Tenhamos como ponto de partida as
considerações pitagóricas. Da relação com a realidade surgem dois elementos
primordiais: palavra e número. A palavra teria como função apresentar a verdade
daquilo que é; essa mesma verdade manifestaria certa relação matemática. Assim
se explica, parece-me, a necessidade imposta pela totalidade das nações, no que
tange ao aprendizado do idioma e da matemática como fundamentos educacionais. Todavia,
palavra e número deixaram de lado a característica da apresentação para
assimilarem característica meramente funcional, isto é, representacional. O número,
mais pontualmente, passou a primar pelo quantitativo. Ora, toda e qualquer
representação é funcional.
A tentativa por abandonar o mito e
suas representações funcionais, ou seja, sua ortodoxia e tautegoria, encontra na
cabala uma solução possível no resgate da instância fusional. A cabala - ligada
à mística - literalmente, significa “receber” ou “algo recebido”. Santo
Agostinho, por sua vez, no século IV de nossa era, teria proferido algo como: “A
ininteligibilidade dos números impede o entendimento de muitas passagens
figuradas e místicas das Escrituras”. Bem, a título de exemplo, abordo algumas
passagens das escrituras que envolvem sempre o mesmo arithmós (número), enquanto qualidade, relação, função, lei, ordem,
regra, processo, fluxo, ritmo e proporção.
Senão vejamos: o dilúvio demorou 40
dias; os hebreus, depois do êxodo, passaram 40 anos a vagar no deserto; Moisés
passou 40 dias em recolhimento também no deserto; tanto Saul, quanto Davi e seu
filho Salomão governaram por 40 anos. Se nos voltarmos ao Novo Testamento,
Jesus Cristo sofreu tentações e jejuou por 40 dias no deserto; foram 40 o
número de chibatadas aplicadas ao nazareno; a Quaresma, período do ano
litúrgico em algumas religiões cristãs, corresponde a 40 dias compreendidos
entre a Quarta-feira de Cinzas e o Domingo de Páscoa. Em verdade, o número 40
aparece 133 vezes nos textos bíblicos. Voltemo-nos, portanto, a entender o arithmós 40.
O algarismo 4 pode significar
provação, transformação, preparação, estabilidade, método, realismo,
perseverança, calma, ordem. Já o 0, após um numeral qualquer, tem a função precípua
de potencializá-lo. Logo, o dilúvio pode ser entendido como provação; o êxodo
como transformação; os reinados de Saul, Davi e Salomão como método, ordem; os
dias de tentação como preparação; as chibatadas como realismo; a Quaresma como
estabilidade. Não obstante, pode-se perceber que o termo deserto é algo muito
presente nos textos bíblicos, isto porque o deserto simboliza a busca interior
e lugar ideal para o relacionar-se com a divindade.
A instância fusional (relativa a fusão)
das palavras desempenha papel fundamental para o entendimento dos textos
bíblicos. A Bíblia nos fala de que não só Sara, esposa de Abraão, mas também
Rebeca, esposa de Isaac, e Raquel, esposa de Jacob, eram estéreis. Justamente
eles, os patriarcas responsáveis pela descendência do povo hebreu. Não, não há
contradição, pois a palavra esterilidade implica o não provimento; na simbologia
da esterilidade, contudo, reside todo o potencial da ação salvadora de Deus;
Deus torna-se, então, o símbolo para provimento de um povo.
Outro exemplo, a meu ver o de mais
difícil compreensão segundo a literalidade, trata-se de uma possível imolação
de Isaac. Sara não conseguia engravidar (esterilidade simbólica), o que
permitiu que Agar, a criada, gerasse um filho para dar descendência a Abraão.
Nasceu Ismael, Yishma’el - “Deus ouve”. Sim, Deus ouvira as súplicas do casal. Mas
Sara, muito embora idosa, conseguiu engravidar. Nasceu Isaac, Yitzhak, que significa
“ele irá rir”, “como Deus ri”, “filho da alegria”. Com o nascimento de Isaac,
Agar e o filho Ismael foram expulsos do acampamento, isto porque Agar passara a
desprezar sua senhora Sara. A meu ver o nó górdio para justificar a rivalidade
entre muçulmanos e judeus.
A dificuldade maior, no entanto, está em
entender o pedido de Deus para que Abraão sacrificasse o pequeno Isaac. A
cabala judaica diz-nos que a “Tora
fala por metáforas, por enigmas muito particulares”. Na verdade, o Isaac a ser
sacrificado seria o “filho interior de Abraão”, pois o patriarca, apesar do
filho do riso, dera origem a um herdeiro íntimo, “nascido não só do riso, mas
também da mágoa, da cólera, dos medos e sonhos não realizados”, afinal Ismael, de
fato seu primogênito, fora banido, segundo sua decisão pessoal. Deus
pede a Abraão que “renunciasse a isso, a suas emoções e pensamentos” negativos,
“que desatasse os nós do seu espírito, que extinguisse uma parte de si próprio”,
até porque Deus prometera a Ismael uma descendência igualmente numerosa.
Em suma, feliz ou
infelizmente, a interpretação de textos sagrados, através do estudo da
simbologia, da vera apresentação (não representação) e da instância fusional vem
dirimir dúvidas, explicar lendas, milagres e extinguir mistérios. Seria isso "saudável" para os religiosos?
As partes entre parênteses no penúltimo parágrafo foram
extraídos do livro O Último Cabalista de
Lisboa de Richard Zimler.