terça-feira, 25 de junho de 2019

Personagens



Entendo que andar por lugares antigos desperta-nos para uma consciência histórica, pois que a memória, de certo modo, vincula-se à história. Os “lugares” da memória são como que estimulados com a visita e convoca-nos à reflexão. Pondo de lado a faceta melancólica, deparo-me, então, com um ressurgir de personagens que me povoaram a infância.

E lá estava eu a deleitar-me com o Largo do Boticário: o casario antiquíssimo, as ruas forradas de pedras, fios de águas ainda cristalinas, a parte exuberante de uma floresta... O caminhar a que me obrigara pelo Beco do Boticário, mesmo que lento, após o "desbravar da Rua Cosme Velho, acabara por provocar certo cansaço. Recordei-me das escadas nas margens da floresta e para lá dirigi-me.

Ao longe, tive a nítida impressão, ou melhor, a certeza de que outra pessoa já descansava sobre os rústicos degraus. À medida que me aproximava, percebi tratar-se de elegante e jovem senhora trajada com roupas antigas, na verdade, algo bem démodé. Sobre os cabelos presos - o penteado antiquado - um extravagante chapéu. Apoiado à mureta que limita lateralmente as escadas, um curioso guarda-chuva. Pareceu-me triste... sim, eu a conhecia; eu a reconheci: Mary Poppins. Não, não me reporto a Julie Andrews, a intérprete do personagem, mas ao personagem mesmo. Sim era a governanta, a babá, a nanny se assim preferirdes. Todavia, eu não estava em Londres, não se tratava de Upper Richmond Road ou do West End, nem mesmo de um hinterland; estávamos no Brasil, Rio de Janeiro, Cosme Velho...

Aproximei-me. E Mary sorriu-me: um sorriso cansado, desalentado. Observei-a mais atentamente: os anos não lhe haviam maltratado, apesar do patente esmorecimento. Pus fim ao silêncio: – “É surpreendente e bem prazeroso encontrar-te. Trata-se de uma experiência gratificante. Mas... o que te traz a este lugar?” Lançou-me um olhar mais intenso para responder: – “As evocações, as expectativas, as aspirações e vontades de pupilos como tu”. Extasiei-me ao ouvir aquela voz. Acredito que alguns segundos se interpuseram em nosso diálogo. A personagem pareceu tomar fôlego e prosseguiu: – “Vossa geração aspira uma melhor educação e orientação aos filhos. Os rebentos desconhecem limites, vivem a fantasia de um mundo acabado e criado para os servir; as crianças e jovens carecem de valores, pois vos mostrastes incapazes de transmiti-los. Esta geração apenas retrata o vosso fracasso, o vosso descrédito. Crianças e adolescentes prescindem de educadores, pois mesmo que indiretamente, têm a tutela do Estado”. A famosa babá precisou tomar algum fôlego para continuar: – “E isso teve origem na vossa incúria. Antes mesmo de abdicardes de princípios e valores, abristes mão de Deus. Então quisestes colocar o ser humano para preencher tal lacuna, mas sem Deus abdicastes também do próprio ser humano; então, experimentastes o vazio. Distantes de Deus, vós vos lançastes no desespero do individualismo; eis o fruto da vossa inépcia”. Misto de pasmo e súbita ancilose limitei-me a olhar para a senhorita Poppins. Ela, então, rematou nosso encontro: – “Nada a fazer”. Um sorriso lacônico e o pálido “Adeus!” A nanny ergueu-se, empertigou-se, ajeitou o chapéu na cabeça ornada por antigo penteado, pegou o guarda-chuva e fez-se ausente dentre a nesga de floresta.

Permiti-me ficar preguiçoso pelos degraus da escada. Experimentei certo desânimo, muita embora estar tentado a esboçar em papel Mary Poppins no Largo do Boticário. Ainda investido desta ideia, ouvi uma voz infantil que instava: – “Desenha-me a criança do mundo atual”. Surpreso com a voz, voltei-me de súbito para a mata adjacente. E lá estava ele, exatamente como Saint-Exupéry descrevera: o principezinho. Todavia, estou certo, naquela mata não havia Baobás. Sim, o Pequeno Príncipe permitira-se abandonar o asteroide B612. Visitava-me! Em face do meu aturdimento, o recém chegado personagem insistiu: – “Desenha-me a criança do mundo atual. Retrate-a; precisas melhor conhecê-la e cativá-la”. Nada pude fazer e/ou responder; fiz-me mudo, apático. Então, o principezinho continuou: – “Pelo que pude perceber, às crianças faltam ingenuidade. A infância lhes foi projetada; a meiguice extraviada. Onde estão o lúdico e o espontâneo? Não há mais a nobre interação infantil; há apenas a influência de pais assustados, que para preservarem os rebentos de um mundo rival, priva-lhes do convívio com o próprio mundo. Vós não conheceis vossos filhos, pois que sequer os cativastes. As crianças são instaladas em bolhas; tanto os condomínios fechados quanto os brinquedos eletrônicos as afastam da sadia convivência. As crianças, hoje em dia, temem não só os tigres e as serpentes, mas também as correntes de ar, a terra nua sob os pés, os alimentos”. Uma tentativa de sorriso e continuou: – “Os jovens dificilmente observam estrelas. Jovens jamais se fariam exploradores porque perderam o interesse na ação que faculta o conhecimento; tudo lhes é administrado de modo virtual; tudo lhes é introjetado. Até a revolta vivida pela juventude tornou-se algo protocolar; tudo é tão previsível... Infelizmente, crianças hodiernas, na verdade adultos esquisitos, não aguam flores nem revolvem vulcões!”.

Mesmo distante de qualquer serpente, o menino príncipe permitiu-se desaparecer devagarinho entre as névoas do meu imaginar, deixando-me entregue à máxima que deve resumir, inclusive, toda relação pais e filhos: “Tu te tornas eternamente responsável por aquilo que cativas!” 

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