Quando menino, acredito que com nove
ou dez anos de idade, ainda no ensino fundamental, à época designado curso
primário, fora encarregado por Dona Clarice, a professora, de escrever breve redação
com o tema: “o que vejo através de minha janela”. Hoje podeis questionar semelhante título,
alegando tratar-se de crianças intelectualmente imaturas, pois que a temática,
em si, envolveria grande percepção social, bem como uma sólida dimensão
subjetiva. Todavia, permaneçamos no campo do tangível, do ponderável; a
professora visava apenas uma descrição paisagística da realidade material que
cercava cada um de seus alunos.
Passados quase sessenta anos,
proponho-me a reescrever a solicitada redação, mantendo, evidentemente, o mesmo
mote, ou seja: “o que vejo através de minha janela”. Portanto, Allez, ma petite étudiant!
Recordo-me que na ocasião morava com
meus pais e irmão em pequeno apartamento de fundos, num prédio de cor creme,
encardido e localizado no subúrbio, zona norte do Rio do Janeiro. Como o
apartamento era de fundos, quase tudo que eu via através das janelas eram
telhados e alguns poucos quintais. Além disso só uma nesga do céu, ora azul,
ora plúmbeo, ora negro e estrelado. Mas ... acabo de perceber; estou algo surpreso.
Hoje, o que vejo são muros e telhados. Coincidência!? Prefiro acreditar em
propósitos. Trabalhemos, então, com o material que nos é dado. Ora, o muro é o
que cerca, o que protege, mas também limita. Logo, vamos nos ater aos telhados.
Trata-se de imagem sobranceira, de
visão privilegiada. Contudo, esta posição quer fazer de mim alguém orgulhoso,
arrogante. Refuto a distinção. Meu lugar elevado, proeminente, fez-se apenas
por uma imposição sócio geoeconômica. Sim, vós me perguntais: e os telhados? Vamos a eles. O que pode-se perceber no barro que os serve de supedâneo? Sim, eu vejo
formas geométricas traçadas com aquelas peças de barro, as telhas; eu vejo, por
vezes, relações de simetria. Eu vejo gatos, principalmente à noite, que por ali
passeiam, amam e discutem. Além dos telhados temos sempre o céu, o sol que
ilumina os bons e maus, a chuva que favorece a justos e injustos.
Não obstante, pergunto-vos: e aquém
dos telhados? Aqui não mais vejo, mas infiro. E o eu, com sua carga valorativa,
é o ponto de partida para qualquer inferência. Suponho que telhados, além de
nos abrigar das intempéries, dissimule nossa maldade, nossa mesquinhez; acoberte
nossa licenciosidade, mascare nossa verdadeira jaez, oculte nossa dor e
sofrimento. Telhados, antes mesmo das leis, já zelavam por nossa privacidade.
Telhados, enfim, tornam-nos distintos, decentes, invejados.
Bem, acima eu vos havia prometido uma
redação, mas não o fiz. Perdoai-me! Não mais saberia fazê-la. A infância se
foi, o lúdico cedeu espaço ao cáustico, a inocência perdeu-se ou perverteu-se.
Culpar o tempo? Não! Nem a vida nem o tempo podem ser responsabilizados. Apenas
eu. De um modo geral, as pessoas se julgam adultas, maduras, desenvolvidas e
sábias quando sobre tudo pretendem racionalizar. Ledo engano! Por que não nos
permitimos, de quando em quando, agir e pensar como crianças? Mais ridículo que
parecer tolo é julgar-se sábio permanecendo tolo.
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