Ao sair à rua deparo-me com uma
senhora que conheci ainda em minha tenra idade. Cumprimento-a: – “Bom dia! Tudo
bem?” E ela responde-me: – “Bom dia meu filho. Tudo tranquilo”. E logo em
seguida começa a desfiar uma série de problemas, obstáculos, doenças,
conflitos, etc. Enfim, ela contradiz a recente declaração de que estava
tranquila. Pergunto-vos: por que isso acontece? Simples, porque o tranquilo já
não mais usa o trema. Uma tranquilidade sem trema revela desassossego,
inquietação. Mesmo que só pronunciado, o hiato acaba por trazer em si
incoerência, oposição, contestação. A diérese, portanto, faz-se fundamental.
Mas não nos limitemos a um único
exemplo. Eu gostaria de dar sequência à crônica, desde que seja uma seqüência,
pois sem trema não haveria seguimento, sucessão, ordem. Pois bem, já que vós
não podeis redarguir – sem o trema, evidentemente, pois na presença dele não
há possibilidade de réplica – sinto-me mais à vontade para fazê-lo.
Sabeis vós que a medicina veterinária
acaba de detectar certa anomalia nos pinguins? Sério, essas aves parecem estar
passando por uma mutação genética; uma transformação no DNA. Lógico, os
pinguins perderam os tremas. Já não mais comem peixes, agora comem de tudo, são
onívoros; comem até linguiça. E linguiça sem trema traz uma série de males aos
seus consumidores. E não foram apenas os pinguins que sofreram com a ausência
do trema: os saguis, pequenos primatas da América do Sul, agora possuem
polegares opositores; os equinos deixaram de relinchar e apenas resmungam algo
como um funk.
Gente, em todos os âmbitos da nossa
vida, inclusive na ciência, a ausência do sinal gráfico, o trema, teve péssima
repercussão. Na matemática, o cinqüenta já não vale mais cinquenta; agora a
coisa varia entre 49,986 e 50,034. O quinquênio, por sua vez, tem mais de cinco
anos. O equidistante manifesta diferentes distâncias; os equiláteros já não
mais têm os lados iguais. A aquicultura tem outro arcabouço, pois o meio
líquido tem composição diferente do H2O.
Prezados leitores, e há consequências
bem piores das que até aqui venho elencando: advogados, justamente amparados
pelo Novo Acordo Ortográfico, alegam que sem trema, de fato, não houve
sequestro; ninguém delinquiu. Não existem delinquentes. O princípio é: “Não
existe crime sem trema que o pré-estabeleça”. Mesmo que os promotores venham a
entrar com recurso e arguir testemunhas, independente se o arguir faz ou não
uso do trema, a freqüente demanda dos advogados criará, por si só, uma espécie
de jurisprudência. Advogado que se preza não abre mão do trema em sua
eloqüência. E ninguém poderá acusar o juiz de iniquidade, pois sem trema o
iníquo revela-se como justo. Conseguistes atentar para a gravidade? A falta do
trema cria uma insegurança jurídica.
Como podeis perceber, o não uso da
diérese pode ter conseqüências imprevisíveis. Como exigir de alguém que seja
bilíngue, se o trema está ausente? Conformemo-nos, portanto, com qualquer
inglês, ou francês, ou espanhol ... de beira de cais. Dizei-me com franqueza:
como o comércio pode promover liquidações, se estas veem sem trema? O que temos
é uma febre de Black Fridays que só faz enganar o consumidor. E, por fim, o que
mais me preocupa: O que dizer da antiguidade, do antiquíssimo? Creio que por
falta do trema estamos perdendo nossa identidade cultural, estamos nos
afastando da nossa história, perdendo nossa autenticidade e abrindo mão do
legado que forjou nosso povo, nossas crenças, nosso idioma.