Acredito que eu seja bastante sensível
a comentários, mesmo os mais descabidos ou simplesmente provocativos. Mas o
fato é que nada, ou quase nada do que me é dito, quando foge a meu conhecimento,
fica sem algum tipo de pesquisa. E a presente demanda a mim se fez, não sei se
advinda de comentário insipiente ou por irresponsável jocosidade, mas com
efeito se fez.
Alguém, cujo nome prefiro omitir,
declarou-me que um demônio habita os espelhos. Recordo-me com alguma
dificuldade que, certa feita, quando menino, ao assistir pela TV a uma película
grega, qualquer coisa nesse sentido fora dito. Todavia, são imagens furtivas,
fugidias; cenas confusas, obscuras; e não por conta do filme, mas por causa do
tempo decorrido e da minha capacidade cognitiva de então.
Pois bem, disposto a descobrir a
veracidade da incômoda declaração, fiz-me ativo e devotado pesquisador. Uma
primeira questão: por onde começar? Uma segunda: como interpretar o espelho...?
O demônio – ou seria espírito? – que, assim diziam e dizem, nele habita, a mim
fazia-se oculto, ausente. Outra dúvida fez-se presente: a entidade ficaria
atrás ou no interior dos espelhos? Pensei em Ludwig Wittgenstein: o espelho
reflete o mundo, o palpável, o físico; coisas como ética, estética e metafísica
ficam atrás do espelho, pois delas não se têm reflexo. Ora, o demônio abrange
não só o ético, mas o estético e o metafísico. Observei, apalpei, inspecionei
espelhos os mais variados, porém eles permaneceram mudos. Já desanimado, invoquei
a personagem de um dos contos compilados pelos irmãos Grimm, a rainha madrasta
de Branca de Neve. “Espelho, espelho meu, existe alguém mais belo do que eu?”
Curioso é como o silêncio manifesta-se
de diversas maneiras: por vezes mostra-se como consolo, por vezes como obstáculo,
em algumas ocasiões é pura angústia, outras ainda pode trazer respostas. E foi
quando vi e ouvi meu reflexo responder: – “A pergunta não tem por objeto a
beleza, mas a vaidade. A beleza é apenas um subterfúgio para ocultar a enorme
vaidade. A pergunta deveria ser: espelho meu, há alguém mais vaidoso do que
eu?” Atônito, não cri que aquilo fosse verdade. Mas o que é a verdade senão uma
crença eletiva? Nós escolhemos em que acreditar. Crer ou não crer em
determinado evento é crer na própria crença.
Permaneci encarando minha espelhada
carranca. Arrisquei com cautela o comentário e a pergunta: – “Dizem-te um
demônio; como te chamas?” O refletido – não eu – assumiu um ar professoral para
responder: – “Demônio é um termo muito genérico, mas devo ser algo que paira
numa espécie de limbo entre o bem e o mal, dependendo, evidentemente, da carga
valorativa daquele que me visita”. Fez uma pausa e continuou: “Quanto ao meu
nome, – aqui tentou dissimular uma irrisão – pode-se dizer que somos
homônimos”. Pus-me a refletir, mas minha imagem retrucou: – “Não, não sou
nenhum alter ego, autoconsciência ou coisa assim. Assumo a identidade daqueles
que a mim procuram; sou apenas vanglória. Este é o apanágio do demônio que de vós
transcende”. Indignei-me com a entidade, e com dedo em riste alteei a voz: –
“Mas não tenho vaidade; apenas busco o conhecimento!” Minha imagem sorriu-me largo
e com escárnio para declarar: – “A desvairada busca por conhecimento também é
vaidade”. Recordei-me do Eclesiastes. “Vaidade de vaidades; tudo é vaidade
debaixo do céu”. Ecl. 1:2. O sorriso que adornava a face do demônio refletido desfez-se
para rematar: – “Vós, seres humanos reais, fugis para o virtual. Espelhos foram
criados por conta do vosso preconceito, muito embora façais da estética
refúgio, o que aumenta sobremodo a vaidade. Vós simplesmente não sabeis
conviver com as diferenças, com o que foge ao estereótipo ou ao ortodoxo. Todos
vós sois edições de Victor Frankenstein, pois que não conseguis conviver com as
próprias criações, com as próprias perversões. Os espelhos, assim como minha
banal existência, são simples criações de vossa vaidade, o que tem como
objetivo precípuo mitigar vossas más consciências”.
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