sexta-feira, 4 de janeiro de 2019

Moral da história



Prezados, descobri, e de modo casual, a origem de grande parte de nossa desdita social. Tal descoberta originou-se de uma singular lembrança. Eu, desde tenra idade, sempre tive grande admiração pela arte, independentemente de sua expressão. Como a educação de então primava também por estimular os discentes no cultivo às artes, minha professora, Dona Filhinha (naquela época ninguém ousava chamar professora de “tia”) nos levava a contemplar algumas de suas reproduções artísticas. Pois bem, contava eu com uns doze ou treze anos - este detalhe não é relevante - quando, certa vez, atrasei-me para o almoço em casa com minha mãe, irmãos e irmãs - papai estava sempre ausente, pois necessitava muito trabalhar para sustentar toda aquela gente.

Em meio à tarde sonolenta retornei ao lar revelando ainda certa condição de êxtase. Sim, meus gestos eram largos, amplos; meu sorriso algo encantador; minha disposição era a melhor; meu olhar cintilava febricitante. Foi nesse estado que mamãe me arguiu: – “Onde estavas?” Creio que meu sorriso ampliou-se para responder: – “Na casa de Dona Filhinha”. E a próxima pergunta sugeriu-me certa desconfiança: – “A fazer o quê?” Meu olhar deve ter-se revelado mais brilhante. Respondi, ainda enlevado: – “Estava a conhecer a pinacoteca da professora”.

O grito de minha mãe arrancou-me do encantamento; fora o grito de uma fera acuada e ferida, algo inumano, assustador, caótico, inexplicável. Fiquei atoleimado, atônito. Ao estrídulo grito seguiu-se o convulsivo choro mesclado a palavras pronunciadas de modo grotesco. Pouco pude perceber do que era dito, mas ocorreu-me interrogação, afirmação e negação expressas de modo conjunto. E tudo terminava com: “Pinacoteca”. Agarrou-me pelos ombros, sacudiu-me e gritou: – “Como podes deixar-te seduzir por essa Messalina? Tu não tens idade para desfrutar de pinacotecas!” O choro calou-lhe a voz por instantes. Eu mantinha-me aparvalhado, afinal, conhecer e desfrutar da pinacoteca de Dona Filhinha só me trouxera prazer. Sim, e os alunos que também o fizeram sentiram-se igualmente realizados. Eu não conseguia entender o que se passava. Mamãe, olhos vermelhos, semblante contraído, expressão transtornada, decretou: – “Seu pai vai saber disso e eu vou exigir que ele tome providências”.

Mamãe deixou-me só e entregue a um sem número de dúvidas. Eu me perguntava o que havia de errado em se admirar obras de arte. Eram apenas reproduções de Monet, Degas, Vermeer, Rembrandt, Van Gogh, Manet, Rafael, Cézanne, Toulouse-Lautrec, Gauguin... Será que o problema estaria na “Origem do Mundo” de Gustave Courbet? No “Pensador” de Rodin?  Na “Psiqué reanimada pelo beijo de amor” de Canova ou no nu do “Escravo” de Michelangelo? E imerso em dúvidas fui chamado a presença de meu pai, que depois de ouvir a versão de mamãe, submeteu-me a novo interrogatório. Sua primeira pergunta: – “Foi teu primeiro contato com a pinacoteca da professora?” Sim, eu respondi. A segunda pergunta pareceu-me impregnada mais de curiosidade do que de preocupação ou especulação: – “Gostaste da experiência?” Desta feita permiti-me alongar um pouco a resposta: – “Sim, adorei. A pinacoteca proporcionou-me um grande prazer; algo até então desconhecido. Todos os meus colegas também adoraram a experiência”. Papai tentou dissimular um sorriso e mandou-me sair.

Eu pensei que o mal entendido estava superado, mas me enganara. Mamãe e outras mães se uniram e exigiram que os pais denunciassem a professora. Dona Filhinha teve mandado de prisão preventiva expedido pela autoridade competente. Em sua casa foi realizada busca e apreensão, muito embora os agentes não soubessem o que apreender. Os jornais desancaram a pobre docente, humilharam-na e a cumularam de adjetivos. Seu pedido de habeas corpus foi negado; mantiveram-na presa como uma delinquente qualquer. As mães em uníssono acusavam-na de perversão. Os filhos, por sua vez, nada entendiam e acabavam por repetir o que lhes era imposto pelos pais. Dona Filhinha foi condenada, e mesmo sem trânsito em julgado começou a cumprir pena. A docente apoiadora da arte experimentou o escárnio e o desprezo da sociedade. Nos dias de hoje dir-se-ia estar no mesmo nível de um João de Deus.

Quando um advogado bem intencionado e isento de pré-juízos - coisa rara no mundo jurídico - assumiu o caso da professorinha, propondo-se inclusive a trabalhar pro bono, questionou a materialidade das provas e insistiu para que as crianças fossem ouvidas. Então ruíram todos os argumentos acusatórios e as “evidências” ditas circunstanciais. Dona Filhinha foi posta em liberdade, mas resolveu abdicar da docência. Internou-se na humilde casinha em companhia somente de suas reproduções artísticas, que não mais seriam partilhadas por qualquer público. A imprensa jamais assumiu seus erros, desculpou-se pelos excessos e ou tentou redimir-se das injúrias.

Moral da história: a ignorância não só é responsável pela banalização do conhecimento, mas pelas agressões, violências, injustiças e humilhações infligidas aos cidadão zelosos.

3 comentários:

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  2. https://www.google.com/url?sa=t&source=web&rct=j&url=https://www.pragmatismopolitico.com.br/2012/12/caso-escola-base-rede-globo-e-condenada-pagar-r-135-milhao.html/amp&ved=2ahUKEwjSnLaJj97fAhUFEpAKHZONDHQQFjABegQIBBAB&usg=AOvVaw0JvsZiQiHbY_MPgYq9rbER&ampcf=1

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  3. Sensacional. Lembrou-me o episódio da escola base em SP. Onde donos de uma creche foram condenados pela mídia sem qualquer prova de pedofilia.

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