Entendo que andar por lugares antigos
desperta-nos para uma consciência histórica, pois que a memória, de certo modo,
vincula-se à história. Os “lugares” da memória são como que estimulados com a
visita e convoca-nos à reflexão. Pondo de lado a faceta melancólica, deparo-me,
então, com um ressurgir de personagens que me povoaram a infância.
E lá estava eu a deleitar-me com o
Largo do Boticário: o casario antiquíssimo, as ruas forradas de pedras, fios de
águas ainda cristalinas, a parte exuberante de uma floresta... O caminhar a que
me obrigara pelo Beco do Boticário, mesmo que lento, após o "desbravar da Rua Cosme Velho, acabara por provocar certo
cansaço. Recordei-me das escadas nas margens da floresta e para lá dirigi-me.
Ao longe, tive a nítida impressão, ou
melhor, a certeza de que outra pessoa já descansava sobre os rústicos degraus.
À medida que me aproximava, percebi tratar-se de elegante e jovem senhora
trajada com roupas antigas, na verdade, algo bem démodé. Sobre os cabelos presos
- o penteado antiquado - um extravagante chapéu. Apoiado à mureta que limita
lateralmente as escadas, um curioso guarda-chuva. Pareceu-me triste... sim, eu
a conhecia; eu a reconheci: Mary Poppins. Não, não me reporto a Julie Andrews,
a intérprete do personagem, mas ao personagem mesmo. Sim era a governanta, a
babá, a nanny se assim preferirdes. Todavia,
eu não estava em Londres, não se tratava de Upper Richmond Road ou do West End,
nem mesmo de um hinterland; estávamos no Brasil, Rio de Janeiro, Cosme Velho...
Aproximei-me. E Mary sorriu-me: um
sorriso cansado, desalentado. Observei-a mais atentamente: os anos não lhe haviam
maltratado, apesar do patente esmorecimento. Pus fim ao silêncio: – “É
surpreendente e bem prazeroso encontrar-te. Trata-se de uma experiência
gratificante. Mas... o que te traz a este lugar?” Lançou-me um olhar mais
intenso para responder: – “As evocações, as expectativas, as aspirações e
vontades de pupilos como tu”. Extasiei-me ao ouvir aquela voz. Acredito que
alguns segundos se interpuseram em nosso diálogo. A personagem pareceu tomar
fôlego e prosseguiu: – “Vossa geração aspira uma melhor educação e orientação
aos filhos. Os rebentos desconhecem limites, vivem a fantasia de um mundo
acabado e criado para os servir; as crianças e jovens carecem de valores, pois
vos mostrastes incapazes de transmiti-los. Esta geração apenas retrata o vosso
fracasso, o vosso descrédito. Crianças e adolescentes prescindem de educadores,
pois mesmo que indiretamente, têm a tutela do Estado”. A famosa babá precisou
tomar algum fôlego para continuar: – “E isso teve origem na vossa incúria. Antes
mesmo de abdicardes de princípios e valores, abristes mão de Deus. Então
quisestes colocar o ser humano para preencher tal lacuna, mas sem Deus
abdicastes também do próprio ser humano; então, experimentastes o vazio. Distantes
de Deus, vós vos lançastes no desespero do individualismo; eis o fruto da vossa
inépcia”. Misto de pasmo e súbita ancilose limitei-me a olhar para a senhorita
Poppins. Ela, então, rematou nosso encontro: – “Nada a fazer”. Um sorriso
lacônico e o pálido “Adeus!” A nanny
ergueu-se, empertigou-se, ajeitou o chapéu na cabeça ornada por antigo penteado,
pegou o guarda-chuva e fez-se ausente dentre a nesga de floresta.
Permiti-me ficar preguiçoso pelos
degraus da escada. Experimentei certo desânimo, muita embora estar tentado a
esboçar em papel Mary Poppins no Largo do Boticário. Ainda investido desta
ideia, ouvi uma voz infantil que instava: – “Desenha-me a criança do mundo
atual”. Surpreso com a voz, voltei-me de súbito para a mata adjacente. E lá
estava ele, exatamente como Saint-Exupéry descrevera: o principezinho. Todavia,
estou certo, naquela mata não havia Baobás. Sim, o Pequeno Príncipe
permitira-se abandonar o asteroide B612. Visitava-me! Em face do meu
aturdimento, o recém chegado personagem insistiu: – “Desenha-me a criança do
mundo atual. Retrate-a; precisas melhor conhecê-la e cativá-la”. Nada pude
fazer e/ou responder; fiz-me mudo, apático. Então, o principezinho continuou: –
“Pelo que pude perceber, às crianças faltam ingenuidade. A infância lhes foi
projetada; a meiguice extraviada. Onde estão o lúdico e o espontâneo? Não há
mais a nobre interação infantil; há apenas a influência de pais assustados, que
para preservarem os rebentos de um mundo rival, priva-lhes do convívio com o
próprio mundo. Vós não conheceis vossos filhos, pois que sequer os cativastes. As
crianças são instaladas em bolhas; tanto os condomínios fechados quanto os
brinquedos eletrônicos as afastam da sadia convivência. As crianças, hoje em
dia, temem não só os tigres e as serpentes, mas também as correntes de ar, a
terra nua sob os pés, os alimentos”. Uma tentativa de sorriso e continuou: – “Os
jovens dificilmente observam estrelas. Jovens jamais se fariam exploradores
porque perderam o interesse na ação que faculta o conhecimento; tudo lhes é
administrado de modo virtual; tudo lhes é introjetado. Até a revolta vivida
pela juventude tornou-se algo protocolar; tudo é tão previsível... Infelizmente,
crianças hodiernas, na verdade adultos esquisitos, não aguam flores nem
revolvem vulcões!”.
Mesmo distante de qualquer serpente, o
menino príncipe permitiu-se desaparecer devagarinho entre as névoas do meu
imaginar, deixando-me entregue à máxima que deve resumir, inclusive, toda
relação pais e filhos: “Tu te tornas eternamente responsável por aquilo que
cativas!”
Nenhum comentário:
Postar um comentário