Prezados,
descobri, e de modo casual, a origem de grande parte de nossa desdita social.
Tal descoberta originou-se de uma singular lembrança. Eu, desde tenra idade, sempre
tive grande admiração pela arte, independentemente de sua expressão. Como a
educação de então primava também por estimular os discentes no cultivo às
artes, minha professora, Dona Filhinha (naquela época ninguém ousava chamar
professora de “tia”) nos levava a contemplar algumas de suas reproduções
artísticas. Pois bem, contava eu com uns doze ou treze anos - este detalhe não
é relevante - quando, certa vez, atrasei-me para o almoço em casa com minha
mãe, irmãos e irmãs - papai estava sempre ausente, pois necessitava muito
trabalhar para sustentar toda aquela gente.
Em
meio à tarde sonolenta retornei ao lar revelando ainda certa condição de
êxtase. Sim, meus gestos eram largos, amplos; meu sorriso algo encantador;
minha disposição era a melhor; meu olhar cintilava febricitante. Foi nesse
estado que mamãe me arguiu: – “Onde estavas?” Creio que meu sorriso ampliou-se
para responder: – “Na casa de Dona Filhinha”. E a próxima pergunta sugeriu-me
certa desconfiança: – “A fazer o quê?” Meu olhar deve ter-se revelado mais
brilhante. Respondi, ainda enlevado: – “Estava a conhecer a pinacoteca da
professora”.
O
grito de minha mãe arrancou-me do encantamento; fora o grito de uma fera acuada
e ferida, algo inumano, assustador, caótico, inexplicável. Fiquei atoleimado, atônito.
Ao estrídulo grito seguiu-se o convulsivo choro mesclado a palavras
pronunciadas de modo grotesco. Pouco pude perceber do que era dito, mas
ocorreu-me interrogação, afirmação e negação expressas de modo conjunto. E tudo
terminava com: “Pinacoteca”. Agarrou-me pelos ombros, sacudiu-me e gritou: – “Como
podes deixar-te seduzir por essa Messalina? Tu não tens idade para desfrutar de
pinacotecas!” O choro calou-lhe a voz por instantes. Eu mantinha-me
aparvalhado, afinal, conhecer e desfrutar da pinacoteca de Dona Filhinha só me
trouxera prazer. Sim, e os alunos que também o fizeram sentiram-se igualmente
realizados. Eu não conseguia entender o que se passava. Mamãe, olhos vermelhos,
semblante contraído, expressão transtornada, decretou: – “Seu pai vai saber
disso e eu vou exigir que ele tome providências”.
Mamãe
deixou-me só e entregue a um sem número de dúvidas. Eu me perguntava o que
havia de errado em se admirar obras de arte. Eram apenas reproduções de Monet, Degas,
Vermeer, Rembrandt, Van Gogh, Manet, Rafael, Cézanne, Toulouse-Lautrec,
Gauguin... Será que o problema estaria na “Origem do Mundo” de Gustave Courbet?
No “Pensador” de Rodin? Na “Psiqué
reanimada pelo beijo de amor” de Canova ou no nu do “Escravo” de Michelangelo?
E imerso em dúvidas fui chamado a presença de meu pai, que depois de ouvir a
versão de mamãe, submeteu-me a novo interrogatório. Sua primeira pergunta: – “Foi
teu primeiro contato com a pinacoteca da professora?” Sim, eu respondi. A
segunda pergunta pareceu-me impregnada mais de curiosidade do que de
preocupação ou especulação: – “Gostaste da experiência?” Desta feita permiti-me
alongar um pouco a resposta: – “Sim, adorei. A pinacoteca proporcionou-me um
grande prazer; algo até então desconhecido. Todos os meus colegas também
adoraram a experiência”. Papai tentou dissimular um sorriso e mandou-me sair.
Eu
pensei que o mal entendido estava superado, mas me enganara. Mamãe e outras
mães se uniram e exigiram que os pais denunciassem a professora. Dona Filhinha
teve mandado de prisão preventiva expedido pela autoridade competente. Em sua
casa foi realizada busca e apreensão, muito embora os agentes não soubessem o
que apreender. Os jornais desancaram a pobre docente, humilharam-na e a
cumularam de adjetivos. Seu pedido de habeas corpus foi negado; mantiveram-na
presa como uma delinquente qualquer. As mães em uníssono acusavam-na de
perversão. Os filhos, por sua vez, nada entendiam e acabavam por repetir o que
lhes era imposto pelos pais. Dona Filhinha foi condenada, e mesmo sem trânsito
em julgado começou a cumprir pena. A docente apoiadora da arte experimentou o
escárnio e o desprezo da sociedade. Nos dias de hoje dir-se-ia estar no mesmo
nível de um João de Deus.
Quando
um advogado bem intencionado e isento de pré-juízos - coisa rara no mundo
jurídico - assumiu o caso da professorinha, propondo-se inclusive a trabalhar
pro bono, questionou a materialidade das provas e insistiu para que as crianças
fossem ouvidas. Então ruíram todos os argumentos acusatórios e as “evidências”
ditas circunstanciais. Dona Filhinha foi posta em liberdade, mas resolveu
abdicar da docência. Internou-se na humilde casinha em companhia somente de suas
reproduções artísticas, que não mais seriam partilhadas por qualquer público. A
imprensa jamais assumiu seus erros, desculpou-se pelos excessos e ou tentou
redimir-se das injúrias.
Moral
da história: a ignorância não só é responsável pela banalização do
conhecimento, mas pelas agressões, violências, injustiças e humilhações
infligidas aos cidadão zelosos.
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ResponderExcluirSensacional. Lembrou-me o episódio da escola base em SP. Onde donos de uma creche foram condenados pela mídia sem qualquer prova de pedofilia.
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