terça-feira, 4 de junho de 2019

Obituário



Já fazia dois anos ou mais que eu me afastara da vida citadina. O interior, a ruralidade sempre exerceu sobre mim forte atração. No campo, tudo pode resumir-se em simplicidade, tranquilidade e quietude. A família, por sua vez, agora extensa, haja vista os filhos, vivia em grandes centros e ainda alimentava expectativas de um viver saudável. Sendo assim, a relação com meus descendentes, poder-se-ia dizer, fez-se “morna”, pois dava-se de modo raro e esporádico. Passavam-se meses sem nos falarmos. Na maioria das vezes, era eu quem aparecia em suas casas na qualidade de visitante, abraçava os netos e depois de dois dias retornava ao meu eremitério.

Todavia, em meu existir interiorano nem tudo era perfeito; eu sentia alguma falta do teatro, da boa sala de projeção, de edificantes conversas. A solidão proporciona a reflexão e o pensamento quer expandir-se, quer relacionar-se. Na tentativa de suprir tais lacunas, portanto, eu me apegava a leitura de jornais. Minha avidez por notícias era tanta, que eu lia e relia os diários que se me apresentavam, independente da data de publicação ou temática. Eu me informava não só acerca de política e economia, mas também experimentava certo deleite com as fofocas sociais, com a moda, culinária, etc.

Naquela manhã de domingo, após a missa na matriz, eu retornara ao lar a meditar nas palavras de Mateus abordadas na homilia. “Segue-me e deixa aos mortos o sepultar os seus próprios mortos”. Mateus, 8:22. Nietzsche e seu Zaratustra levaram-me a tergiversar. Mais tarde, não mais investido de qualquer resquício religioso e/ou filosófico, permiti-me certo abandono na rede armada no alpendre de meu tugúrio, tendo nas mãos a gazeta impressa e distribuída há mais de quinze dias. Os olhos passeavam de lá pra cá em busca do novo, do inédito, do singular. A atenção redobrada; estava focado. Foi-se a seção dos classificados. Onde o invulgar, o significativo? Sim, o obituário apresentou-se como neófito. A informação era completa: abrangia nomes dos falecidos, lugares, horários e datas de sepultamentos, assim como o percurso do cortejo fúnebre nos quais os féretros poderiam ser acompanhados.

Súbito, algo reclama minha total atenção. Meus olhos fixam-se em determinada parte da página do periódico. Alguns segundos depois o impresso cai-me das mãos. Estava boquiaberto, pasmo, estupefato. Recolho as folhas de papel caídas a minha frente. Busco aquela parte do obituário e a releio com cautela. Enorme angústia se me invade. A notícia, de fato, a princípio causara-me torpor, depois descrença e por fim angústia. Sim, eu estava morto. Era essa a notícia estampada no obituário. Meu nome completo, mesma idade; a foto era também a minha. Como? Eu estava vivo e lia a notícia de minha morte! O sepultamento já acontecera; a campa do cemitério acolhera meu corpo. Acalmei-me e busquei sorrir. Recordei-me de Pirandello; eu seria a reedição, a encarnação, a consubstanciação de Mattia Pascal. Abandonei a rede; precisava voltar à cidade grande e acabar de vez com aquele mal entendido. Afinal, eu vivia a não-existência; tudo naquele momento era póstumo. Reuni documentos, juntei algumas peças de roupa e tranquei a casa.

A viagem mostrou-se mais demorada, o percurso mais longínquo do que de costume. Ao desembarcar na Estação Rodoviária, busquei o auxílio de um taxi, pois experimentava grande curiosidade em relação a minha tumba. Apesar do trânsito e tráfico intenso, a chegada ao cemitério não se fez tarde. Como gostaria de poder registrar esse momento: eu parado diante de meu sepulcro! Era simples, erguido sem nenhuma pompa, e ainda revelando os vestígios da tinta recém usada; literalmente “um sepulcro caiado”. A estatueta de um anjo protegia o habitante daquela sepultura: eu, esse que vos escreve. O humilde mausoléu exibia uma foto; minha foto. Sim recordo-me da ocasião: fora na casa de um dos filhos. Pude ler o epitáfio, algo bem clichê: “Descanse em paz”. Mas eu não estava ali sepultado. Quem teria sido o infeliz? Ou a infelicidade seria minha? Ora, eu continuava a viver a desditosa vida, embora exibindo o status de defunto.

Outro cortejo avizinhava-se de minha campa. Aproximei-me de um dos coveiros. Ele tratou-me com distinção. Busquei saber a história daquele que ali estava sepultado. Ele olhou-me com atenção e voltou-se para a fotografia presa à campa. Eu sorri e disse-me parente do morto, mas que só recentemente soube de sua passagem. Superando o espanto, fez o sinal da cruz e disse-me em poucas palavras que o meu “parente” fora encontrado na Estação Rodoviária, sem quaisquer documentos, desmemoriado e já em processo comatoso. Internado em hospital público, a imprensa encarregou-se de divulgar uma foto, o que facilitou a identificação por parte dos familiares. Dias depois eu viria à óbito. Não, não eu, mas aquele que diziam ser eu. Sim, eu fora reconhecido e identificado pela família. E agora?

Conseguis perceber a comicidade ou o ridículo da situação? Eu, o de cujus, buscando detalhes acerca da própria morte. E como contestar? Há uma premissa lógico-filosófica que estabelece: a negação de uma negação é uma afirmação. Ora, eu deveria negar o que me foi negado: a existência! Mas como? Meus documentos não mais tinham validade. Tornara-me fake, uma farsa, um embuste. Por outro lado, negar a existência de algo é afirmá-lo, pois como falar em algo sem pressupor sua existência? Todavia, seria possível minha existência real sem o aval da formalidade documental? Ah, como eu gostaria, então, de tornar-me um Elias; poderia simplesmente ser arrebatado aos céus. Mas minha faceta profética é manca; minha religiosidade é herética.

Bem, enganosamente fora dado por morto: eis minha primeira morte. Uma segunda, estou certo, não me proporcionará chances para qualquer comentário. Nada obstante, já me chega algum alento. Sim, muito embora as dificuldades que desse tipo de morte - ou não-morte - podem advir, uma certeza fez-se instalar em minha consciência: eu não tenho mais qualquer responsabilidade com a vida. Já percebeis que o simples fato de estarmos reconhecidamente vivos e termos ciência disso obriga-nos a desempenhar papeis os mais adversos e/ou desfavoráveis? Fora da vida, posso desobrigar-me das posturas hipócritas, dos desmedidos escrúpulos, da fingida sociabilidade, dos padrões estereotipados pelo vulgo insociável. E o mais gratificante em tudo isso é que só depois desta atípica morte pude sentir-me, de fato, de bem com a vida! 

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