domingo, 15 de dezembro de 2013

E o sertão vai virar mar...


Quando pensava ter presenciado o limiar do populismo, deparo-me, e de modo inesperado, com mais uma das aleivosias escabrosas que soem ser apanágio da politicagem cínica, pois as palavras do pregador Jesuíno - “o sertão vai virar mar” - parecem tomar um novo fôlego diante da anencefálica decisão do Prefeito de João Pessoa. E vós, meus possíveis e incautos leitores, deveis desistir de ler Euclides da Cunha.

Bem, mas não vou me alongar neste introito, criando assim um clima de expectativa, pois a notícia em si já é suficiente para proporcionar não só tensão, mas desgosto e revolta. Pasmem: o nosso prefeito fará cair sobre João Pessoa algumas centenas de quilos de neve artificial, transportadas por helicópteros. Certamente, pensa ele, em sua menoridade administrativa, estar proporcionando ao nordestino - mais especificamente ao pessoense - um natal europeu ou estadunidense. Certamente o povo, e sempre o povo, manipulado, maltratado, vilipendiado - e dentre estes não distingo seus bajuladores e/ou séquito de prepostos igualmente manipulados - irão delirar com os flocos de gelo sobre suas cabeças ocas.

Quem sabe João Pessoa doravante não passará a constar dos guias turísticos do nordeste, ostentando o novo slogan de “única cidade nordestina a ter neve”? De certo que os turistas hão de vir (Que novidade não atrai turistas?), mas encontrarão uma cidade mal conservada, insegura, despreparada e ignorante. Talvez a neve sirva para além de atrair turistas, que daqui se evadirão com os sorrisos plenos de escárnios dado ao ridículo da empreitada, justificar igualmente a inépcia de seus secretários - além do de Turismo, é claro - que assumem cargos, não por terem qualificação para sê-los, mas pelo apadrinhamento contumaz que vagueia pelas vacâncias da polis.

Então, pautado nas predições dos incorrigíveis otimistas, posto que disseminam a premissa de que em toda desgraça deve-se vislumbrar o lado positivo, convido-vos a uma breve análise: O absurdo da nevasca em pleno verão nordestino, por certo, culminará num incontornável suicídio político. O que é muito bem vindo, afinal, seria um a menos para conspurcar a boa fé pública. E a vós, que se solidarizais com os expedientes espúrios dos que se empenham em atender plenamente ao estereótipo do cinismo político, os meus votos de um Bom Natal, repleto de neve e descaramento. E tudo isso proporcionado por um outro Noel: Noel Cartaxo.

domingo, 13 de outubro de 2013

Há algo de errado com o normal


O que é o normal? Diz-se do que é usual, regular, exemplar, conforme uma norma. Mas de onde se infere algo que é assimilado por uma maioria, revelando-se paradigmático? A normalidade, em parte, é regida por valores, e, por outra, advém de certa experiência empírica, ou seja, a normalidade tem uma dupla raiz: não pode prescindir de valores ordenadores; não pode se afastar da experiência cotidiana, isto é, do consuetudinário. Por não se afastar da cotidianidade e dos valores que a orientam, é considerado normal aquilo que em geral se costuma fazer. Estes condicionantes da cotidianidade, formados por valores e costumes, ambos de caráter transitório, não só constroem o que chamamos de normalidade, mas igualmente a torna válida. Mas os condicionantes, já que advindo de valores e dos costumes, não são perenes; modificam-se, transformam-se, evoluem, involuem, são superados, desaparecem. Logo, variam no espaço e no tempo, dependendo de circunstâncias. Portanto, como primeira característica da normalidade, percebe-se a efemeridade.

Vimos que a normalidade é algo assimilado por uma maioria. Todavia, esse assimilar sugere uma imposição, e isso se justifica por se tratar da aceitação de uma maioria e não de aceitação universal. Uma questão se nos incomoda: por que uma maioria? Que circunstâncias seriam essas que conseguem pré-determinar atitudes aceitas tacitamente? Parece-me que tais circunstâncias encontram respaldo justamente naqueles que da normalidade se fazem reféns. As circunstâncias, na verdade, nada mais fazem do que alicerçar expectativas e ao mesmo tempo servir de refúgio aos ditos “normais”. Expectativas que diferem das circunstâncias são consideradas indevidas, anormais. Portanto, àqueles que distam da normalidade atribui-se o predicado de patológico. Os normais, então, já que albergados pela esfera da normalidade, a impõe aos demais, olvidando, entretanto, que a imposição da normalidade é sintoma óbvio do patológico.

Mas a patologia da normalidade se expressa não só por sua imposição. A título de melhor apreensão do problema, tentemos hipoteticamente, e sem muito esforço, destacar uma fração da “normalidade”, congelando-a para melhor análise. Fixemo-nos na fatia da normalidade hodierna, através da qual travamos íntimo conhecimento. Observemos os “normais” que nos cercam. Percebei que eles externam quase sempre os mesmos pensamentos, os mesmos argumentos, as mesmas ponderações e justificativas; é algo previsível, enfadonho, banal. Não obstante, comparai seus pensamentos com suas ações e observai se há alguma coerência. Amiúde, suas ações desautorizam, desconstroem, mutilam aquilo que por eles foi pensado ou divulgado, ou seja, o normal. Nesse caso, a normalidade se mostra como patológica.   

Conheço, e vós também deveis conhecer, muitos que palram infindavelmente encomiando acerca do outro, do respeito ao próximo e defendendo posições humanistas; os que militam por direitos humanos e porfiam em defesa do politicamente correto. Eis a normalidade formal, teórica. Contudo, os agentes normais agem como se vivessem isolados e insulados em sua inatingível individualidade, como se só existissem eles mesmos e/ou seu grupo seleto mais próximo, revelando a dimensão patológica de uma pretensa normalidade, isto é uma normalidade informal, prática. Por outro lado, também conhecemos os ateus confessos - outra modalidade de normalidade - que execram Deus ou qualquer entidade abstrata por entenderem-nas incapazes de explicar e/ou modificar a natureza humana. Dito isso, se arvoram em paladinos, encarnando a personalidade da entidade abstrata por eles mesmos abominada, criando teorias mirabolantes, confusas e estapafúrdias no sentido de corrigir os atalhos da humanidade, travestidos de um novo messias. Eis a normalidade transfigurada pelo seu próprio pathos.


Evidentemente há algo errado com a normalidade. A explicação que no momento me ocorre é que conceitos como o de normalidade, forjados a partir de experiências cotidianas e seus respectivos valores ordenadores, enfim, de seus condicionantes, são meras hipostasiações da expectativa humana vinculadas tão somente à extrema vaidade, egoísmo, egoicidade e cinismo. A normalidade é bem recepcionada porque, além de emprestar status, serve de fundamentação à hipocrisia do discurso, permitindo ao orador que a ostente um estereótipo fajuto e tendencioso. 

sábado, 14 de setembro de 2013

Agatha Christie e o problema da Síria

A coisa parece romance policial.

Economia - Os Estados Unidos querem invadir a Síria com o pretexto de que o povo daquele país está sendo dizimado por um governo ditatorial, sangrento e irracional. Mas desde quando o Tio Sam se incomoda com isso? Até quando vamos acreditar que os norte-americanos representam o bem e seus desafetos o mal? Petróleo? Por enquanto, pois nossos amigos da América do Norte dentre em pouco anunciarão sua autossuficiência em combustíveis. E não por conta do petróleo, mas porque já desenvolveram uma tecnologia eficiente para extrair o xisto de poços petrolíferos já explorados e dados como exauridos.

Política - A Líbia foi liberta pelo nosso paladino norte-americano; o Egito também se viu livre de seu ditador; o Iraque já não mais se recorda de Saddam Hussein. Bem, estes países, agora livres de seus déspotas, estão sendo custodiados pelo fundamentalismo islâmico. Todavia o fundamentalismo também tem suas divisões: xiitas e sunitas. De todas as nações árabes, somente o Irã é comandado pelos xiitas. O Irã, por conta de sua ideologia religiosa, tem interesse na queda do ditador sírio. O Qatar, rico, também tem o governo sunita. A Arábia Saudita, dentre os islâmicos, é o único aliado dos Estados Unidos, e por isso considerado um traidor do Islã. A Síria tem como Chefe de Estado um déspota sunita, mas a maioria da população é desvinculada do islamismo e do fundamentalismo religioso. A Síria seria uma nação que, quando tivesse seu governo deposto, afastar-se-ia dos rigores do Corão. Isso explica porque, apesar de ser um ditador sunita, Bashar Al-Assad recebe o apoio de seus rivais xiitas.

Religião - No mundo árabe há a expectativa de se criar um tipo de Vaticano do islamismo. E não faltam candidatos para sediar tal pretensão: o Qatar, vitimado por uma crise de ostentação; o Egito, por conta da Universidade do Cairo, referência no estudo e tradições do mundo árabe; o Irã, que pretende invadir a Arábia Saudita, transformando Meca na capital sagrada do islamismo. Mas não nos esqueçamos da Turquia, que apesar de não ter um governo fundamentalista, é um país eminentemente muçulmano. 

Bem, agora posso me fantasiar de inspetor Poirot e desvendar a trama. Se as nações muçulmanas se unirem através de governos fundamentalistas, Israel estará em perigo. Ora, nosso Tio Sam não permitiria isso, até porque Israel é a porta de entrada norte-americana no oriente médio. Por outro lado, a Arábia Saudita também seria invadida, o que seria uma lástima para a economia norte-americana, enquanto a exploração do xisto não faz dos Estados Unidos uma nação autossuficiente em combustível. Este é o único interesse e preocupação dos Estados Unidos com o mundo árabe: tirar proveito de um aliado produtor de petróleo.


No mais, os Estados Unidos continuarão a espionar o Brasil e a Dilma Rousseff, mas nunca por causa de petróleo ou do pré-sal; a exploração do xisto é muito mais viável economicamente. O Brasil está sendo espionado por norte-americanos, russos, chineses, franceses etc. E quem, depois da internet, redes sociais, Google e todo recurso tecnológico, não espiona nos dias de hoje?

segunda-feira, 9 de setembro de 2013

Chapeuzinho Vermelho


Convido-vos à reflexão.  Como é difícil escrever contos infantis nos dias de hoje! Como dar azo à imaginação criadora com tantas medidas, leis, regras, regulamentos, normas etc.? Não estaria a criatividade sendo bloqueada justamente por conta de um sem número de exigências cabulosas e desprovidas de bom senso? Lancemos, portanto, nossa atenção para o mais famoso texto entre a petizada.

Pergunto: Como escrever algo similar ao Chapeuzinho Vermelho com todos os obstáculos que nos são interpostos? Consideremos: em primeiro lugar, como conceber pais que permitam uma menina adentrar sozinha a floresta com a ameaça, não do lobo ou de qualquer perigo, mas do Conselho Tutelar? E desde quando é possível uma velhinha habitar isolada numa floresta erma? E o Estatuto do Idoso? No mínimo, os parentes da velhinha seriam processados com a acusação de abandono, maus tratos e, quiçá, cárcere privado. E desde quando o IBAMA permitiria a caça e a presença invasiva em florestas? E o lobo, coitado, protegido para que não seja extinto. Eis a risibilidade das leis: característica assimilada pela Ciência Jurídica, que quando infectada pelo messianismo, inclina-se a disciplinar fenômenos de ordem socioeducativas.

Mas ainda não paramos por aí. Por que Chapeuzinho irrompe a floresta levando doces para a vovozinha?  Como ficariam os cuidados enfocados e/ou impostos pelos cultores da longevidade e pela irreverência dos imperativos estéticos? Estaria Chapeuzinho pretendendo deixar a vovó diabética? Por que não frutas frescas tais como maçãs, - desde que não seja envenenada como a da uma bruxa que vitima Branca de Neve - uvas, peras, pêssegos, carambolas, açaís, goiabas etc.?

Neste passo, acredito estar justificado o expediente hodierno das releituras de textos, filmes e romances clássicos. Com algum esforço, então, procurarei esboçar breve sinopse de uma releitura do conto em pauta. Vejamos: Chapeuzinho, na verdade, seria uma adolescente tão complicada quanto antenada. Ela e seu namoradinho encontrar-se-iam furtivamente na floresta para queimar um baseado. Neste caso, deve-se trocar o nome de Chapeuzinho Vermelho por Olhinho Vermelho. Visitar a vovó não passaria de desculpas, porque no sítio da velhinha eles teriam oportunidade de dar uns “amassos” e apertarem um bagulho.

Vovó, na verdade, seria uma viúva fogosa e pervertida; Lobo o nome do traficante que iria ao sítio cobrar a conta. Mas lá chegando - o Lobo - cairia vítima da sedução da vovó assanhada. É claro, eles "ficariam"! De fato, seria a vovó a comer o lobo, e não ao contrário como no conto clássico. O caçador em questão seria tão somente um investigador disfarçado, que há muito seguia os passos do traficante. E as tais perguntas totalmente sem noção, deveriam ser assim colocadas. Vovó: - “Pra que estes olhos tão grandes e vermelhos?” E o Lobo: - “É conjuntivite! Desencana!” Vovó: - “Pra que estes dentes tão grandes?” E o Lobo: - “Já marquei consulta com o ortodontista; vou usar aparelho”. E a vovó: - “Pra que estas unhas tão grandes?” O Lobo: - “Minha manicure foi presa traficando”. E a vovó: - “Pra que este nariz tão grande?” E o Lobo: - Porra, tu já está me enchendo o saco. Quer ver uma coisa grande?”


Nesta altura chega o investigador e dá voz de prisão ao traficante. Ele reage e é abatido. A vovó, mala, põe-se a gritar e a se fazer de vítima, alegando ter sido comida pelo lobo. Ainda bem que morreu, senão o pobre do Lobo seria acusado também de estupro de vulnerável. Mas minha historinha tem final feliz. Vovó se torna amante do investigador, e, com isso, Olhinho Vermelho pode dar seus "amassos" com o namoradinho e apertar fumo à vontade. E o mais importante: não precisa mais pagar a dívida ao traficante.

quinta-feira, 5 de setembro de 2013

Da ignorância


A sabedoria árabe afirma:
- “Quem não sabe e não sabe que não sabe, é um imbecil: deve ser internado.
- Quem não sabe e sabe que não sabe, é um ignorante: deve ser instruído.
- Quem sabe e não sabe que sabe, é um sonhador: deve ser acordado.
- Quem sabe e sabe que sabe, é um sábio: deve ser imitado”.

Em se aplicando a máxima à educação voltamo-nos irremediavelmente para a ignorância - para aquele que não sabe e sabe que não sabe - pois que esta, além de estar afeita à função educacional, se revela sobremodo incômoda à relação ensino-aprendizagem. A ignorância não só é atrevida, mas vaidosa. O ignorante, ciente de sua própria incapacidade de assimilar ou apreender qualquer conteúdo que não seja o medíocre, o rasteiro, o vulgar, tenta ocultar-se. E para mascarar sua inépcia, lança mão de recursos espúrios e igualmente deletérios: a banalização, a piada, a chacota. Então, os seus iguais, também ignorantes, divertem-se com sua recursal e estroina jocosidade. A ignorância daí em diante vê-se como irreverência, como excentricidade. E arrebata prosélitos, posto que a pretensa extravagância tem o poder de se tornar arrebatadora dentre a caterva auto fracassada. A ignorância em si nada seria, mas sua contaminabilidade é preocupante.

Seria bastante pertinente a pergunta: e como combater semelhante mal? Posso lhes afiançar, e pautado em experimentos empíricos, que a ignorância, depois de experimentar o glamour da irreverência, submete-se à fama que dela se originou, transformando-se assim, numa espécie de doença auto-imune.  

Acredito poder terminar nossa leitura com outro provérbio também bastante popular: “Uma laranja estragada pode contaminar todo o cesto”.

quarta-feira, 4 de setembro de 2013

Democracia: uma retórica nada democrática


Fala-se em regime político caracterizado pela soberania popular e de distribuição equitativa do poder. Mas isso pode levar a uma interpretação errônea do conceito, pois não poucos a entendem como uma proposta imoderada de liberdade. O próprio Montesquieu, preocupado com o desdobramento da dita interpretação, disse-nos, através do seu Espírito das Leis que, “A democracia e a aristocracia não são estados livres por natureza”. Nem mesmo governos moderados permitem a liberdade política, quando detecta abusos de poder. Aqui se torna necessária, portanto, a tripartição dos poderes.

Parece-me que, na verdade, a democracia, e isso remonta à própria origem do conceito, não passa de um grande engodo. Soberania popular, em si, é um conceito vazio, pois o povo nunca foi soberano. Famílias tradicionais sempre, e através do poder econômico, dividiram e partilharam o poder, evidentemente trazendo em seus discursos a retórica da soberania popular. Ainda na ágora grega, haja vista a condenação de Sócrates, pode-se perceber que o poder não se solidariza com a emulação. Nem mesmo a triste experiência do comunismo soviético conseguiu demonstrar a factibilidade desta forma de governo, isto é, a soberania popular.

O que a democracia faz, e muito bem, é criar a ilusão de uma liberdade e de uma participação no poder. Vejamos: o povo - a multiplicidade - é um universo difuso, díspar, divergente. Ora, a difusão leva à confusão, ao conflito de interesses. Qualquer governo que se pretende independente, soberano ou hegemônico deve manter-se coeso, resoluto, decidido, determinado. “Razões de Estado”, diria o cardeal de Richelieu. Portanto, o lema retórico disseminado pela democracia “O poder emana do povo, para o povo e pelo povo”, exaure-se por sua própria inaplicabilidade. Os sistemas de governo, seja lá qual for o grau utilizado de separação dos poderes, não conseguem tornar factível a proposta democrática. Estados unitários ou federativos também se mostram incapazes de tal realização.

Mas poderíamos de bom grado falar em outros regimes de governo. Tanto o autoritarismo, o despotismo, a ditadura, as oligarquias, as plutocracias, as teocracias, as tiranias e os totalitarismos manipulam os povos, só que, diferentemente da democracia, os faz acreditar que a força, a exceção, o arbítrio e a própria fé são os únicos modos de proporcionar a felicidade humana. Se nos voltarmos às ideologias políticas, seja o comunismo ou socialismo, até por uma experiência histórica, veremos que foram baldas as tentativas de fazer do ensejo, das expectativas do povo uma voz ativa e altissonante. E por favor, não recorram ao argumento sub-reptício do consenso. O consenso é outro conceito vazio. Em decisão eletiva, a maioria numérica vence; em decisão arbitrária, quase todos perdem. 

Se nos voltarmos à forma de governo tida como a menos imperfeita, a república, normalmente confundida com a democracia, até porque seus pressupostos se assemelham, poderemos observar que o povo como autoridade também está descartado. Como apanágio do republicanismo destacamos o sufrágio livre e secreto. Todavia, a república, a res publica, a coisa pública, na verdade a administração pública, já era contemplada no Império Romano e em alguns reinados europeus. Maquiavel utilizava a palavra res publica para reportar-se tanto a democracias quanto a aristocracias. Etimologicamente a palavra tem o significado de bem comum, e, atualmente, diz-se de um sistema de governo que emana do povo. Isto não só a aproxima da democracia, e todas as suas perversões acima descritas, bem como, quando no predomínio econômico ou político do capital, de um liberalismo, que em nada proporciona a igualdade e ou a fraternidade difundida pelo Iluminismo.

Democracia, em termos práticos, seria uma proposta eminentemente e unicamente utópica. A liberdade, retoricamente defendida por governantes, fica refém da liberdade política, pois atenderia somente aos interesses da classe que se propõe a governar. Na verdade, podemos entendê-la, fazendo uso das palavras de Aristóteles, como uma forma impura, isto é, uma demagogia, onde o governo exercido pela maioria - entenda-se uma maioria qualitativa e não quantitativa - para oprimir uma minoria, também qualitativa e nunca quantitativa. E se buscarem saber o que significa, neste caso, o qualitativo, pensem no poder, na riqueza, no tráfico de influência etc.

Então meus atentos leitores perguntar-se-iam: será que o autor defende um regime anárquico? Evidente que não. O que seria a anarquia dentro da própria anarquia? A negação de uma negação é tão somente uma afirmação. Mas ainda uma questão poderia pairar na reflexão do leitor: e qual seria a forma pura? E eu diria: Não há!  O que há são pessoas, seres humanos, e nada mais. O que me soa nefasto são os mecanismos retóricos utilizados para se hipostasiar, ou seja, conferir substância a algo, no caso a um estereótipo fajuto. E quando falo em estereótipo fajuto me refiro ao fato de se ter atribuído predicados como racionalidade e/ou socius aos seres humanos. São esses paradigmas infamantes, - na verdade difamantes - sociabilidade e racionalidade, que teimam em retirar os humanoides de seu perpétuo estado de natureza. Percebam! Os sistemas, as formas de governo e de estado, na tentativa de justificar a racionalidade e a sociabilidade impostas aos humanos, nada mais fazem do que reiterar o estado de natureza de que vos falo, - e em que estão imersos - onde os mais fortes e os mais hábeis oprimem, vilipendiam e exploram os fracos, os incapazes e obtusos, muitas das vezes vítimas de uma potencialização da pusilanimidade, da inaptidão, da estupidez.

Nada a fazer!

domingo, 1 de setembro de 2013

O diplomata que virou babalorixá


Meus leitores podem achar estranha a narrativa, pois que o exercício da diplomacia rescende refinamento, elegância, airosidade. Envolve igualmente o domínio de várias línguas, bem como conhecimentos de ciência política, de relações internacionais, economia, história universal, geografia, direito, artes etc. Mas não seria isso já um sintoma de preconceito? Afinal, vivemos em plenitude o respeito às diferenças. E não é o primeiro caso - pelo menos no Brasil - em que um diplomata abandona a diplomacia e volta-se a outro afazer, estreitando sua relação com a cultura afro-brasileira, a exemplo de Vinícius de Moraes.
Mutatis mutandis, meu amigo sempre se mostrou determinado em exercer a diplomacia. E conseguiu. Mas a diplomacia, por sua natureza intrínseca, pauta-se numa espécie de seleção aristocrática, pois que os representantes de qualquer nação devem fazê-lo com desembaraço, extremo zelo, conhecimento e desenvoltura. E creio que, ainda por uma exigência calcada em costumes, tradições e donaires, a diplomacia leva muito em conta a estirpe familiar.
Meu amigo, um lutador, advindo de uma classe médio média, ousou. E de tanto ousar, realizou seu intento, mas nunca fora enviado em longas missões por países classificados como primeiro mundo. Teve apenas uma rápida passagem pela Europa e nada mais. Da vez primeira lá estava o amigo no Marrocos. Ao ler suas missivas deparava-me com o harmônico Salaam Aleikum; na despedida, digitava um garboso Inshalá. Mas as culturas apenas desempenham seu papel: insinuam-se, disseminam-se e instalam-se. De outra feita, lá estava o diplomata na Mauritânia, depois Senegal, depois Nigéria... E teve início um peregrinar pelos países sul-africanos; dir-se-ia que o amigo tornara-se um especialista nas questões daquele continente.
Todavia, dependendo da receptividade, a cultura pode mostrar-se invasiva. Com os anos, comecei a estranhar os e-mails, porque além de se tornarem sintéticos e raros, vinham repletos de palavras em Yorubá. Os textos começavam, em geral por um Karò, o! Deixei de ser amigo e passei a ser Yekan. Do Brasil, da família, dos amigos, já não sentia mais saudades, e sim Inuyiyó. Sua senhora mãe tornou-se Yiá. Já não nos desejava felicidades, apenas Alafiá. Quando irritado, já a ninguém chamava de idiota e sim Akurete. O adeus limitava-se a um impessoal Ó dabò. Em verdade, o amigo africanizara, e sua assimilada africanidade era pura, espontânea, leal. Contudo, eu sentia falta do bom papo, das tergiversações, das gargalhadas, das fofocas e intrigas internacionais.
Algum tempo depois, recebi a notícia de que meu Yekan - amigo - abandonara a diplomacia e estava de volta ao Brasil; fixara residência em Salvador. Lá, com os recursos amealhados durante anos como diplomata, tentou fundar um terreiro de candomblé, mas a coisa não deu muito certo por conta da concorrência. Fazer o quê? Regras de mercado! Carecendo da verve para a poesia e/ou composição, mas detentor do conhecimento diplomático, preenchera proposta de adesão ao grupo Filhos de Gandhy. Bem, enquanto aguardava a resposta de sua solicitação, vendia acarajé no Rio Vermelho e jogava búzios na Baixa do Sapateiro. Apesar da Inuyiyó, ou melhor, saudade do nosso bom papo, eu lhe desejo muita Alafiá, isto é: Felicidades!


A vida ainda me surpreende! 

quinta-feira, 29 de agosto de 2013

Da revolta contra a autoridade e o faz de conta educacional


De início, parece que tudo é fruto - consciente ou inconsciente - de uma confusão conceitual, pois que expressivo número de pessoas confunde autoridade com poder. A autoridade tem como fonte o valor pessoal, a importância, e por isso mesmo, desperta a atenção, a admiração, o respeito; a autoridade impõe-se sem constranger, sem coagir, sem obrigar. Já o poder é coator, vincula-se à posse, ao domínio, à força, ao vigor. Daqui pode-se inferir que as pessoas se colocam contra a autoridade por entenderem-na sinônima do poder.

Mas por que tal confusão? O poder é entidade abstrata, oriunda de um mandato, de uma função específica, característica de um império ou de uma soberania, mas seu exercício precisa ser delegado. O poder sempre é delegado. No entanto, aquele que detém o poder nem sempre consegue manifestar autoridade. E ciente de sua não autoridade, simplesmente exerce o poder impondo sua vontade, dizendo-se autoridade, e demonstrando, acima de tudo, uma grande dose de arbitrariedade. Eis a origem da perturbação. As pessoas ao se colocarem contra a autoridade, na verdade, estão se pondo contra o poder.

Autoridade é conquista. No entanto, no mundo atual, a autoridade vê-se achincalhada, desrespeitada, execrada. E por quê? Despreparados para o exercício do poder, carentes de autoridade, os poderosos se permitem cair no ridículo, seja no ridículo das ações ou dos pensamentos, pensando assim atender às exigências caricatas do populismo.  Aliado a isso, percebe-se algo como um esconso propósito, um protocolo dissimulado que vem sendo cumprido fielmente, disposto a alienar a civilização, transformando o mundo numa barbárie, onde a insensatez deverá criar uma elite de oligofrênicos.

A autoridade, seja do síndico, do pai, do papa, do presidente, do professor, do chefe etc., caiu em desgraça. Todavia, tudo começa em casa, a partir da autoridade paternal. Mas esta há muito foi solapada. O pai já não pode, mesmo que o queira, exercer sua autoridade, autoridade esta que pressupõe orientação, educação, introdução de valores. Não, autoridade do pai foi suprimida por um psicologismo social estrambólico, senão ridículo. Seu lema: “a autoridade do pai, ao impor valores e castigar os filhos causam traumas irreparáveis”. Esquecem os psicologistas, no entanto, que os traumas de uma não educação são muito mais nocivos, não só aos deseducados, como também à família e à sociedade. Os psicologistas, coitados, ainda vivem sob a égide do “é proibido proibir”; ainda se submetem ao guante do laissez faire.

Depois disso veio o recurso infamante, espúrio e covarde de um expediente jurídico: o conselho tutelar! E o pano de fundo para semelhante recurso é outra doença: direitos humanos das crianças e adolescentes. Se o objetivo de tais recursos é obstar a ação dos pais que se mostram violentos, pois que eles mesmos confundem autoridade e poder, então que sejam punidos. Hoje não mais se educa filhos; eles ficam à mercê da televisão, da orientação dos colegas e das prerrogativas de uma sociedade que se diz “bem antenada”.

Bem, e essa nova geração sem limites adentrou os muros das escolas. Ainda aí o psicologismo deixou sua marca, disseminando o discurso de um enganoso construtivismo, que nada tem a ver com Piaget, ensejando igualmente depreciar o poder, confundindo-o com a autoridade intrinsecamente vinculada à função professoral. E como desdobramento, valendo-se deste “benefício”, os deseducados se desinteressaram por assimilar quaisquer conhecimentos; querem apenas todas as facilidades. Os conselhos de classe, por sua vez, alinhados a um sociologismo barato, algo próximo de um messianismo, aprovam os incapazes porque entendem que os mesmos passam por situações difíceis no lar e outras bobagens. Enfim, o mérito foi banido do léxico.

No curso superior não é diferente; mal sabem formar uma simples frase. Contudo, são aprovados em “mágicos” vestibulares, pois o governo permite a criação de IES em toda e qualquer esquina ociosa. Ora, a educação tornou-se presa fácil de empresários que visam unicamente o lucro, apesar das frases de efeito divulgarem missões, visões e lemas em seus murais e folders. O MEC, sequaz da postura do politicamente correto, do hipossuficiente etc., consubstanciou de maneira inescrupulosa um modo dos alunos avaliarem seus professores. Pasmem: o professor é avaliado pela espontânea e estimulada incultura, que vê nessa ocasião oportunidade para ridicularizar a autoridade.

Sem exercer autoridade, a relação professor/aluno - uma relação também de poder - se extingue. O que pode fazer o professor para não cair em desgraça com a coordenação pedagógica? Ou ele se torna refém deste esquema aviltador ou fica desempregado. A escolha é lógica e evidente. A manipulação leva o professor a aprovar todos os seus discentes, olvidando quaisquer critérios para fazê-lo. Os alunos, satisfeitos, avaliam positivamente os docentes. A instituição agradece o fortalecimento de seu caixa, a coordenação pedagógica fica feliz e os professores mantêm seus empregos. Em suma: professores fingem ensinar; alunos fingem aprender; o mercado finge contratar; os salários pagos aos recém-formados fingem retribuir.


Monteiro Lobato foi o homem que melhor caracterizou este país: o Sítio do Pica-Pau Amarelo. É isso: vivemos um eterno faz de conta!

domingo, 25 de agosto de 2013

A coruja e o camaleão


Houve uma época - até a morte de Hegel, em 1831 - que a filosofia sistematizava os problemas. De lá para cá, a filosofia optou por problematizar os sistemas. Ora, nunca foi escopo da filosofia responder e/ou resolver problemas, até porque isso é do orbe das ciências. A filosofia apenas observava o problema e criava hipóteses a serem trabalhadas tão somente pela razão, nunca com a preocupação de testá-las empiricamente.

Então o pensamento de Descartes, o Pai da Modernidade, com seu “Discurso do Método”, acredito que originado a partir do ressentimento com a idade média, experimenta o apogeu. Tal método propagou-se ubiquamente e inspirou o cientificismo. Doravante, com Condorcet e Saint Simon, tudo precisou ser testado, ponderado, medido, mensurado. E as ciências despontam como panaceia para resolver todos os problemas humanos. Pergunto: resolveu? Não, mas criou a expectativa de fazê-lo. A história submeteu-se ao método científico; os primeiros escritos de economia também se inclinaram ao método; a ciência política, através de Gaetano Mosca e Vilfredo Pareto também se volta ao estudo empírico; a antropologia também se verga às exigências científicas através de Taylor, Boaz, Malinowsky e Lévi-Strauss.

A exacerbação do cientificismo deságua na corrente filosófica do positivismo fundado por Auguste Comte. E neste surto positivista sucumbem a psicologia, a pedagogia, o direito, etc. A psicologia positiva, rebatizada de psicologia social, passa a conduzir o pendão do compromisso em tornar possível - e por que não obrigatória - a felicidade humana; a pedagogia positiva, aliada à psicologia positiva, vem enaltecer o valor utilitário da educação; o direito positivo, por sua vez, busca explicar o fenômeno jurídico através das normas impostas por uma autoridade soberana, olvidando o Espírito das Leis e desterrando a sábia e sensata equidade.

E a filosofia? Bem a filosofia sofre uma forte pressão da nova ciência que dela se originou: a sociologia, que se justifica pelas graves modificações sociais advindas das Revoluções Industrial e Francesa, bem como do iluminismo. Em verdade, a sociologia é nada mais do que o emprego do método científico na filosofia política. Todavia, a sociologia tenta superar a filosofia, calá-la. Poder-se-ia, fazendo uso da analogia, falar em uma espécie de parricídio, isto é, o rebento que tenta não só superar, mas descaracterizar, desautorizar e desmoralizar o próprio pai. A sociologia envaidecida torna-se jactanciosa e obriga-se em encampar todas as humanidades.

Para fugir da crise que se instaurara a partir de sua própria criação, - o rebento que tem por nome sociologia - a filosofia diligencia-se e arrisca uma auto superação. A filosofia diz-se, então, analítica, algo pautado no empirismo e busca analisar e descrever os conceitos filosóficos. Daí surge ramificações: O Círculo de Viena bane a metafísica com o positivismo lógico; a Escola de Frankfurt, também neopositivista, reveste-se do idealismo marxista e igualmente humanista. Do materialismo dialético de Marx emerge uma Filosofia da Práxis que contempla o agir individual e social. Mas ainda podemos citar algo pós-moderno: a Filosofia da Libertação, também conhecida como filosofia sul-americana, um amálgama messiânico que aquiesce a Teologia da Libertação. E para cumular - acreditem - alguém propôs uma Filosofia Clínica.

O que se pode perceber é que a filosofia mesma perdeu seu foco. Na tentativa de se fazer ciência, adentrou por caminhos mais obscuros do que quando simplesmente pensava e repensava os fenômenos a ela submetidos. Muito embora a pretensão do status de ciência, a filosofia ainda não responde ou resolve problema algum, não porque seja seu intento preservar o vetusto questionar, mas simplesmente porque não sabe o que responder. A filosofia parece ter firmado um determinado pacto com Proteu, a figura mitológica que tinha por característica mudar de face para não se envolver com qualquer questão. A filosofia moderna e contemporânea criou clichês para se furtar a qualquer exposição, e com isso programou sua própria banalização.

Meus possíveis e atentos leitores poderiam se perguntar: “Afinal, qual a finalidade deste sermão enciclopédico?” E eu lhes responderia de pronto: o propósito deste breve texto é propor a modificação do ícone filosófico. Esqueçamos, portanto, a coruja, ave de hábitos noturnos, solitária, que na mitologia grega significa a reflexão, o conhecimento racional e intuitivo, e elejamos o camaleão, animal que se move lentamente, usa a língua - esta célere - para apanhar sua presa, e com o recurso da camuflagem, furta-se a qualquer presença que lhe seja estranha. Eis a filosofia pós-moderna e sua respectiva imagem: lenta, viscosa, dissimulada e que usa somente a língua - retoricamente forjada - para esquivar-se de seus oponentes. Pobre filosofia! 

quinta-feira, 22 de agosto de 2013

Da expectativa


Os viveres caninos e humanos têm em comum a expectativa. O cão vive a expectativa do reencontro com aquele que elegeu como dono; o homem vive a expectativa de desfrutar da convivência daqueles que elegeu como referência, ou como condição ideal, seja o próximo (mulher, amigo, parentes, vizinhos, amante etc., nada mais do que fetiches) ou Deus (uma entidade abstrata).

Pelo menos o cão não se vale de fetiches nem de entidades abstratas.

A vida é isso: expectativa. Criamos expectativas quanto ao futuro, quanto à posse de objetos, quanto à convivência, quanto à preferência, quanto às realizações destas expectativas, quanto à própria viva, seja em função da longevidade, da saúde e da não morte. Ao criar expectativas acerca da vida, que em si é um emoldurar de expectativas, criamos expectativas de expectativas.

E por que não escarnecer da expectativa? Teria o ser humano tal habilidade, tal destreza? O cínico é aquele que, muito embora criar expectativas, zomba não só das suas, mas também da expectativa alheia. Enfim, zomba do próprio viver. Filosofar é preciso; viver não é preciso, a não ser que seja uma vida canina. Um voto de aplauso aos cínicos!

quarta-feira, 21 de agosto de 2013

Disputatio entre ministros


As frequentes controvérsias jurídicas que envolvem os ministros Joaquim Barbosa e Ricardo Lewandowski vêm chamando a atenção do público que, com base antijurídica, postula as mais diversas e equivocadas opiniões. Todavia, a constância dos eventos também reclama o zelo de alguns operadores do direito. A meu ver, um olhar atento mas nada pretensioso,  percebo tão somente questões que envolvem o embate de valores.

Os valores, queiramos ou não, gostemos ou não, governam nossas ações. E é em decorrência deles - os valores - que presenciamos tais polêmicas. De um lado temos o defensor que prima pelo valor Justiça, alguém extremamente dedicado em extirpar o estigma nacional de “país da impunidade”; do outro aquele que prima pelo positivismo jurídico - teoria que nega a relação necessária entre direito e Justiça - e igualmente refém do processualismo.

Mas ainda lidamos com o fato - entenda-se fato jurídico, o que dá origem à relação jurídica. O fato que, na verdade, não é fato, mas uma interpretação do fato. Aqui posso me valer de Nietzsche que afirmara: “Não existem fatos, mas interpretações do mesmo”. Para Piaget, o fato puro não existe; o fato puro é inefável, pois, no momento de narrá-lo, nele acondicionamos nossa visão particular, isto é, nossos valores. Poincaré ainda teria dito: “Todo fato é solidário a qualquer interpretação”.

Ora, com base no exposto, podemos inferir as dificuldades de ambos os ministros: Além da não percepção direta dos fatos, pois que estes seriam apenas fenômenos e não númenos, soma-se a questão valorativa. Posso lhes garantir que a questão do valor não implica qualquer artifício evasivo e/ou subterfúgio. O que presenciamos é a questão jurídica levada a sério por seus representantes máximos.


Quanto às declarações um tanto acaloradas do Ministro Joaquim Barbosa podemos entendê-las como um temperamento sanguíneo - coisa tipicamente humana, se bem que esperamos de um ministro atitudes um pouco mais ponderadas; quanto à postura do Ministro Ricardo Lewandowski podemos sugerir, com base em Paulo, na sua epístola aos Coríntios a seguinte leitura: “A letra mata, mas o espírito vivifica”. Não obstante, há um brocardo latino do eminente Cícero: summum jus, summa injuria.

segunda-feira, 19 de agosto de 2013

A procissão


E lá vem a procissão: fogos de artifícios, carros de som ao estilo Dodô e Osmar, gente pulando e mãos para o alto, acompanhando o compasso neurótico de uma música que há muito deixou de representar o sagrado. Mais uma queima de fogos e a voz do Arcebispo que, de pé sobre o teto do trio elétrico, abençoa a multidão desvairada e inicia uma Ave Maria. A oração logo se transforma em cântico; o cântico logo acelera os compassos, modula, e eis uma Ave Maria pós-moderna, evocada, gritada, rebolada por apóstatas maquiados de fiéis. Não percebi o lento caminhar que em sentido teológico significa missão; o abandonar suas casas e anunciar o Evangelho; seguir os passos de Jesus.

Em termos de agir humano o evento não me surpreende, mas sim o fato de se conglomerarem em torno da religião, que - pasmem! - com sua aquiescência, subvertem a própria dogmática. Ora, a procissão implica cortejo religioso, um préstito, uma marcha solene. Mas o solene, por sua vez, implica aparato, pompa, o majestoso que infunde respeito. A procissão, em seu fundamento, envolve a processão, isto é, um modo especial da união do Espírito Santo com o Padre e o Filho. Pergunto-vos: onde o descrito evento contempla o solene, o majestoso que infunde respeito?

“Nem todo aquele que me diz Senhor, Senhor, entrará no Reino dos Céus”. Mateus 7:21. Todavia, quero crer que os fiéis dançarinos pretendam, de fato, adentrar a morada dos eleitos, e para isso devem ter se valido de outra exegese para o versículo acima. Talvez a procissão por mim narrada seja de caráter pagão. Neste caso a procissão precedia os jogos em Roma, era conduzida por magistrados - hoje Arcebispo - e se dirigiam ao circo. Os filhos de cidadãos romanos escolhidos seguiam em seus cavalos - agora no conforto do trio elétrico. Logo em seguida vinham os dançarinos que representavam sátiros, cada qual satirizando a dança dos demais. Neste caso não percebo, sequer, um culto de idolatria, mas sim a exteriorização da hipocrisia, da banalização, de uma devoção fingida.


Sim, a partir do acima exposto, devo-lhes solicitar um favor, ou um rogo, se assim quiserem: não pretendais questionar a minha fé ou a minha não fé! 

sábado, 17 de agosto de 2013

Teoria do TEMEM ou o nada quântico e a "creatio ex nihilo".

O nada quântico

De acordo com algumas teorias modernas acerca da origem, a matéria se dissolve em energia, e esta em algo desconhecido. Bem, quando os objetos materiais se dissolvem, isto é, deixam de ter existência, resta-nos o espaço; nada mais que espaço. Ora, a não existência ou a condição de perda da existência de um objeto - epistemologicamente falando - implica em nada. O espaço, portanto, traduz-se em nada. O nada seria um último estágio de degradação da matéria. O que é, afinal, a irradiação atômica? A perda constante de elétrons, ou seja, a matéria em desagregação. Elementos como o urânio - último da tabela periódica - perdem constantemente seus elétrons; são eletronicamente instáveis e carregados positivamente. Uma bomba atômica nada mais faz do que acelerar o processo de transformação - matéria em energia.

Mas este “nada” espaço, em verdade, é um “nada aparente”. Vejamos: se a matéria se dissolve em energia, podemos indutivamente imaginar o processo inverso. A matéria tem origem no espaço; o espaço seria o repositório de tudo quanto existe, pois ele guarda em latência todos os elementos primordiais, bem como a possibilidade da afinidade entre os mesmos. A matéria seria então uma condensação do espaço. O espaço, portanto, tem massa.

Bem, e como surge a matéria? O espaço se deforma quando em estado de tensão. O estado de tensão provoca uma deformação. De acordo com o grau de deformação, o espaço libera uma força respectiva, dando origem a um estado dinâmico. O dinamismo, a potência, o trabalho realizado pelo espaço nada mais é do que uma consequência desta “força” ou “energia”. O aumento desta força ou energia aumentará o “estado dinâmico”, que por sua vez provocará uma condensação natural do espaço através de vórtices. Movimentos intensos em pequenos vórtices provocarão o adensamento de massa do espaço. Este espaço adensado e reduzido de tamanho dará origem a mais simples e estável manifestação da matéria. Vale reclamar a atenção para o fato: de um vórtice infinitamente pequeno resulta certo valor conhecido como fóton gama. Pode-se dizer que um fóton é possuidor de massa quântica, pois sua massa é infinitamente pequena. O fóton é um concentrado de energia.

Quando este concentrado de energia tange o núcleo atômico de um metal pesado qualquer imerso no espaço - esta grande sopa cósmica - converte-se em um elétron e um pósitron (elétron de carga positiva). Elétron e pósitron destroem-se ao se chocarem e convertem-se em raios gama da alta intensidade de energia. Manuel Dopacio nos diz que estas partículas infinitesimais projetadas no espaço à velocidade da luz traçam trajetória vetorial, e ao tocarem o núcleo de um metal pesado - engolfado na sopa cósmica - têm seus movimentos interrompidos, passando a girar sobre si mesmas e adquirir massa. Nascem os átomos. O primeiro elemento, o hidrogênio, apresenta apenas um elétron em sua órbita. Eis a matéria. Matéria é movimento.

Daqui podemos inferir: a) que energia é um estágio intermediário entre espaço e matéria; b) tudo, enquanto matéria - nós mesmos - é, em essência, espaço e movimento. Espaço é onde vivemos, é o que respiramos, ele nos rodeia, interpenetra nosso ser. As três dimensões de que dispomos são espaciais. Somos manifestações espaciais; somos uma última consequência do espaço. Enfim, somos espaço tornado fenômeno. O espaço em si é númeno; c) o espaço no estado de tensão, quando no início da transformação, faz-se afeito ao tempo.


Creatio ex nihilo.

Apesar de todo empenho em demonstrar a origem da matéria através da teoria quântica, uma pergunta ficou sem resposta: o que provoca a tensão necessária no espaço, para que do mesmo surja a matéria, ratificando uma criação do nada - ex nihilo? De início poderíamos entender Deus como pura energia, mas pudemos ver que energia é só um medium na criação, a condição intermédia entre espaço e matéria. Seria Deus o próprio espaço; onde tudo está latente, imerso, ínsito? O espaço em si é um “nada aparente”, um nada quântico, um nada capaz de tudo produzir, um nada prenhe de tudo. Não obstante, o espaço, quando no momento da tensão, transformação, dinamismo, movimento, fica submetido ao tempo. Eis nosso Deus. Deus é tempo! O pensamento criador de Deus é tempo. Somos criaturas oriundas da combinação de elementos, que por sua vez são frutos da combinação de outros elementos primordiais. E nós nos manifestamos como ajustes de fenômenos, através de um espaço submetido ao tempo. O tempo é a ideia divina em si.


Teoria do TEMEM – O Tempo atua no Espaço pleno de Massa, facultando Energia (movimento) que dá origem à Matéria.

quinta-feira, 15 de agosto de 2013

S ou C: uma questão de escolha


Certa vez, e a meu ver de maneira infeliz, Caetano Veloso declarou que “só é possível filosofar em alemão”. O que percebo, e não casualmente, é que nossa língua não é bem explorada. O povo desacostumou-se de usar o dicionário, talvez porque seja mais elegante - fashion - usar um termo estrangeiro. Todavia, o uso de tais termos se volta mais a uma subserviente preocupação estética, à esnobe e pseudo elegância das expressões. E como tudo que carece de suposta elegância sai de moda, alguns verbetes, locuções e sinônimos de nossa linguagem foram taxados de arcaicos, e, portanto, evitados.

Ao contrário do que o leitor possa pensar, nada tenho contra tal recurso, desde que nosso léxico careça de termo preciso para manifestar o pensamento. Chico Buarque, em outra infeliz declaração, proferiu: “Nossa língua é periférica”. Enfim, nossa língua é tida por marginal, secundária? Ora Chico, seus poemas contrariam sua declaração. E qual ou quais seriam as línguas principais? Isso me parece ser mais uma questão cultural; uma cultura que se vê como periférica; cultural porque ainda não se conseguiu um meio eficaz para que a nação se desvencilhe do estigma de colônia. Nossa língua, repito, é extremamente rica; falta somente ser mais bem estudada.

Pode-se especular também que o problema reside na alcunha - também um estigma - que envolve o uso do dicionário. “Pai dos burros”, diria a falsa intelectualidade. E as pessoas resistem em apelar para os vocábulos disponíveis em sua própria língua. Contudo, a leitura, o estudo descompromissado do dicionário me tem sido de valor inestimável. Não podeis imaginar a quantidade de palavras que, apesar de soarem estranhas, empoeiradas, podem vir a preencher uma suposta carência, e, por isso mesmo, infamar o uso do termo estrangeiro. E foi exatamente no dicionário que encontrei inspiração para escrever essa pequena crônica ortográfica.

Em uma de minhas pesquisas voltei-me à homofonia. Coser e cozer são ótimos exemplos, mas ainda podemos falar em senso e censo, conserto e concerto, paço e passo, assento e acento, cem e sem etc. Não obstante, percebi que a homofonia dá-se mais amiúde quando na utilização do S e C. Então, recôndita, oculta (e por que não ignorada?) descortino certa homofonia entre os termos incipiente e insipiente. Ora, a incipiência (com C) aplica-se ao principiante, ao inexperiente; já a insipiência (com S) volta-se ao ignorante, ao néscio.

Bem, por uma questão unicamente didática, proponho-me, então, a exemplificar empiricamente tais vocábulos. Ora, a homofonia em questão é aplicada a seres humanos. Mas a que tipo de seres humanos? Sem muita demora me surge a imagem do político. Sim, lidamos com políticos, que tanto podem ser investidos de uma insipiência quanto de uma incipiência, isto é, ou ignorantes ou inexperientes (ingênuos). Aqui se pode falar em escolha. Contudo, insipiências ou incipiências, que deveriam nortear nossas escolhas, são mascaradas pela propaganda política regida por marqueteiros. O insipiente se mostra um sábio; o incipiente mascara sua inexperiência.

Excitado com minha descoberta, permiti-me provocar comoções na ortografia - talvez a pretensão de neologismos. Que tal, em se tratando de nossa “casta” política, cunharmos os termos inscipiente - o S antes do C - e incsipiente - o C antes do S? Isso teria a finalidade de condensar num mesmo vocábulo a inexperiência e a ignorância, No entanto, levando em conta a colocação das consoantes, teríamos, por exemplo, o inscipiente, ou seja, aquele que antes de ser inexperiente já reflete ignorância. Se se tratasse de um incsipiente, estaríamos às voltas com alguém em que a inexperiência (ingenuidade) precederia a ignorância.

Por certo, algum meu desafeto diria, “Os termos são quase correlativos e quase redundantes, pois que a inexperiência traduz-se na ignorância, e a ignorância, por sua vez, tem por fundamento a inexperiência”. Eu diria perfeita tal admoestação, no entanto, devo reclamar a atenção do possível êmulo, que, em se tratando de políticos, e levando-se em conta os antônimos dos vocábulos envolvidos na homofonia teríamos: a experiência em contato com a ignorância potencializa esta última. Já a não ignorância aplicada à inexperiência manifesta-se como nefasta liderança.


Quando falo em uma questão de escolha, não me reporto à escolha de políticos, mas sim ao tipo de políticos, indiferentemente se grafados com C, com S, com SC ou se com CS. E o que fazer? Não há alternativas disponíveis. A única sugestão pertinente seria um debruçar-se com afinco sobre o dicionário em busca de terminologias apropriadas que possam exprimir nossa revolta.

segunda-feira, 12 de agosto de 2013

A Filosofia Underground


Recordo-me, e sem muita dificuldade, de um tempo passado. Foi tempo único, singular, onde as relações se mesclavam entre mudanças, revoltas, superações. Na verdade, “tudo ido, lido e vindo do vivido da minha adolescidade”. Com o próprio tempo tínhamos uma relação de companheirismo, um partilhar fraterno. Mas as mudanças chegaram súbitas e exigiram de nós, os paladinos da nova geração, uma rápida readaptação. Ora, toda mudança é difícil; o obsoleto não nos conquista, o desconhecido nos apavora. Então saímos em busca de recursos que viabilizassem as irrevogáveis mudanças. Fugas, portanto, são toleráveis.

E fugimos de casa, dos velhos hábitos, para a vida alternativa, para as drogas. Mas a relação com as drogas tinha outra tônica; o uso de drogas revelava-se como um libelo, algo como um postar-se contra novos ditames de um contexto social que se nos revelava nefasto, mas nunca como um fazer reacionário. Em suma, instávamos pela não mudança e igualmente por não manter o mesmo status quo. E vivemos o movimento Beatnik, Woodstock, Beatles, Jimmy Hendrix, The Who, Rolling Stones etc. Vivenciamos também os cabelos longos, os Hippies, as loucuras de uma juventude sempre escandalosa e ardente, o sexo grupal, os acampamentos, as caronas sem destino e a maconha para 100 anos.

“Bem que eu me lembro, a gente sentava ali, a beira do aterro sob o Sol, observando hipócritas, espalhados andando ao redor”. Mas os hipócritas estão em todo o lugar; são ubíquos; superam o espaço-tempo. Não me recordo se foi exatamente ali; pode ter sido em outro lugar, quando travei, pela vez primeira, meu contato com a Filosofia Primeira. Em torno de uma “fogueirinha de papel”, o grupo buscava explicações para o Ser. Mas não o Ser do Ente e igualmente doentio heideggeriano. Não! Buscávamos unicamente a simplicidade do Ser; um Dasein ausente e presente ao mesmo tempo, no mesmo lugar; o Ser aí podia, inclusive, não estar mais aí, e sim lá ou em lugar nenhum. “Here, there in everywhere”. As drogas nos tornavam ausentes de nossa própria presença.

O primeiro pensador se manifesta acerca da temática. “Nossa essência é essa: não saber o que somos. Se soubermos o que somos, agente perde o contato com agente mesmo”. Alguém aquiesceu: “Falou!”. Um replicante interviu. “Mas se não soubermos o que somos, continuamos não sendo nada”. O mesmo alguém concorda: “Beleza!”. Um terceiro interrompe. “Cara, a essência agente tem buscar para saber qual é”. O eco responde: “Falou, vou apertar mais um pra gente resolver essa parada”. E um silêncio nos envolveu enquanto o cara pilava o fumo. Um mais destemido arriscou: “Existe uma essência em nós e uma fora de nós. Se buscarmos uma essência fora de nós que não se dê bem com a essência dentro de nós vai dar o maior Xabu”. O que pilava o fumo cortou: “Ih, o cara aí, vem com esse papo estranho querendo bagunçar com a nossa filosofia”. O baseado fica pronto e tem início a partilha. Silêncio; um silêncio sacro, profundo, pensado. O que retomou a conversa propõe. “Eis a nossa essência! Buscada fora de nós que está sempre de acordo com o que está dentro de nós”. Um sino-descendente replica: “Prefiro a essência de um chá; é muito legal”. O mais ousado arremata: “Aí, minha essência eu cheiro ou injeto.”

Mas a polícia - os hipócritas que andavam ao redor - chegou e levou-nos todos para a DP. “Que coisa deselegante, agente no meio de um congresso, de um encontro, de um colóquio manero, sei lá, uma onde dessa aí. E vem os cara pra nos fazer calar. Pô aí, onde é que tá a liberdade de expressão? Agente envolvido num lance legal, à procura de nossa essência. Depois falam que os jovens não servem pra nada; os cara não deixam nem agente pensar”.


Então percebi que a seriedade da filosofia não se resume a quem filosofa ou sobre o que se filosofa, mas sim no envolvimento e na determinação daquele que o faz, independente se drogado, careta, chapado ou em crise de abstinência.  

sábado, 10 de agosto de 2013

Cortejos


Certa feita, lá pelos idos dos anos 80, estando eu em New Orleans, dispus-me acompanhar um funeral. A tradicional New Orleans Jazz Funeral dava a tônica do evento. Evidentemente que este tipo de cortejo vincula-se ao cultural e revela-se sobremaneira de interesse dos amantes do jazz. Nesta oportunidade, pude perceber que o caixão era como que embalado ao compasso da música, oferecendo ao recém-defunto uma última dança. Talvez, nesta oportunidade (quem o sabe?) o clima do festivo Mardi Gras mescle-se aos lamentosos acordes do jazz ou blues, proporcionando ao féretro um entusiástico adeus.

E cá estou, outra vez, como intrépido sequaz de outro cortejo funéreo, mas desta feita submetido à outra cultura, e, ipso facto, a outros valores. Não me perguntem pelo nome do defunto, profissão, família, posição social, porque tais detalhes me soam inúteis. Como também não posso discorrer sobre tipo físico, altura, peso, cor dos olhos ou cabelos; são meros acidentes e não predicados, muito embora nenhum destes sejam objetos de meu interesse. Apenas tenho por hábito acompanhar enterros e observar os ritos e práticas desenvolvidas durante o mesmo. Poder-se-ia dizer que sou um pretensioso defensor de uma insipiente antropologia macabra.  
 
Na frente, lentamente, segue o carro negro que conduz o corpo em seu derradeiro passeio por ruas outrora exploradas. Atrás deste, ou melhor, grudado ao para-choque do auto, como se fosse estepe ou acessório, o bêbado conhecido da pesarosa família. O bebum parece desempenhar o papel coadjuvante a ele conferido com a seriedade de um diplomata: cenho cerrado, ensimesmado, cabisbaixo, resignado, cioso de um dever que lhe absorve por inteiro. Logo em seguida a família: a viúva envolta em negros trapos, amparada por filhas de olhos vermelhos. Filhos desfigurados com suas esposas afetadas. Netos estupefatos, com rostos cansados e edulcorados de xarope e catarro, caminham abraçados. Olhares perdidos, vagos, desamparados.

Uma ala de velhas mulheres, de expressões laconicamente arrebatadoras e súplices do nada, caminha com presumida insegurança. São carpideiras. E aqui me permito verberar tal conduta: prática resumidamente obscena! Afinal, o que é chorar pelo desconhecido, por quem não se tem admiração, por quem não se tem respeito, apreço? O expediente apenas reitera minha quase certeza: seres humanos criaram uma relação intrínseca com a piedade; eles têm necessidade de causar comoção e estimular a piedade. Diferentemente do cortejo norte-americano, este premia o féretro com a lamúria e o destempero.

Mas continuemos com nosso atípico tour. Depois vem a turba ínsita à comitiva, eivada de vozes apressadas e pastosas, que rumina cânticos e orações, numa tentativa escandalosa e piegas de requestar a atenção de algum anjo ou entidade metafísica que esteja ali, ao acaso, e possa mitigar a dor, não de quem fica, mas de quem já se foi. Encerrando o cortejo, aqueles, que como eu nada tem melhor a fazer, e que buscam ocupar o tempo de forma singular. Entretanto, não pensem os assustados leitores que nós, os estranhos à comitiva, ficamos imunes aos efeitos insalubres de tal jornada. Não! As vozes que pranteiam, os soluços em murmúrio e as rezas arrebatadas formam um conjunto sem igual, que se enformam num misto de mantra caricato e sugerem depressão e insânia.

Então meus possíveis leitores põem-se a questionar acerca do porquê do meu exótico tour. Em verdade, posso falar num diletantismo; a teoria aristotélica da vontade de conhecer típica de todos os seres humanos posta em prática. Gosto de observar os seres humanos afrontados pelo ângulo anverso; gosto de percebê-los em suas carências e descomposturas; gosto de defrontá-los diante da patente fragilidade; folgo em flagrá-los em suas incúrias e comicidade. Nesse ponto, os que me leem, deliberada ou casualmente, piedosos e indignados, esbravejam e me dizem um sádico. Mas por que sádico? Eu não sinto menor prazer em seus sofrimentos, apenas lamento as escolhas estúpidas. E qual seria a diferença entre o sádico e o masoquista? Sadismo e masoquismo são correlativos necessários. A vida sim é sádica, e só se mostra sádica porque os humanos se revelam como masoquistas. Antes mesmo de masoquistas, os seres humanos me parecem tolos, pois tolos são os que exigem da vida mais do que ela pode dar. Uns exigem da vida realização, outros a felicidade, outros o reconhecimento, outros o respeito, outros ainda, os mais excêntricos e arrebatados, reclamam da vida um viver eterno.


“Deixai os mortos sepultarem seus mortos”.

quinta-feira, 8 de agosto de 2013

Da modéstia


Pergunto-me por que a exigência da modéstia? Por que as pessoas devem revelar-se como limitadas, obtusas? Por que o pejo, o ocultamento das inegáveis qualidades? Por que uma humildade forjada e/ou um fabricado sentimento de inferioridade? Por que a insistência em demonstrar ignorância se a sabedoria é reconhecida por seus pares? Por que aparentar fraqueza ou pusilanimidade se é sabida a coragem exacerbada? Por que manifestar pobreza se a riqueza é de conhecimento geral?

Parece-me que o agir modestamente agrega mais vaidade do que o valor daquilo que foi deliberadamente velado. A modéstia, em si, é a tentativa de dissimular o óbvio. Por que dos ímpios não se exige a modéstia ao confessarem suas impiedades? Por que aos impudicos, aos insensatos e aos covardes não se lhes exige modéstia ao exteriorizarem a impudicícia, a insensatez e a covardia? A resposta parece ser evidente: a nobreza de caráter é incômoda. Ora, mas se aparentar modéstia é mais considerável àqueles que optam por dissimular uma ação nobre, então, as ações nobres inexistem. O que há então é um recurso espúrio que se vale da modéstia para aparentar aquilo que de fato não é.
  
E o que seria, então, a falsa modéstia? É o dissimular de uma dissimulação. Ora, nesse caso, falsa modéstia é uma afirmação. Portanto, a falsa modéstia, tão abominada pelos moralistas de ocasião, ainda se revela menos escandalosa do que a própria modéstia, pois que ao falsear uma condição falsa, o falso modesto expõe a “virtude” da modéstia como simples ferramenta de desfaçatez social, que visa, acima de tudo, um reconhecimento parco, vazio, putrefato.


Ao modesto falta a modéstia para revelar sua imodéstia.   

segunda-feira, 5 de agosto de 2013

Uma teoria do caos

A Teoria do Caos


"Se os fatos não se encaixam na teoria, então modifique os fatos".
Albert Einstein

"Ou então, abandone-se a teoria".
Fernando Monteiro
                                                                                                                                                                                                                                                                                                               
A teoria do caos trata de sistemas dinâmicos, complexos e deterministas. No entanto, através de um fenômeno fundamental, manifestam instabilidade, pois que se revelam sensíveis às condições das quais se originaram. Isso pode ser compreendido levando-se em conta o número de fatores que influenciam certas condições; destarte, os resultados tornam-se instáveis. Contudo as instabilidades mostram-se como recorrentes, e, portanto, previsíveis em longo prazo; algo como que uma constância. A princípio, as manifestações podem parecer aleatórias, mas, de fato, não o são. Não há acasos! Acontecimentos que parecem aleatórios, na verdade estão interligados. “O ruflar de asas de uma borboleta no outro lado do mundo pode desencadear tornados de grandes proporções em plagas distantes”.

O tornado:
A Educação, é fato, está em plena decadência. O sistema como tal fracassou. Não há instrumentos disponíveis para deter a patente falência. Professores fingem que ensinam; alunos fingem que aprendem. Tudo é uma grande comédia. Os lentes estão despreparados, e assim permanecem porque nada lhes desperta o interesse na auto superação; os alunos folgam com isso, porque nada lhes desperta o interesse na formação. O sistema não proporciona saídas; não há mecanismos capazes de criar novos e estimulantes desafios em alunos e propedeutas. Aliás, os únicos interesses são os resultados práticos de ambas as partes: alunos desejam apenas a formalização documentada de um aprendizado, não o aprendizado; professores desejam apenas a formalização do trabalho estampada em seus contracheques, não o trabalho. O que se percebe é um utilitarismo extremado e que revela impressionante volatilidade. Para o alunado, a formação não é um fim, mas um meio; para o corpo docente, educar não é um fim, mas meio de sustento.

Pode-se, então, questionar: mas por que as autoridades - entenda-se Estados - não se movem no sentido de buscar soluções ao impasse? Mas Estados, e ipso facto políticas, também se revelam extremamente utilitaristas. Eleições, reeleições, votos, pesquisas de intenção, plataformas, projetos, orçamentos, relatórios, prestação de contas etc. podem ser resumidos a resultados. Uma nação julga ter bem empregado seus recursos, através de números e resultados. O mercado de trabalho, que deveria ser o aferidor dos bons resultados educacionais, foi tornado também utilitarista através de um equivocado aforisma axiomático: “o mercado de trabalho é quem deve separar o joio do trigo”. Bobagem, a afirmação, em si, rescende ao utilitarismo presente no fordismo, no liberalismo econômico e aquiesce o princípio da seleção natural.

O ruflar de asas:
A partir de Descartes, o mundo, em geral, tornou-se refém de um modo de pensar totalmente matematizado. Tudo obedece a padrões impostos, a fórmulas escorchantes, a cânones, a tabelas, a gráficos, a eixos de abcissas e ordenadas. A proposta educacional iluminista focou-se em criar virtuoses e culminou na crueza de um positivismo, onde tudo é pesado, medido, avaliado. A modernidade, ao invés de banir o disputatio do ensino escolástico, parece tê-lo potencializado. Tal recurso, em si mesmo, leva ao insulamento, proporciona o subjetivismo e, (por que não?) ao individualismo. Os alunos competem entre si, porque o sistema assim o exige; o mercado de trabalho também. O método educacional pautado no pensamento de Descartes, muita embora se revista com trajes de ensino coletivo, acaba por agredir a coletividade.

O pensar cartesiano deve ter inspirado Darwin: only the strong survive. A teoria de seleção natural é filha bastarda da proposta cartesiana. A proposta educacional da modernidade é excludente: através de valores matemáticos enaltece uns e estigmatiza outros, separando bons e maus. Mas o que são bons alunos? Ou melhor: quais são os bons alunos? Percebo que mentes teoricamente brilhantes nem sempre apresentam o mesmo brilhantismo na prática. O que está em questão, afinal? A capacidade de armazenar dados? Ora, a educação não se restringe a memorização. E o que seria um bom docente? A capacidade de transmitir o maior número de dados ao maior número de alunos? Evidente que não. O que fica bastante óbvio é que as propostas educacionais, que visam à melhora do ensino, fixam-se simplesmente em eventos consequenciais. Isso explica a luta inglória.

Acredito que novos projetos devem se voltar a superar a origem do problema, perscrutando em seu cerne a fonte do mal entendido - um proto-equívoco - que repercute hodiernamente na educação ocidental.
Até o presente, nada fizemos além de modificar os fatos para adequá-los a uma teoria; é chegada a hora de banir a teoria. Se hoje fosse convidado a definir educação, eu diria: Educar é aparar as asas da vovó borboleta!