são uns entre outros; meus livros são únicos. Ainda assim vagueio pela casa. Ali está o calendário. Que dia é hoje?
Não, nego-me acreditar nisso: hoje é o dia em que comemoro meu aniversário! A idade? “Poupe-me dos detalhes sórdidos”. Mas até o momento ninguém ligou. Ah, é cedo. Em breve os telefonemas terão início. Receberei alguma prenda? Gostaria de receber um presente diferenciado; nada material, dispendioso ... Sim, Marilyn Monroe cantando Happy Birthday para mim e esbanjando sensualidade. Contudo, ... Marilyn não faz meu tipo. Prefiro Ingrid Bergman; eu a beijaria em Casa Blanca ao som de As Time Goes By. Eu diria: – “Toque Sam” e todo o Marrocos a nos aplaudir e a zombar da cara de Humphrey Bogart. Como vingança ele telefona e me delata aos alemães. Neste momento meu telefone toca. Ergo o fone apressado e pergunto:  – “Quem é?” Uma voz inexpressiva oferece-me empréstimo. Desligo, não quero. Quase grito: – “Hoje é meu aniversário!”. Sim, onde eu estava? Ah, no Marrocos, a aturar os ciúmes de Humphrey Bogart e sua delação. Gostaria também de estar em Mikonos, naquele mesmo bar que serviu de palco a última cena de “A identidade Bourne”; lá pude degustar uma cerveja com minha mulher. Ou quem sabe, talvez, no café Deux Moulins, a partilhar do “Fabuloso Destino de Amélie Poulain”. Mas estou de volta ao Marrocos, e lá vem meu perseguidor; Bogart quer acabar comigo. Mas o cara que tenta me caçar não é alemão; é um spetsnaz. Sim, um russo enorme.
E por falar em russo, a música que se me invade agora é bem diferente. Eu não sabia que Sergei Rachmaninoff teve parceiros, pois Eric Carmen escreveu um poema e o adaptou ao Concerto nº 2 para piano. Então surgiu a canção “All by myself”. E eu solfejo: When I was yong, I never needed anyone and making love was just for fun. Those days are gone. De fato, quando jovem, eu julgava não precisar de ninguém e fazia amor por divertimento ... Realmente, mas aqueles dias se foram. E como a toda ação dá origem a uma reação de mesma intensidade e em sentido contrário, continuo meu bucólico solfejo: Livin’ alone, I think of all the friends I’ve known, but when I dial the telephone, nobody’s home. É isso, vivendo sozinho, eu penso em todos os que conheci; como gostaria de ligar para eles, convidá-los, mas ... quando eu discar o telefone, ninguém atenderá. All by myself. E eu repito: All by myself!

terça-feira, 11 de junho de 2019

Telhados



Quando menino, acredito que com nove ou dez anos de idade, ainda no ensino fundamental, à época designado curso primário, fora encarregado por Dona Clarice, a professora, de escrever breve redação com o tema: “o que vejo através de minha janela”.  Hoje podeis questionar semelhante título, alegando tratar-se de crianças intelectualmente imaturas, pois que a temática, em si, envolveria grande percepção social, bem como uma sólida dimensão subjetiva. Todavia, permaneçamos no campo do tangível, do ponderável; a professora visava apenas uma descrição paisagística da realidade material que cercava cada um de seus alunos.

Passados quase sessenta anos, proponho-me a reescrever a solicitada redação, mantendo, evidentemente, o mesmo mote, ou seja: “o que vejo através de minha janela”. Portanto, Allez, ma petite étudiant!

Recordo-me que na ocasião morava com meus pais e irmão em pequeno apartamento de fundos, num prédio de cor creme, encardido e localizado no subúrbio, zona norte do Rio do Janeiro. Como o apartamento era de fundos, quase tudo que eu via através das janelas eram telhados e alguns poucos quintais. Além disso só uma nesga do céu, ora azul, ora plúmbeo, ora negro e estrelado. Mas ... acabo de perceber; estou algo surpreso. Hoje, o que vejo são muros e telhados. Coincidência!? Prefiro acreditar em propósitos. Trabalhemos, então, com o material que nos é dado. Ora, o muro é o que cerca, o que protege, mas também limita. Logo, vamos nos ater aos telhados.

Trata-se de imagem sobranceira, de visão privilegiada. Contudo, esta posição quer fazer de mim alguém orgulhoso, arrogante. Refuto a distinção. Meu lugar elevado, proeminente, fez-se apenas por uma imposição sócio geoeconômica. Sim, vós me perguntais: e os telhados? Vamos a eles. O que pode-se perceber no barro que os serve de supedâneo? Sim, eu vejo formas geométricas traçadas com aquelas peças de barro, as telhas; eu vejo, por vezes, relações de simetria. Eu vejo gatos, principalmente à noite, que por ali passeiam, amam e discutem. Além dos telhados temos sempre o céu, o sol que ilumina os bons e maus, a chuva que favorece a justos e injustos.

Não obstante, pergunto-vos: e aquém dos telhados? Aqui não mais vejo, mas infiro. E o eu, com sua carga valorativa, é o ponto de partida para qualquer inferência. Suponho que telhados, além de nos abrigar das intempéries, dissimule nossa maldade, nossa mesquinhez; acoberte nossa licenciosidade, mascare nossa verdadeira jaez, oculte nossa dor e sofrimento. Telhados, antes mesmo das leis, já zelavam por nossa privacidade. Telhados, enfim, tornam-nos distintos, decentes, invejados.  

Bem, acima eu vos havia prometido uma redação, mas não o fiz. Perdoai-me! Não mais saberia fazê-la. A infância se foi, o lúdico cedeu espaço ao cáustico, a inocência perdeu-se ou perverteu-se. Culpar o tempo? Não! Nem a vida nem o tempo podem ser responsabilizados. Apenas eu. De um modo geral, as pessoas se julgam adultas, maduras, desenvolvidas e sábias quando sobre tudo pretendem racionalizar. Ledo engano! Por que não nos permitimos, de quando em quando, agir e pensar como crianças? Mais ridículo que parecer tolo é julgar-se sábio permanecendo tolo.

domingo, 9 de junho de 2019

Uma história que vovó contava



Domingo; não um domingo qualquer. E o que o tornava diferente era a quantidade de netos e netas presentes. Hoje, neste exato momento, a muito custo consigo recordar-me de 11 (onze) pessoinhas, – eu inclusive – cujas idades variavam dos 8 (oito) aos 15 (quinze) anos. Vovó e vovô deviam ficar alucinados com a gritaria, as rusgas, os desentendimentos, os risos... Mas vovô conseguia pôr ordem na casa e administrar aquela balbúrdia. A hora do almoço, por incrível que possa parecer, era o momento de maior entrosamento entre a petizada. A enorme sala do sítio abrigava uma daquelas mesas monásticas, e ela, a mesa, por sua vez, reunia à sua volta toda a pirralhada. Mãos lavadas, sentados em cadeiras ou tamboretes, frente ao prato, ao copo e talheres, na expectativa de provar as iguarias da avó.

E lá vinha vovó com bandejas, depósitos e panelas, e as espalhava pela superfície da mesa adornada pela clássica toalha xadrez. Ela servia o prato do marido em primeiro lugar e depois os netos menores; os mais velhos podiam servir-se sem o menor risco de qualquer desastre. Por último, nossa avó sentava-se à direita do esposo e tinha início o nosso banquete. Acredito que, para que nós, os netos, nos mantivéssemos calados à mesa, minha vó valia-se de um recurso próximo à psicologia reversa: somente ela falava. E aproveitava a ocasião para contar-nos histórias.

Certa vez, contara-nos vovó Hannah, um jovem chegara à cidade com o intuito de arranjar colocação em escritório contábil de parente distante. Tratava-se de rapazola inexperiente, interiorano e não muito lapidado; era falante, algo belo e chistoso. O trabalho que pleiteava seria coisa simples, o que poderíamos entender como típico de um office boy. Apesar da pré aprovação do parente, a senhora responsável pelas contratações entendeu, talvez para cumprir apenas um tipo de “rito processual”, realizar uma espécie de entrevista com o rapaz. Haja vista a patente falta de conhecimento específico na área contábil e a simplicidade no exercício da função pretendida, a senhora optou pelo questionamento pessoal. Foram perguntas acerca da família, do grau de instrução, religiosidade, etc. Todavia, como o jovem se fizesse simpático e de uma prolixidade extremamente agradável, a funcionária resolveu estender um pouco mais a prosa, fazendo-se, por sua vez, também espirituosa. Disse a senhora: – Bem, vou fazer-te mais algumas perguntas – e prosseguiu disfarçando um sorriso – Presta bastante atenção! O rapaz respirou fundo e pareceu concentrar-se. A mulher disparou: – O que um rapaz solteiro guarda debaixo da cama? O jovem abaixou a cabeça, dissimulou o riso e respondeu: – Seria o penico? A mulher permitiu-se rir à larga e obtemperou:  – Falas do urinol – valendo-se de um eufemismo. E corrigiu: – Mas não, a resposta correta seria um par de chinelos. O rapaz balançou a cabeça em anuência. A funcionária, então, fez a segunda pergunta: – O que um casal guarda debaixo da cama? O rapaz pôs-se a pensar, pensar... e após algum tempo murmurou um lacônico “Não sei”. A senhora decepcionada adiantou-se: – Simples, dois pares de chinelos. E na tentativa de evitar que a conversa se tornasse tensa, informou: – Pois bem, vamos a última questão; esta é fácil! Olhando o rapaz nos olhos perguntou: – Qual é o nome daquela fruta vermelha que se usa na salada ou como tempero? Desta feita, a resposta veio de imediato. O rapaz ergueu-se e com um amplo sorriso, decretou: – Três pares de chinelos!

quarta-feira, 5 de junho de 2019

Olhares



A abordagem filosófica do tema não é inusitada; Sartre já o examinara com propriedade em sua obra o Ser e o Nada. Na análise do filósofo, o olhar revela-se como algo invasivo, vigilante, acusador, fazendo presa de inquietação aquele que se torna objeto do olhar, o que causa embaraços, inclusive, à própria liberdade, pois que esta vê-se limitada. Porém, longe de espelhar-me no exemplar existencialista e seu característico existencialismo, busco analisar os olhares pelo estrito ângulo da estética das emoções. Seria isso possível? Vejamos!

Já faz uns bons anos, eu desempenhava a grata e quase estéril profissão de professor em instituição particular de ensino. Era próxima a hora do almoço; eu caminhava a passos rápidos pelos corredores da faculdade. Tinha a cabeça a mil. Sim, preocupações as mais variadas ocupavam-me os pensamentos. Acredito que exibia um semblante tenso, carregado. Alunos cruzavam o extenso corredor; alguns me cumprimentavam, outros preferiam me desconhecer. Eu sequer os via, haja vista a imersão em meus receios e lucubrações. Todavia, uma aluna, cujo nome não me recordo, ao aproximar-se, chamou-me pelo nome e saudou-me com um olhar cintilante, algo que irradiava alegria, positividade, confiança, uma pureza intata, serenidade. Pareceu-me que ela também sorria, não sei ao certo. Talvez o alcance e profundidade de seu olhar a fizesse parecer que sorria. Ela seguiu seu caminhar pelo longo corredor, deixando-me refém daquele olhar e totalmente liberto das inquietações.

Recentemente, caminhava eu pela rua deserta do bairro, desta feita de modo lento, apatetado. Sim, eu precisava fazê-lo, pois a vida de aposentado me angustia; eu busco um afazer qualquer, e como não o encontro, determino-me a andar. Claro, é um caminhar lento, sem destino ou objetividade. É algo patético... Não há nobreza, não há dignidade num caminhar erradio. Mas eu assim o fazia e faço. Chego à esquina de uma rua qualquer: um portão aberto, displicente, inconsequente. Aproximo-me. Uma mulher nova, não diria bela, mas com algum atrativo surge à minha frente. Olhou-me, buscou um sorriso e desejou-me ou decretou-me um Bom Dia! Seu olhar encabulou-me. Não, não tinha pureza, positividade ou alegria; tudo nele era impudicícia, era agressão, era subterfúgio. Era um olhar que precisava da companhia de um sorriso, pois que na ausência deste, aquele mostrar-se-ia torpe. O olhar era de tal modo luxurioso que fazia do sorriso uma mera irrisão.

Hesitante, respondi ao Bom Dia, se bem que aquele olhar ofendera-me. Senti-me devassado em minha patente oclusão, em meu espontâneo obscurecimento. Aquela estranha tentava reconduzir-me a uma dimensão que eu abominava. Então recordei-me de Sartre, pois até mesmo a liberdade consciente de sentir-me nada fora aviltada.

terça-feira, 4 de junho de 2019

Obituário



Já fazia dois anos ou mais que eu me afastara da vida citadina. O interior, a ruralidade sempre exerceu sobre mim forte atração. No campo, tudo pode resumir-se em simplicidade, tranquilidade e quietude. A família, por sua vez, agora extensa, haja vista os filhos, vivia em grandes centros e ainda alimentava expectativas de um viver saudável. Sendo assim, a relação com meus descendentes, poder-se-ia dizer, fez-se “morna”, pois dava-se de modo raro e esporádico. Passavam-se meses sem nos falarmos. Na maioria das vezes, era eu quem aparecia em suas casas na qualidade de visitante, abraçava os netos e depois de dois dias retornava ao meu eremitério.

Todavia, em meu existir interiorano nem tudo era perfeito; eu sentia alguma falta do teatro, da boa sala de projeção, de edificantes conversas. A solidão proporciona a reflexão e o pensamento quer expandir-se, quer relacionar-se. Na tentativa de suprir tais lacunas, portanto, eu me apegava a leitura de jornais. Minha avidez por notícias era tanta, que eu lia e relia os diários que se me apresentavam, independente da data de publicação ou temática. Eu me informava não só acerca de política e economia, mas também experimentava certo deleite com as fofocas sociais, com a moda, culinária, etc.

Naquela manhã de domingo, após a missa na matriz, eu retornara ao lar a meditar nas palavras de Mateus abordadas na homilia. “Segue-me e deixa aos mortos o sepultar os seus próprios mortos”. Mateus, 8:22. Nietzsche e seu Zaratustra levaram-me a tergiversar. Mais tarde, não mais investido de qualquer resquício religioso e/ou filosófico, permiti-me certo abandono na rede armada no alpendre de meu tugúrio, tendo nas mãos a gazeta impressa e distribuída há mais de quinze dias. Os olhos passeavam de lá pra cá em busca do novo, do inédito, do singular. A atenção redobrada; estava focado. Foi-se a seção dos classificados. Onde o invulgar, o significativo? Sim, o obituário apresentou-se como neófito. A informação era completa: abrangia nomes dos falecidos, lugares, horários e datas de sepultamentos, assim como o percurso do cortejo fúnebre nos quais os féretros poderiam ser acompanhados.

Súbito, algo reclama minha total atenção. Meus olhos fixam-se em determinada parte da página do periódico. Alguns segundos depois o impresso cai-me das mãos. Estava boquiaberto, pasmo, estupefato. Recolho as folhas de papel caídas a minha frente. Busco aquela parte do obituário e a releio com cautela. Enorme angústia se me invade. A notícia, de fato, a princípio causara-me torpor, depois descrença e por fim angústia. Sim, eu estava morto. Era essa a notícia estampada no obituário. Meu nome completo, mesma idade; a foto era também a minha. Como? Eu estava vivo e lia a notícia de minha morte! O sepultamento já acontecera; a campa do cemitério acolhera meu corpo. Acalmei-me e busquei sorrir. Recordei-me de Pirandello; eu seria a reedição, a encarnação, a consubstanciação de Mattia Pascal. Abandonei a rede; precisava voltar à cidade grande e acabar de vez com aquele mal entendido. Afinal, eu vivia a não-existência; tudo naquele momento era póstumo. Reuni documentos, juntei algumas peças de roupa e tranquei a casa.

A viagem mostrou-se mais demorada, o percurso mais longínquo do que de costume. Ao desembarcar na Estação Rodoviária, busquei o auxílio de um taxi, pois experimentava grande curiosidade em relação a minha tumba. Apesar do trânsito e tráfico intenso, a chegada ao cemitério não se fez tarde. Como gostaria de poder registrar esse momento: eu parado diante de meu sepulcro! Era simples, erguido sem nenhuma pompa, e ainda revelando os vestígios da tinta recém usada; literalmente “um sepulcro caiado”. A estatueta de um anjo protegia o habitante daquela sepultura: eu, esse que vos escreve. O humilde mausoléu exibia uma foto; minha foto. Sim recordo-me da ocasião: fora na casa de um dos filhos. Pude ler o epitáfio, algo bem clichê: “Descanse em paz”. Mas eu não estava ali sepultado. Quem teria sido o infeliz? Ou a infelicidade seria minha? Ora, eu continuava a viver a desditosa vida, embora exibindo o status de defunto.

Outro cortejo avizinhava-se de minha campa. Aproximei-me de um dos coveiros. Ele tratou-me com distinção. Busquei saber a história daquele que ali estava sepultado. Ele olhou-me com atenção e voltou-se para a fotografia presa à campa. Eu sorri e disse-me parente do morto, mas que só recentemente soube de sua passagem. Superando o espanto, fez o sinal da cruz e disse-me em poucas palavras que o meu “parente” fora encontrado na Estação Rodoviária, sem quaisquer documentos, desmemoriado e já em processo comatoso. Internado em hospital público, a imprensa encarregou-se de divulgar uma foto, o que facilitou a identificação por parte dos familiares. Dias depois eu viria à óbito. Não, não eu, mas aquele que diziam ser eu. Sim, eu fora reconhecido e identificado pela família. E agora?

Conseguis perceber a comicidade ou o ridículo da situação? Eu, o de cujus, buscando detalhes acerca da própria morte. E como contestar? Há uma premissa lógico-filosófica que estabelece: a negação de uma negação é uma afirmação. Ora, eu deveria negar o que me foi negado: a existência! Mas como? Meus documentos não mais tinham validade. Tornara-me fake, uma farsa, um embuste. Por outro lado, negar a existência de algo é afirmá-lo, pois como falar em algo sem pressupor sua existência? Todavia, seria possível minha existência real sem o aval da formalidade documental? Ah, como eu gostaria, então, de tornar-me um Elias; poderia simplesmente ser arrebatado aos céus. Mas minha faceta profética é manca; minha religiosidade é herética.

Bem, enganosamente fora dado por morto: eis minha primeira morte. Uma segunda, estou certo, não me proporcionará chances para qualquer comentário. Nada obstante, já me chega algum alento. Sim, muito embora as dificuldades que desse tipo de morte - ou não-morte - podem advir, uma certeza fez-se instalar em minha consciência: eu não tenho mais qualquer responsabilidade com a vida. Já percebeis que o simples fato de estarmos reconhecidamente vivos e termos ciência disso obriga-nos a desempenhar papeis os mais adversos e/ou desfavoráveis? Fora da vida, posso desobrigar-me das posturas hipócritas, dos desmedidos escrúpulos, da fingida sociabilidade, dos padrões estereotipados pelo vulgo insociável. E o mais gratificante em tudo isso é que só depois desta atípica morte pude sentir-me, de fato, de bem com a vida! 

segunda-feira, 3 de junho de 2019

Curiosidade semântico-científica



No auge do discurso que exorbita a tolerância, ou melhor, que prega o ir mais além na deferência ou flexibilidade com o que não se quer ou pode impedir; que preconiza o bom ânimo às opiniões opostas, nosso organismo mostra-se avesso, discordante. Nosso organismo revela-se como intolerante. Por que um êmulo doméstico diante do universo cientificista? O que teria tornado nosso corpo em adversário? É de nossa natureza ser contrário às circunstâncias fático-sociais? Ou estaríamos, de fato, sendo manipulados pelo cientificismo? O importante é que, pelo menos no que tange ao modismo do ser humano saudável midiático, nosso corpo desenvolveu intolerâncias: intolerância à lactose; intolerância ao glúten. O risível é que as pessoas - corroboradas por um desajeitado cientificismo - associam as atuações sociais e os imperativos estéticos a doenças. A intolerância à lactose está diretamente vinculada ao flatos, ou melhor, aos que liberam gases sistematicamente após a ingestão de derivados do leite. O flatoso, portanto, está perdoado; trata-se de uma doença. A intolerância ao glúten, por sua vez, tem a ver com a obesidade. Mas os infelizes não conseguem desenvolver bons hábitos alimentares. Logo, o gordo - obeso é nada mais que um eufemismo - também está perdoado.

Eis o curioso: nosso corpo desenvolveu a intolerância, enquanto nosso “ser” social aspira por tolerância. Quanta ambiguidade em um único e insignificante vivente! Enfim, seria esta uma mensagem subliminar da natureza mesma? Isto é, algo como um aviso que insta por nos tornarmos e demonstrarmos nossa ignota intolerância? Ou o cientificismo, aliado aos interesses laboratoriais, empresariais, busca condicionar e mover os cordões com que conduzem as marionetes, a grande manada humana? Ora, as empresas farmacêuticas continuam a lucrar com os que se convencem que são intolerantes; as empresas alimentícias aumentam sobremodo seus lucros com os que se propõem a uma alimentação alternativa. Coincidências? Não, eu acredito em propósitos. E, por favor, não me venham falar em pesquisa científicas ou similares; depois da ênfase na teoria da terra plana, tudo cai por terra.

Nada obstante, descobri que tenho algumas intolerâncias: socialmente, sou intolerante ao existir humano e seus expedientes mesquinhos para acumular lucro, louros ou glória; fisiologicamente - e aqui espero enriquecer e tornar-me celebridade - sou intolerante a glutamina. Sim, trata-se de um aminoácido não essencial, abundante no plasma e que pode ser sintetizado pelo organismo a partir de outros aminoácidos. E como descobri tal moléstia? Simples: com quase 70 anos, jamais tenho desgaste ou canseira física, minha imunidade é sempre ótima, dificilmente adoeço. Ora, por certo tenho alguma coisa de errado. No mundo hodierno deve-se, por vezes, apresentar fadiga, mostrar-se indisposto, com imunidade baixa e ter os nutrientes não absorvidos. Este meu “incômodo” é causado pela intolerância à glutamina.

Bem, espero sinceramente ser procurado por algum laboratório farmacêutico, quem sabe para obsequiar-me com algum lucro. E no medicamento estará estampado: No combate aos efeitos negativos da Glutamina. “Se os sintomas persistirem, o médico deverá ser consultado”.    

domingo, 2 de junho de 2019

Espelhos



Acredito que eu seja bastante sensível a comentários, mesmo os mais descabidos ou simplesmente provocativos. Mas o fato é que nada, ou quase nada do que me é dito, quando foge a meu conhecimento, fica sem algum tipo de pesquisa. E a presente demanda a mim se fez, não sei se advinda de comentário insipiente ou por irresponsável jocosidade, mas com efeito se fez.

Alguém, cujo nome prefiro omitir, declarou-me que um demônio habita os espelhos. Recordo-me com alguma dificuldade que, certa feita, quando menino, ao assistir pela TV a uma película grega, qualquer coisa nesse sentido fora dito. Todavia, são imagens furtivas, fugidias; cenas confusas, obscuras; e não por conta do filme, mas por causa do tempo decorrido e da minha capacidade cognitiva de então.

Pois bem, disposto a descobrir a veracidade da incômoda declaração, fiz-me ativo e devotado pesquisador. Uma primeira questão: por onde começar? Uma segunda: como interpretar o espelho...? O demônio – ou seria espírito? – que, assim diziam e dizem, nele habita, a mim fazia-se oculto, ausente. Outra dúvida fez-se presente: a entidade ficaria atrás ou no interior dos espelhos? Pensei em Ludwig Wittgenstein: o espelho reflete o mundo, o palpável, o físico; coisas como ética, estética e metafísica ficam atrás do espelho, pois delas não se têm reflexo. Ora, o demônio abrange não só o ético, mas o estético e o metafísico. Observei, apalpei, inspecionei espelhos os mais variados, porém eles permaneceram mudos. Já desanimado, invoquei a personagem de um dos contos compilados pelos irmãos Grimm, a rainha madrasta de Branca de Neve. “Espelho, espelho meu, existe alguém mais belo do que eu?”

Curioso é como o silêncio manifesta-se de diversas maneiras: por vezes mostra-se como consolo, por vezes como obstáculo, em algumas ocasiões é pura angústia, outras ainda pode trazer respostas. E foi quando vi e ouvi meu reflexo responder: – “A pergunta não tem por objeto a beleza, mas a vaidade. A beleza é apenas um subterfúgio para ocultar a enorme vaidade. A pergunta deveria ser: espelho meu, há alguém mais vaidoso do que eu?” Atônito, não cri que aquilo fosse verdade. Mas o que é a verdade senão uma crença eletiva? Nós escolhemos em que acreditar. Crer ou não crer em determinado evento é crer na própria crença.

Permaneci encarando minha espelhada carranca. Arrisquei com cautela o comentário e a pergunta: – “Dizem-te um demônio; como te chamas?” O refletido – não eu – assumiu um ar professoral para responder: – “Demônio é um termo muito genérico, mas devo ser algo que paira numa espécie de limbo entre o bem e o mal, dependendo, evidentemente, da carga valorativa daquele que me visita”. Fez uma pausa e continuou: “Quanto ao meu nome, – aqui tentou dissimular uma irrisão – pode-se dizer que somos homônimos”. Pus-me a refletir, mas minha imagem retrucou: – “Não, não sou nenhum alter ego, autoconsciência ou coisa assim. Assumo a identidade daqueles que a mim procuram; sou apenas vanglória. Este é o apanágio do demônio que de vós transcende”. Indignei-me com a entidade, e com dedo em riste alteei a voz: – “Mas não tenho vaidade; apenas busco o conhecimento!” Minha imagem sorriu-me largo e com escárnio para declarar: – “A desvairada busca por conhecimento também é vaidade”. Recordei-me do Eclesiastes. “Vaidade de vaidades; tudo é vaidade debaixo do céu”. Ecl. 1:2. O sorriso que adornava a face do demônio refletido desfez-se para rematar: – “Vós, seres humanos reais, fugis para o virtual. Espelhos foram criados por conta do vosso preconceito, muito embora façais da estética refúgio, o que aumenta sobremodo a vaidade. Vós simplesmente não sabeis conviver com as diferenças, com o que foge ao estereótipo ou ao ortodoxo. Todos vós sois edições de Victor Frankenstein, pois que não conseguis conviver com as próprias criações, com as próprias perversões. Os espelhos, assim como minha banal existência, são simples criações de vossa vaidade, o que tem como objetivo precípuo mitigar vossas más consciências”.