domingo, 2 de junho de 2019

Espelhos



Acredito que eu seja bastante sensível a comentários, mesmo os mais descabidos ou simplesmente provocativos. Mas o fato é que nada, ou quase nada do que me é dito, quando foge a meu conhecimento, fica sem algum tipo de pesquisa. E a presente demanda a mim se fez, não sei se advinda de comentário insipiente ou por irresponsável jocosidade, mas com efeito se fez.

Alguém, cujo nome prefiro omitir, declarou-me que um demônio habita os espelhos. Recordo-me com alguma dificuldade que, certa feita, quando menino, ao assistir pela TV a uma película grega, qualquer coisa nesse sentido fora dito. Todavia, são imagens furtivas, fugidias; cenas confusas, obscuras; e não por conta do filme, mas por causa do tempo decorrido e da minha capacidade cognitiva de então.

Pois bem, disposto a descobrir a veracidade da incômoda declaração, fiz-me ativo e devotado pesquisador. Uma primeira questão: por onde começar? Uma segunda: como interpretar o espelho...? O demônio – ou seria espírito? – que, assim diziam e dizem, nele habita, a mim fazia-se oculto, ausente. Outra dúvida fez-se presente: a entidade ficaria atrás ou no interior dos espelhos? Pensei em Ludwig Wittgenstein: o espelho reflete o mundo, o palpável, o físico; coisas como ética, estética e metafísica ficam atrás do espelho, pois delas não se têm reflexo. Ora, o demônio abrange não só o ético, mas o estético e o metafísico. Observei, apalpei, inspecionei espelhos os mais variados, porém eles permaneceram mudos. Já desanimado, invoquei a personagem de um dos contos compilados pelos irmãos Grimm, a rainha madrasta de Branca de Neve. “Espelho, espelho meu, existe alguém mais belo do que eu?”

Curioso é como o silêncio manifesta-se de diversas maneiras: por vezes mostra-se como consolo, por vezes como obstáculo, em algumas ocasiões é pura angústia, outras ainda pode trazer respostas. E foi quando vi e ouvi meu reflexo responder: – “A pergunta não tem por objeto a beleza, mas a vaidade. A beleza é apenas um subterfúgio para ocultar a enorme vaidade. A pergunta deveria ser: espelho meu, há alguém mais vaidoso do que eu?” Atônito, não cri que aquilo fosse verdade. Mas o que é a verdade senão uma crença eletiva? Nós escolhemos em que acreditar. Crer ou não crer em determinado evento é crer na própria crença.

Permaneci encarando minha espelhada carranca. Arrisquei com cautela o comentário e a pergunta: – “Dizem-te um demônio; como te chamas?” O refletido – não eu – assumiu um ar professoral para responder: – “Demônio é um termo muito genérico, mas devo ser algo que paira numa espécie de limbo entre o bem e o mal, dependendo, evidentemente, da carga valorativa daquele que me visita”. Fez uma pausa e continuou: “Quanto ao meu nome, – aqui tentou dissimular uma irrisão – pode-se dizer que somos homônimos”. Pus-me a refletir, mas minha imagem retrucou: – “Não, não sou nenhum alter ego, autoconsciência ou coisa assim. Assumo a identidade daqueles que a mim procuram; sou apenas vanglória. Este é o apanágio do demônio que de vós transcende”. Indignei-me com a entidade, e com dedo em riste alteei a voz: – “Mas não tenho vaidade; apenas busco o conhecimento!” Minha imagem sorriu-me largo e com escárnio para declarar: – “A desvairada busca por conhecimento também é vaidade”. Recordei-me do Eclesiastes. “Vaidade de vaidades; tudo é vaidade debaixo do céu”. Ecl. 1:2. O sorriso que adornava a face do demônio refletido desfez-se para rematar: – “Vós, seres humanos reais, fugis para o virtual. Espelhos foram criados por conta do vosso preconceito, muito embora façais da estética refúgio, o que aumenta sobremodo a vaidade. Vós simplesmente não sabeis conviver com as diferenças, com o que foge ao estereótipo ou ao ortodoxo. Todos vós sois edições de Victor Frankenstein, pois que não conseguis conviver com as próprias criações, com as próprias perversões. Os espelhos, assim como minha banal existência, são simples criações de vossa vaidade, o que tem como objetivo precípuo mitigar vossas más consciências”.

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