terça-feira, 15 de dezembro de 2020

Apenas vestígios

 

Conhecer a Grécia, Atenas mais especificamente, foi uma espécie de sonho realizado - a dream come true. Desde os primeiros estudos filosóficos certa curiosidade invadiu-me: o desejo de visitar o lugar considerado berço do pensamento ocidental. Eu diria que um conjunto de circunstâncias, buscadas evidentemente, propiciaram-me o ensejado; sim, a oportunidade fez-se presente ... e lá estava eu, aboletado numa das poltronas da aeronave, a pretender ostentar o epígrafe de ter amor ao saber. Todavia, teve lugar alguma decepção. A viagem como um todo foi, de fato, bastante proveitosa em termos de cultura, mas no tocante à filosofia ... talvez por falta de adequada expressão, arrisco-me dizer desapontado.   

Desembarquei no aeroporto de Elefthérios, em Atenas, um pouco depois da meia-noite, haja vista o atraso em Paris, no Charles de Gaulle, em função de uma ameaça de bomba. Bem, em meio a fila da imigração, o visto de passaportes, a retirada de bagagens e outras exigências legais, permiti-me observar o entorno. Curiosamente os jovens, por conta de certo modismo, parecem-me ter perdido suas identidades. Eu falo em falta de identidade cultural, pois vi uma juventude exatamente igual a qualquer outra do planeta: calças jeans, cabelos coloridos, piercings, tatuagens, gestos, sorrisos, desleixo, descompromisso... Nem mesmo o idioma falado pode identificá-los. Se bem que, certo passaporte trouxe-me a resposta: ingleses.

Enquanto caminhava a procura de um taxi, pus-me a pensar: o modismo que iguala toda uma geração é o mesmo que critica os conservadores. Dizem por aí que o conservadorismo é um entrave às demandas sociais e, ipso facto, um obstáculo ao desenvolvimento da sociedade. Pergunto-me: serei um conservador? Afinal, sou contrário a certas reformas, principalmente àquelas que primam por estiolar valores e banalizar identidades culturais; sou apaixonado pelo que exibe raízes históricas. Nas rupturas históricas é mister equilíbrio e bom senso. Mas o taxi encostou na plataforma e arrancou-me do questionamento.

O hotel distava uns bons 30 minutos do aeroporto; a corrida custou-me 70 euros. O motorista falava inglês, mas não lia inglês. A confusão estava formada; ele conhecia o endereço, mas o mesmo não estava grafado em alfabeto cirílico. Chegamos afinal; desculpou-se e partiu. Fiz o check-in. Ainda no lobby, pude observar certa escultura na parede fronteiriça: não era Jesus Cristo nem nenhum santo conhecido por nossa inerente idolatria. Bem, satisfeitos os trâmites que soem acompanhar a qualquer hospedagem, peguei das chaves e subi ao quarto. Um bom banho, a cama e esperar por mim e a TV sintonizada num canal de notícias. Adormeci.  

Hotel Pergamos! Sim, hospedara-me junto aos filhos, aos descendentes de Andrômaca. Da avenida Aharnon, onde era situado, até a Praça Omonia - meu lugar referência - eu transitava pelas avenidas Sokratous e Aristotelous, o que me deixava, já que entusiasmado filósofo, sobremodo vaidoso. Da Praça Omonia à Praça Monastiraki, ponto de partida para conhecer-se os pontos turísticos e históricos, inclusive para chegar a Akropolis, bastava seguir a avenida Athinas.

E teve início meu vaguear helênico. Próximo de Monastiraki pude conhecer o Museu de Arte Folclórica de Atenas, a Biblioteca de Adriano, a Torre dos Ventos, o Fórum Romano, o Museu Kanelopoulos. A Acrópolis de meus sonhos a erguer-se altaneira, soberba, por que não? Bem próximo, o Teatro de Dioniso; adiante a antiga Ágora e o Templo de Hefestos. Impressionante o portal, a Stoá de Attalus. Na Stoá pude observar esculturas dos três grandes dramaturgos gregos: Ésquilo, Sófocles e Eurípedes. Curioso: Aristófanes não fazia parte deste Parnaso. E os filósofos? Então começou minha desilusão.

Em frente a Academia de Atenas as estátuas de Platão e Sócrates. No Monte Filopappos, em destruída prisão, aquela que teria sido a cela de Sócrates. A Academia platônica não passa de ruínas. O Liceu, testemunha do método peripatético de Aristóteles, é apenas sítio arqueológico. Ainda em outra oportunidade, ao visitar o Zappeion, o National Garden e o prédio do parlamento, em elegante alameda, pude encontrar, de novo, as estátuas dos três grandes poetas trágicos da antiguidade. Um senhor, motorista de táxi, declarou-me: estes foram os três maiores gregos que já existiram!

Visitei o atual estádio de Atenas, o Panathinaiko, fui ao Templo de Zeus, fotografei o Arco de Adriano. Fui ao Museu da Acrópolis, ao Museu Nacional de Arqueologia. De uma única vez conheci a Biblioteca Nacional, a Universidade de Athenas, a Academia de Artes e a Igreja de Dioniso Areopagita. Por incrível que pareça, as referências a filósofos que mais me marcaram estão nas avenidas que ostentam os nomes de Sócrates e Aristóteles.  

Ainda um tanto apatetado, adentrei uma livraria e busquei por livros de filosofia. Encontrei Kant, Bertrand Russel, Wittgenstein e Foucault, dentre outros. E os filósofos antigos? E os pré-socráticos? A livraria não dispunha. Minha primeira desilusão foi constatar que a Grécia que eu buscava não mais existia, a não ser nas bibliotecas, corações e mentes de alguns saudosistas como eu, que ainda cultuam o pensamento em sua origem. A filosofia grega antiga transformara-se em vestígios.  

Dali por diante, fixei-me na questão cultural, inclusive a degustar grandes porções de Moussaka. Sim, mais uma vez tive minha atenção requestada pela imagem dependurada no lobby do hotel, até porque já a tinha visto em outros locais, até mesmo em restaurantes. A esbanjar curiosidade, busquei informar-me com o concierge. Explicou-me ele que tratava-se de Dioniso, o deus mais popular, o mais querido de toda a Grécia. Sim, este deus, muito embora ser um dos primeiros deuses a surgir, fora rejeitado por seus pares. Isto porque o Panteon era sobremodo aristocrático, e ele, apesar de filho de Zeus, fora criado no interior, por titãs e fizera-se muito próximo do povo. 

Aqui permito-me citar Xenófanes de Cólofon: “Os homens criaram deuses à sua imagem e semelhança”. Pelo que entendi, os aristocratas criaram deuses e o povo criou Dioniso. E quanto à filosofia? Parece ter sido criada e desenvolvida para trazer solidez ao pensamento humano. Todavia, os seres humanos permitiram-se ao conspurco; o pensamento humano enodoou-se, cobriu-se de excrecências; tornou-se corrompido, depravado. Uma quase certeza me alerta: Não foram os seres humanos que se afastaram da filosofia, mas esta, sim, apartou-se para não se permitir macular.   

domingo, 6 de dezembro de 2020

Oikos


Há lembranças, algumas evidentemente, que se nos revelam agradáveis e são sempre benvindas. Exemplo disso é o personagem alienígena do Filme ET, dirigido por Steven Spielberg. Em determinada cena, o extraterrestre aponta seu longo dedo para um lugar qualquer do universo e pronuncia: “Casa minha”. Não só a cena, mas a frase fez-se antológica. Debruço-me, então, sobre a frase. A casa em questão refere-se a seu mundo, à sua pátria. Alienígenas estimariam, de fato, suas casas?

Ponho-me a pensar em minha casa: grande, algo soberba, confortável, se bem que... Sim, os sintomas da velhice estão patentes: goteiras, quando na temporada chuvosa, transformam-me num Gene Kelly; eu apenas solfejo a meia voz algo parecido com Singing in the Rain. Paredes um tanto amarelecidas que exibem cópias ou obras de arte. Alguns portais, poucos na verdade, receberam a visita de térmites (este substantivo é um eufemismo para evitar-se o cupim). Torneiras e chuveiros gotejam, talvez para marcarem o compasso do estridular de grilos. É minha casa, minha realização, adquirida com determinação...

Pensando bem, não é só minha casa; é também meu lar. Sim, este local está repleto de emoções, de sentimentos. Os bons sentimentos do lar dão anima, vida à casa. Existem histórias as mais variadas; há memórias... Conheço cada canto do imóvel; eu o concebi, o construí. Ali está minha energia, meus bons fluídos. Não se trata apenas de meu Oikos - família, propriedade familiar e moradia - mas também de minha Polis - cidade com suas próprias regras. Minha biblioteca é meu mundo, meu templo particular; há também o quarto que protela em tornar-se oficina. Pelo minúsculo quintal, as flores e folhagens com quem converso. Enfim, minha casa, espaço físico, palco de tantas experiências agradáveis, atingiu o status de lar; há parceria, cumplicidade, completude. Entre mim e minha casa, meu lar, há sinergia, cooperação, solidariedade.

Não tenteis tirá-la de mim com a promessa de algo mais novo, moderno ou próspero, pois apesar dos pesares, foi erguida "com muito esmero". 

sábado, 5 de dezembro de 2020

A Nova Teoria Tridimensional do Direito

Sim, como estamos às voltas com o Novo Normal, discorramos um pouco acerca desta faceta jurídica tipicamente brasileira, ou melhor, tupiniquim: a Nova Teoria Tridimensional do Direito.

Partamos, contudo, da teoria original: Fato, Valor e Norma. O Fato liga-se à sociedade e, por vezes, guarda raízes históricas. O Valor compreende o aspecto axiológico, ou seja, valores contemplados por qualquer sociedade; Justiça, por exemplo. E, por fim, a norma, gerada pelos valores da própria sociedade, que vem regulamentar os fatos. A resumir: a sociedade depara-se com um fato, submete esse fato a valores e cria normas. Doravante, o que teremos? Se A (fato) acontecer, lancemos mão de B (a norma). Estamos, portanto, diante de um juízo hipotético: Simples, não? Mas nem tudo são flores. Surgiu um argentino chamado Carlos Cóssio (tinha que ser argentino) e inventou a Teoria Egológica do Direito. A coisa toma outro rumo: Ainda temos o Fato, o Valor e a Norma, mas a Teoria de Cóssio propõe o Eu como aspecto determinante. Explico-me: Se A (fato) acontecer, teremos ou não B (a norma). Busca-se justificativas e atenuantes para o Fato. O juízo tornou-se disjuntivo. Por que? Porque a Teoria é Egológica (ou seria Egocêntrica, ou ainda uma Ególatra?) O Fato é submetido a valores, mas não mais da sociedade, e sim de um ego, geralmente o interessado.

Atentai todos vós canalhas de plantão! Pelo menos nessa terrinha chamada Brasil, a coisa desandou numa velhaca Teoria (ou seria uma Nova Teoria?). Há uma nova tridimensionalidade à vista: O Fato foi substituído pelo Interesse (entenda-se alguém que pretende mudar ou interferir em texto consagrado na doutrina jurídica). Depois, ao invés do Valor, temos o Cinismo (na verdade, um desvalor) que é apanágio dos que se propõem - os fantoches que trajam capas negras e enxergam a si mesmos como deuses - a observar o Interesse (o Fato) com nova (e por que não capenga?) hermenêutica. E a Norma? perguntar-me-eis. Bem, a Norma passa a ser, então, aquela prostituta de luxo. Sim, mulher cara e sofisticada que, em geral, acompanha alguns “expoentes” da sociedade, apenas para lhes emprestar seriedade.

Como parte de minha pedagogia, procuro sempre usar exemplos práticos. O Artigo 57, §4º da Constituição Federal diz-nos que: “Cada uma das Casas reunir-se-á em sessões preparatórias, a partir de 1º de fevereiro, no primeiro ano da legislatura, para a posse de seus membros e eleição das respectivas Mesas, para mandato de 2 (dois) anos, vedada a recondução para o mesmo cargo na eleição imediatamente subsequente”. Existem dúvidas quanto à clareza do texto? Parece-me que não. Lancemos mão, no entanto, da Nova Teoria Tridimensional do Direito: O Fato foi substituído pelo Interesse dos presidentes do Senado e da Câmara Federal. O Valor foi substituído pelo Cinismo inerente aos títeres que compõem o plenário do Supremo Tribunal Federal. E a Norma? Bem, por enquanto, estamos diante (pelo menos em lugares sérios) do que seria uma contradição absurda: A Corte Constitucional estaria rasgando a Constituição declarando-a Inconstitucional.


segunda-feira, 30 de novembro de 2020

Nova amizade

 

O relato a seguir foi-nos contado e recontado - a mim, meu irmão e meu pai - em várias ocasiões por minha mãe. Tenhamos em mente, no entanto, que mamãe era uma dessas pessoas que se encanta facilmente com o mistério; o sobrenatural, ou aquilo que ela acreditava sê-lo, a fascinava. Curiosamente, ela não buscava entender o fato ou compreender as circunstâncias em que o evento se dava; bastava-lhe a narrativa. Todavia, o presente acontecimento é, por si só - vós podereis confirmar - cercado de mistério.

Ei-lo: foi num dia 02 de novembro de um ano qualquer. Dia de Finados! Mamãe, bastante religiosa e filha dedicada, não deixava de ir ao Cemitério de Inhaúma visitar o túmulo de seu pai, meu avô Daniel. Pois bem, além das flores, ela levava também materiais de limpeza. Não, não estranheis tal hábito; a fé a tudo justifica. Pois bem, após meticulosa faxina, ela enfeitava, ou melhor, engalanava o mausoléu da família. Por fim, fazia suas orações, conversava com o pai falecido e agradecia a Deus.

Em virtude do Dia dos Mortos, o cemitério aumentava sobremodo sua frequência. Mamãe, absorta em suas orações, não voltava a menor atenção para o que acontecia ao redor. De olhos fechados, contudo, sentiu delicadíssimo toque em um de seus ombros.  – “Quem se atrevia a perturbá-la durante suas orações?” – pensou irritada. Mesmo assim, abriu os olhos e voltou a cabeça para o lado esquerdo: uma mulher jovem - algo em torno dos trinta anos - de beleza invulgar sorria com doçura. Trajava elegante luto, com sapatos e luvas negras; na mão o chapéu forrado com renda igualmente negra. Desculpou-se repetidamente e explicou que o vento arrancara-lhe o chapéu e lhe desmanchara o penteado. Mamãe pode confirmar as mechas soltas de um cabelo castanho claro a espalhar-se em profusão por sua testa e rosto. Então veio a frase que conquistou mamãe; disse a estranha: – “Queres ser minha amiga?” Mamãe sorriu e assentiu: – “Sim”. A jovem mulher então solicitou: – “Empresta-me teu pente, para que eu possa ajeitar meu cabelo?” Mesmo atônita, minha mãe abriu a bolsa, buscou pelo artefato e o entregou a solicitante. Ao receber o pente, concluiu a mulher:  – “Sim, não esqueça de incluir-me em tuas orações”. Voltou-se e dirigiu-se à campa que erguia-se na alameda seguinte.

Minha mãe, acompanhou-a com o olhar, viu que ela ajoelhara na sepultura próxima e penteava os cabelos. Não obstante, voltou às suas orações. Ao terminá-las, juntou seus pertences e olhou para a campa onde a estranha se dirigira. O lugar estava ermo; nenhum sinal da mulher. Mamãe então aproximou-se do local. Pasmai: sobre o túmulo, o pente que mamãe emprestara. Minha mãe ainda olhou para a foto presa ao mármore do jazigo e reconheceu a estranha. Mamãe não mais deixou de orar pela nova amiga.     

domingo, 29 de novembro de 2020

Jardineiro

 

Dou início ao brevíssimo ensaio a falar de expectativas. Parece-me que o convívio, seja familiar ou social, nos leva a criar expectativas. Sim, esperamos sempre mais dos outros do que de nós mesmos. Alguma coisa próxima da esperança faz com que acreditemos ter supostos diretos; expectativa é lugar improvável onde trabalha-se com meras probabilidades. Mas enfim, e lamentavelmente, a expectação, na mor parte dos casos, deságua em decepção; sim, as expectativas são fontes de decepções. E como fugir do malogro, da desilusão? Uma resposta puramente racional aconselharia a total descrença, a não expectação, a negação de quaisquer esperanças. E, ipso facto, abandonaríamos também as características de seres humanos.  

Minhas decepções foram muitas; sim, e é bom frisar: minhas decepções. As decepções são de responsabilidade única do expectante; decepcionar deveria ser verbo defectivo, pois conjugado apenas na primeira pessoa. Decepcionei-me com companheiros de trabalho, vizinhos, conhecidos, familiares, amigos (???), etc. Ao tentar resumir, posso dizer que a totalidade das minhas relações foram as fontes de minhas decepções. Então vós, meus prováveis leitores (mais uma expectativa) diríeis: “Tu és o elemento complicador das relações!” Bem, réu confesso que sou, respondo-vos: mea culpa, mea maxima culpa, muito embora certa corrente de pensamento declarar que quando há um mea culpa não há sinceridade. Todavia, tenhamos em conta minha sinceridade: sem querer atribuir a terceiros qualquer culpa por ter-me tornado este “elemento complicador”, garanto-vos que sou fruto de uma sociedade que estimula expectativas. E onde buscar alento em face das desditosas esperanças?

Então descubro-me um jardineiro. Não um Jardineiro Fiel, pois não sou diplomata nem tive qualquer parente assassinado; pretendo nada investigar. Um simples jardineiro! Fiel somente a este introito botânico. Não me envolvo com paisagismo; cuido de jardins. Percebi-me apto e hábil a manusear e conviver com vegetais. Identifico folhas compostas; limbos divididos em folíolos. Não faço distinção entre monocotiledôneas e peninérveas. Nas flores, observo cálices e corolas; estimulo a visita de abelhas, borboletas, demais insetos e aves inseminadoras.  Eu as águo, as limpo, proporciono-lhes minhocas que produzem húmus; eu as adubo, folhas aparo, procedo as podas, as aparto de ervas daninhas. Posso vos afiançar: não há expectativas, não há decepções. Os vegetais não reclamam, não me afrontam, tampouco agradecem. Nossa relação é simples, calada, livre de recursos linguísticos e encenações. Minha realização está em vê-los desenvolverem-se, florirem... Tenho em cada flor uma parte de mim; em cada pequena mudinha a amizade que se me revela; em cada novo botão um filho, se assim o quiserdes.

E a sociedade? perguntar-me-eis. Bem, ocorre-me ser canteiro abandonado, terra maninha, ressequida, infértil; plantas em desalinho, desfiguradas, amarelecidas; flores baldas, murchas e fenecidas.

sexta-feira, 27 de novembro de 2020

Acumuladores

 

A casa erguia-se na esquina de duas avenidas bem movimentadas. A edificação com avarandado no andar superior ocupava o centro do terreno; jardins espalhavam-se por todo o entorno. Ali morava uma mocinha por nome Sônia: pessoa boa, cordata, bem educada. Conheci também seus pais e irmãos. Depois da morte do casal proprietário, os filhos permaneceram na casa; cada qual em seu cantinho. No entanto, pode-se perceber o início de certo hábito comum: algo, no mínimo, intrigante. Falo da acumulação compulsiva. Sim, os quatro irmãos deram início a tal prática. A fazer-me psicólogo amador, entendo que tudo esteja relacionado à morte dos pais; dir-se-ia uma família, de fato, unida; os pais buscaram suprir todas as necessidades e demandas dos filhos. Eles agora, acumulavam coisas a fim de embotar ou até retardar emoções e ansiedades.

Hoje, passados alguns poucos anos, quem transita pelo local, observa um quintal repleto de quinquilharias, caixas, papéis, madeiras, sucatas as mais variadas. Ao se abstrair a atividade econômica, estamos na presença de um “ferro-velho”. O interior da casa, segundo me segredaram, não está diferente. São pilhas de ferramentas, talheres, conjunto de panelas e aparelhos de jantar aos pedaços... O lixo está por toda a parte; os irmãos transitam e dormem, cada um em seu cômodo, rodeados de entulhos, quiçá ratos, baratas, escorpiões, etc. A vizinhança já se mostra incomodada e ameaça buscar ajuda nas autoridades sanitárias.

Coisa triste de se ver. Todavia, em se melhor observando, somos todos acumuladores. Sim, nosso “eu”, que prima por jactar-se, por vezes, quando contrariado, acumula decepções, desagrados, desapontamentos, desilusões. Quantos de nós mantemos abertas certas feridas, e estas, infeccionadas, dão origem as mágoas, aos ressentimentos, aos rancores. Depois da fase odienta, pode-se chegar à limítrofe etapa da vingança. Sim, ao acumularmos as miudezas com que nos deparamos no dia-a-dia, criamos uma espécie de “ferro-velho” existencial. Ao nos vergarmos às imposições do eu”, tornamo-nos numa espécie de adelo, só que de nada abrimos mão, apenas adquirimos. Adquirimos o lixo que, na mor parte das vezes, em nada nos favorece. E vós me perguntais: como nos livrarmos de criar semelhante ferro-velho? como não ser acumuladores? Simples, tenhamos em mente apenas uma coisa: servir! Ao servir, entorpeceremos possíveis emoções e/ou ansiedades.

Et requiem tibi Deus!

quarta-feira, 18 de novembro de 2020

Um bonde chamado Alegria

Em mais um acometimento saudosista, (sintoma de velhice?) permito-me falar do Rio Antigo. Devo preocupar-me? Curioso, pois não me ocupo de atualidades; careço de memória recente. Alzheimer? Sei lá. Mas as memórias antigas são bem mais prazerosas... Talvez por causa do intenso vivido, das relações sem malícia ou afetação. Portanto, fixo-me em meu Rio de Janeiro; não o de agora, mas o de então, aquele que conheci, o que convivi, o que compartilhei.

Eu ainda menino, anos cinquentas... Calças curtas e cabelo à escovinha a acompanhar papai e mamãe em suas visitações. Mais tarde, adolescente, no bonde que muito me conduziu ao colégio. Eu dependurado no estribo, a imitar algum tipo de herói e saltar do vagão em movimento na curva frontal à Ladeira do Vintém, no Meyer. Quanta emoção! Sim, naquela época não havia surf, parapente, asa delta, bungee jump ou similares.

Recordo-me do intenso tráfego de bondes no Tabuleiro da Baiana, Largo da Carioca, entre a Rua Senador Dantas e a Avenida Treze de Maio. Ali era o ponto final; ali eu embarcava para visitar a mãe de uma saudosa tia na Rua Farani, em Botafogo. O bonde, não obstante dito ultrapassado e por muitos demonizado, traz-me tão boas lembranças que, ainda hoje, arrisco-me por Santa Tereza. Lá fico a olhar para suas ruas, pedras, calçamentos, os trilhos...

Dentre tantas lembranças, no entanto, uma mais se destaca: O Bonde Alegria. Uma dúvida: a Rua da Alegria seria alegre ou como todos nós também conheceria a mágoa? Alegria, por vezes, rima com melancolia. Bem, eu embarcava geralmente no Largo da Cancela; ele vinha lotado. Embora bastante jovem, ainda recordo-me de alguns gracejos que a “elite” masculina dirigia às mulheres, haja vista a turbamulta. Eram coisas do tipo: “Sempre haverá um lugar em meu colo” ou então “A senhora pode vir, pois o engate está livre”. Apesar de a pervertida conotação, nosso bonde não se chamava Desejo, e asseguro-vos de que não haviam personagens como Blanche ou Stanley criados por um Tennessee Williams.  

De súbito, meu saudosismo sente-se acanhado, desmotivado; o rótulo de extemporâneo faz-se presente, o real impõe-se e exige reparação. O espírito, então, abate-se, esmorece e conhece algo de tristeza, de abatimento. Todavia, fica a pergunta: por que as boas lembranças sempre são capazes de nos proporcionar o refrigério que a vida, em si, empenha-se em negar?  


terça-feira, 17 de novembro de 2020

Amor de pandemia

 

Sinto-me desconfortável em tratar de semelhante tema, mas algumas coisas criam, por si mesmas, certas demandas. Esta é uma delas! Conceituá-la? Talvez eu nem consiga... Não, em nada se assemelha ao amor de carnaval, aquele que fala em “três dias de folia e brincadeira; você pra lá e eu pra cá até quarta-feira”. Não foram apenas três ou quatro dias... Pensando bem, esse ano “eu não brinquei, você também não brincou”. Fantasias? Não ficaram guardadas; simplesmente não existiram! Mas houve máscaras, e quantas... Pessoas usando máscaras. Como confiar em pessoas - personas (máscaras) a usar máscaras? E como entender o isolamento que quer comunicar-se, que quer convivência?

E fala-se em amor. Poderia, de fato, existir o amor sem a convivência? Seria possível um love home? Como surgiria a admiração entre pessoas - personas (máscaras) - que dispõem apenas de relacionamentos virtuais? Teria lugar o respeito? A falta de confiança, parece-me, subverte o amor. Mas, ... que digo eu? Limitei-me a observar o amor pelo ponto de vista eminentemente humano. Há que se entender o amor como sentimento que transcende toda humanidade; que de si mesmo alimenta-se; o amor não se preocupa em ser amado, pois mantém-se à custa de sua própria substância. Sim, embora de difícil compreensão, o amor simplesmente ama. Não nos preocupemos, portanto, em conceituar o amor, conhecer sua essência ou entender seu porquê. O amor é como a rosa de Silesius. Assim como o amor, “A rosa não tem porquê. Floresce porque floresce. Não cuida de si mesma. Nem pergunta se alguém a vê...”


segunda-feira, 16 de novembro de 2020

O tempo como recurso

 

A falta de assunto, a apatia provocada pela obrigação de ser simpático, ou até mesmo o desinteresse por qualquer informação advinda dos que nos são indiferentes, faz com que falemos do tempo. Leandro Karnal há pouco nos falou algo similar. E a coisa começa mais ou menos assim, geralmente em um elevador ou em ambiente que não permite o escape furtivo: “Bom Dia!” Alguém responde: “Bom Dia!” E o diálogo prossegue: “Está quente hoje, não?” E o outro responde: “É, acho que vem uma chuvinha por aí no final da tarde”. Sim, as previsões meteorológicas são permitidas. Todavia, não fazei como certa apresentadora que, além das previsões mentirológicas, deu-se ao desplante de criar neologismo, ao prever uma chuvica para o início da noite.

Fato curioso: uns falam em final da tarde, outros em início da noite. Mas, não se trata da mesma coisa? Ou entre estes haveria um breve lapso de tempo, o eterno desencontro entre Isabeau e Etienne em O Feitiço de Áquila? As relações sociais impostas deveriam assimilar a síndrome da não interação entre a águia e o lobo. Estranho, ... ainda falamos de tempo. Não mais do clima, evidentemente, mas do espaço que se interpõe aos acontecimentos. Sim, no romance citado, manifesta-se outro tipo de tempo: o tempo psicológico. Krishnamurti nos alerta: A distância entre o amante e o ser amado cria um tempo psicológico, pois que essa distância é nada mais que desejo, posse ...  Isso traduz-se como sofrimento. Poetas vários já declararam: “Amar é sofrer”.

Não obstante, amor e posse são inconciliáveis. Seres humanos, contudo, talvez devido à própria limitação, mostram-se obstinados na conciliação de desarmônicos, onde a polissemia é recurso profícuo. Já percebestes que a própria limitação humana faz com que, a título de dominar o conhecimento, busca a tudo mensurar? Os seres humanos querem mensurar, inclusive, o tempo. Como? De modo arbitrário criam medidas, convenções. E isso é possível? O tempo passado já não existe, o tempo presente não tem extensão, o tempo futuro ainda não existiu. Santo agostinho deve ter-se rido à larga com as patranhas dos que se lhes assemelhava.  

E na presente atmosfera (que também é tempo) percebo o surgimento de uma tormenta, um temporal (outra vez o tempo). Transitório porque prenhe de obrigações; a simpatia como obrigação; a solidariedade como imposição. A tormenta a que me refiro tem sentido figurado, pois significa agitação, tumulto, episódios que em muito destoam e destoarão de minha realidade, pois que vivo em outro tempo. Vivo em paisagens eivadas de branca areia, coqueiros e jandaias; eu não vivo a agressividade, não vivo o reformismo... Eu vivo o estar incauto em nômades acampamentos; eu vivo o deixar fazer-se poeta pela própria natureza e não pela crueza... de relações, de sentimentos.  

Oxalá, nesse caso, o tempo se me revele seu mais implacável e bem-vindo recurso: as cãs, as rugas, as limitações, o caminhar lento e olhares profundos a demonstrar cansaço, talvez algo furtivo, talvez lasso. A velhice é o tempo a demonstrar sabedoria: ele nos vem arrebatar para que não soframos os desgastes de novas circunstâncias, nem para que nos submetamos ao ridículo de uma imposição modal. O tempo, enfim, vem nos brindar com seu mais valoroso troféu: o depreciado e decantado funeral.

sábado, 14 de novembro de 2020

Comer faz mal à saúde

 

Não vou perder meu tempo em apontar os malefícios causados pelos alimentos industrializados. E aqui refiro-me pontualmente às refeições prontas e congeladas, aos alimentos embutidos, aos caldos e temperos, aos biscoitos recheados, aos salgadinhos, às margarinas, refrigerantes, adoçantes artificiais, pipocas de micro-ondas, macarrão instantâneo. As frituras, de fato, são prejudiciais. Existem ainda os que veem no churrasco um inimigo, afrontando a gauchada sôfrega por carnear.

O açúcar e o chocolate ficam interditos não só aos diabéticos. Nada obstante, vem a turma que coloca-se contra os pães, principalmente o pão branco, dizendo-o muito calórico, responsável por altas taxas de glicose, aumento de peso, glúten, etc. e que prejudicam a pele. Mas a pele também pode ser afetada pelo açúcar e sal refinados, temperos industrializados, pela soja, pela pizza, o hambúrguer (carnes vermelhas) e bebidas alcoólicas.

Sim, e por falar em carne, o excesso de proteína prejudica os rins. Portanto, abstenhamo-nos de carnes vermelhas, brancas, de peixe, de leite e ovos. As carnes vermelhas são prejudiciais também ao fígado, assim como a manteiga, queijos, leite integral, iogurtes com açúcar. Por outro lado, nosso coraçãozinho pode sofrer com os hambúrgueres de fast food, com as carnes processadas, doces, biscoitos, bolos, pizza. Nossos olhos jamais voltarão a lançar o famoso “olhar 43” se em presença de óleos vegetais, açúcares e boas doses de vinho.

Bem, a batata inglesa há muito foi defenestrada; tornou-se a vilã por conta de um novo imperativo estético. Sim, e depois de frita, produz acrilamida, uma substância altamente tóxica e nociva à saúde. Mas...e a batata doce? Dizem que a vitamina A nela abundante, quando armazenada pelo corpo, faz com que pele e unhas ganhem cor alaranjada. Oh, my God! The Orange is a new black! Mas a pobre da batatinha doce, por possuir oxalato, contribui para a formação de cálculos renais.

Ficamos por aqui? Não, a berinjela tem muito fósforo, a cenoura pode causar hipertensão. Ervilha e espinafre, por conta do muito fitato, impedem a absorção de seus próprios nutrientes. Não vos enganeis com as aparências, pois apesar do aspecto angelical, alimentos ricos em purina pode provocar gota úrica, inclusive, aumentando sobremodo as dores. E atenção: o pimentão pode causar inflamação. O trigo, a aveia e a cevada possuem glúten, sem contar que a ingestão de grãos, haja vista o flato, prejudicam o meio ambiente.

Sabíeis que existem frutas consideradas tóxicas e que podem afetar rins, estômago, intestino e até o pulmão? Sim, são elas: a banana, por causa do potássio, a cereja, porque pode liberar ácido cianídrico, o tomate e seu glicoalcaloide, maçãs, pêssegos e ameixas possuem cianeto, o melão agrava a candidíase e a carambola pode causar desordem neurológica. Atônito, descobri que o excesso de frutas faz mal. Nesse caso, a salada de frutas tornar-se-ia um prazeroso tipo de castigo a ser ministrado aos sentenciados.

O curioso, entretanto, é que ninguém, em momento algum, questionou as práticas utilizadas no plantio, semeadura, manutenção de lavouras, hortos e experiências laboratoriais da indústria alimentícia; coisa do tipo: pesticidas, fertilizantes sintéticos, o lodo, a água provinda de esgoto, os organismos geneticamente modificados, as radiações ionizantes e um abrangente etc.  

Bem, eu, cientista amador que sou, pesquisador insipiente quiçá, pautado nos presentes dados, por inferência, sou levado a declarar o insólito: comer faz mal à saúde!  

quinta-feira, 12 de novembro de 2020

O Estado multifacetado

As pessoas parecem não ver, ou fingem que não veem as diversas faces do Estado. Sim, redigiram uma Constituição tendenciosa, eivada de ideologia, preocupada em dificultar punições nos que se acreditam inatingíveis. Para isso, usaram como recurso leis que dizem proteger o povo menos esclarecido e de menor poder aquisitivo. Apesar de massa de manobra, esse povo precisava ver-se beneficiado. Foram tantas as vantagens aventadas que a dita “Constituição Cidadã” não cabe no nosso PIB. E qual seria a saída? Simples: incentiva-se a proliferação de ONGs. As Organizações Não Governamentais, pelo menos oficialmente, buscam dar cumprimento às “preocupações constitucionais”. Enfim, o Estado fez-se terceirizado. E aqui permito-me uma paráfrase: Triste da nação que precisa de ONGs!

Mas não paramos por aí. Temos ouvido reiteradamente sobre a existência de um estado paralelo, principalmente nas grandes capitais do país. Esse estado estaria ligado ao crime organizado. Ora, o Estado mesmo nega a existência de tal paralelismo. Todavia, ao negar a existência de um estado paralelo, ele praticamente está sendo permissivo com a existência do que diz não existir. Sim, o Estado não pode concordar abertamente com a existência da dimensão paralela, porque, na verdade, o estado dito paralelo não é paralelo; ele faz parte do próprio Estado. Se assim não fosse, por que alguns “gestores” do poder público, em nome da “democracia”, sentar-se-iam com os chefões do crime organizado para estabelecerem uma trégua? Por que políticos permitem ser financiados pelo crime organizado, se o crime organizado não fizesse parte do Estado?

Uma outra face do Estado é revelado pela milícia. Ora, quem compõe a milícia? Militares, policiais militares, ex-militares, ex-policiais militares. Por que? Simples, a face oculta do poder de polícia, que reveste-se de plena autoridade para dar combate ao crime. De fato? Não! São apenas criminosos travestidos de autoridades, que buscam recursos nas mais diversas atividades cíveis, pois necessitam destes recursos para sobreviverem ao crime organizado que dizem combater. A milícia, oficiosamente, tem suporte do próprio Estado, pois que este carece de quem lhes execute o “serviço sujo”.  

Bem, no momento só nos resta perguntar pela verdadeira face de nosso Estado. E o que temos como resposta? Um Frankenstein. Sim, eis a melhor imagem de uma nação que ainda não desaprendeu a ser colônia, que não amadureceu, um país de Peter Pans, que prima pela irresponsabilidade e disso se envaidece, que importa ideias e noções, que mescla valores e ideologias as mais díspares, que brinca de democracia enquanto seus políticos, juízes e gestores vilipendiam sua gente - o povo, o cidadão - e também a própria nação.


sexta-feira, 6 de novembro de 2020

A Coletivização da Estultice

 

Trata-se de processo lento, amplo e deveras abrangente. Diferentemente do que possa parecer, a estultice pode ser implantada e também coletivizada. O processo parece ter tido vários inícios ou reinícios, e ainda deve diversificar-se; tudo vai depender dos interesses em foco. Pois bem, vou, portanto, falar de um destes inícios ou de um reinício em particular: refiro-me ao movimento hippie. E o que seria este movimento em sua origem? A coisa começou ainda nos anos cinquentas como uma espécie de comportamento contra cultural e acabou por tomar vulto. Na década de 60, os hippies pregavam o amor e o pacifismo, donde o lema Peace and Love, o respeito à natureza, o retorno à vida simples, o não ao consumismo e, o mais importante, colocavam-se contra a industrialização. Pergunto-vos: será que isso contrariava algum interesse? Lógico, principalmente as indústrias bélica e alimentícia. Primeira providência: demonizar o movimento. Sim, os hippies foram vinculados às drogas, aos desvarios sexuais, à falta de asseio corporal, à irresponsabilidade, à inconsequência, ao não comprometimento, à ociosidade, à vadiagem. E o movimento enfraqueceu... Hoje temos apenas alguns moradores de rua, despreocupados, sem quaisquer vaidades. Existem ainda alguns artesãos com família e moradia fixa.

Mas a industrialização, em contrapartida, conhece seu melhor momento. Com os tratados de não proliferação de armas e tantas discussões, muito embora estéreis em seu cerne, o belicismo parece - pelo menos parece - estar em queda, mas a indústria alimentícia desenvolveu-se e trouxe à reboque a indústria farmacêutica. O discurso da industrialização centra-se no respeito ao próximo com a melhor distribuição de alimentos e remédios ao mundo. Verdade? E a fome que, passadas tantas décadas, ainda mata aos milhares em países do chamado “terceiro mundo”? E as epidemias que dizimam populações inteiras em locais menos favorecidos? E o pior de tudo é a proliferação de hábitos e mentalidades absurdas. Exemplo? O discurso que o leite ao natural é nocivo, porque carrega microrganismos que podem afetar a saúde humana. Contudo, promovem a venda e distribuição de laticínios em embalagem tetrapak. O leite natural, que entra em processo de decomposição em menos de 24 horas, pode durar meses nas ditas embalagens. A troco de quê? E haja produtos químicos! A estultícia corrobora com toda esta farsa. E a fome continua a matar pelo mundo...

Os “bem alimentados”, entretanto, tornam-se intolerantes à lactose. Seria cômico, se não fosse triste. Aí a indústria alimentícia cria o leite sem lactose - o mesmo que criar um ferro que não enferruja ou a água que não molha - e os “bem alimentados e informados” pagam mais pelo engodo. A isso junta-se a indústria farmacêutica, especialíssima em criar “poções mágicas” para cuidar dos males “pós-modernos”. E os estultos pagam também por isso. Com a campanha contra os agrotóxicos e a presença dos ecologistas de plantão, a indústria de alimentos arranjou uma saída: os produtos naturais, os alimentos orgânicos. Estes custam “os olhos da cara” e beneficiam somente os de alto poder aquisitivo. E os demais? A indústria farmacêutica vem em socorro. Aqui permito-me um interregno para chamar vossa atenção para um detalhe: As indústrias alimentícias e farmacêuticas pertencem a algumas poucas famílias. Interessante, não?

Ficamos por aqui? Não, discorramos um pouquinho mais... Neste passo, permito-me fornecer-vos uma receita de rabanadas. Pois bem. Minha mãe assim o fazia: o pão duro cortado em fatias, mergulhado no leite quente com cravo e canela em pau. Depois de escorrido era passado em ovos batidos, frito em gordura quente e depois coberto com açúcar e canela em pó. Como bom filho que agora sou, busco fazer exatamente a receita da mamãe. Não consigo; é diferente. A diferença está no pão. Já percebestes que o pão “pós-moderno” demora a endurecer? Isso mesmo. Quando o pão “duro” fatiado é mergulhado no leite, ele desfaz-se; não temos como escorrê-lo como manda a receita original. O leite deve ser apenas aspergido sobre o pão. Pergunta-se: Por que? Evidentemente houve qualquer modificação no trigo, na farinha de trigo, acredito que por conta das experiências genéticas propostas pela indústria alimentícia preocupada em erradicar a fome no mundo (tento não esboçar sorriso). E os especialistas, estudantes, formandos e formados pelas universidades espalhadas pelo mundo, repetem e sustentam à exaustão os mantras com os quais foram educados: alergia ao glúten. E a indústria alimentícia cria uma nova fonte de rendas: alimentos sem glúten! A indústria farmacêutica, por sua vez, traz o “tiro de misericórdia”: medicamentos para minimizarem o efeito do glúten no organismo. Perdoem-me, mas aqui permito-me rir. Não um sorriso de contentamento, mas algo voltado ao deboche, ao escárnio, porque é a única coisa que o estulto merece.

O processo de coletivização da estultice dá-se por inteiro com a ajuda da internet, redes sociais e seus sequazes. Mesmo o leigo encontra respaldo na cultura oferecida no Google - a mesma cultura de compêndio disponibilizada aos acadêmicos -; o ignorante é capaz de repetir ipsis litteris todas as “máximas” da degradação humana ali presente. Um outro recurso utilizado pelas grandes indústrias é, com auxílio da mídia e “especialistas”, espalhar o pânico. Exemplo: o câncer de pele. E a indústria farmacêutica demonizou o Sol e criou o protetor solar fator 2000 (risadas). E a estultícia corrobora tudo o que foi dito e passa a consumir protetor solar. E o organismo humano? Como produzir Vitamina D, ou seja, aumentar a imunidade? Aí a mesma indústria tem a solução: ele cria um sucedâneo artificial à vitamina D. Quem não tem recursos para adquirir, fica com a imunidade baixa e exposto a qualquer vírus de origem suspeita e de passaporte chinês, haja vista o Covid19.

Para se ter uma ideia da eficácia do processo, os mais criteriosos dentre os estultos promovem e contemplam o uso de bebidas artificiais em detrimento aos sucos naturais, amparados na falácia que identifica perigo no aumento das taxas de glicose. Bem, certo de que já falei o suficiente, deixo-vos entregue ao seguinte questionamento: A que se deve atribuir o aumento em progressão geométrica dos casos de diabetes? Por que o mundo está repleto de obesos? O que pode provocar tantos casos de hipertensão? Como explicar o aumento exponencial nos casos de câncer? Por que o retorno de doenças tido por erradicadas? Espero que ainda sejais capazes de perguntar a vós mesmos se o que divulgam é, de fato, verdade.  

quarta-feira, 4 de novembro de 2020

A Confraria do Caldo de Cana

 

Foi uma mensagem breve, sucinta, na qual eu noticiara a moenda recém adquirida e instalada, a cana colhida, o sumo extraído e o quanto essa “paisagem” estaria vinculada à minha infância e adolescência. Em verdade, a “paisagem” de que falo é nada mais que memória; memória involuntária ligada a imagens, cheiros e sabores. Eu, ciente de minha não originalidade, pois que Marcel Proust, através do aroma das madeleines pode reviver toda sua infância, surpreendi-me sobremodo foi com a repercussão dentre os familiares, pois que a todos a narrativa despertou sentimentos tão homogêneos. Não estou bem certo tratar-se de uma confraria ... talvez uma irmandade, um sodalício ou algo que o valha. O fato é que há um laço em comum, inconsciente por certo, a nos unir, irmãos e primos nascidos nos idos dos anos cinquentas e membros de uma mesma família.  

E lá estávamos nós, pequenos, encantadoramente irresponsáveis, a nadar no córrego próximo, a correr pela pequena chácara, a perseguir aves, a subir, dependurar e balançar em árvores. A amendoeira a sustentar um bando de meninos em seus galhos. As mães e a avó, aos gritos, a exigir um mínimo de correção em face das provocações dentre a pirralhada; os pais e o avô a instalarem a moenda manual. E foi extraído o primeiro caldo; todos queriam ser os pioneiros a provar do néctar da cana de açúcar. Os pais se revezavam no exercício estafante proposto pela moenda e sua finalidade; sempre havia alguém que gostaria de beber mais um pouquinho. E junto a tudo isso vinha a amizade, a alegria, a descontração, a camaradagem, o respeito... Eis a origem do inequívoco e irrefletido laço.

Aqui volto a pensar em Proust; ele estava “Em busca do Tempo Perdido”. Eu não, e creio que nenhum de nós, membros da suposta confraria, entenderá o tempo, o nosso tempo, como perdido. Os que permearam aquele tempo, nossos ascendentes, foram personagens exemplares. O agradável da memória é a consciência que temos dela. Esta consciência, por certo, é quem estimula o irrefletido, a espontaneidade da pretendida confraria. Preocupações com o tempo passado? Não, mas com o tempo futuro. Por que? Que imagens, aromas e sabores norteiam, acompanham e acompanharão as novas gerações? Que mensagens, cheiros e paladares vamos legar a nossos descendentes?

Bem, perante a similaridade de sentimentos incitados por minha proto narrativa, a responsabilizar-me, inclusive, pelo bem estar dos familiares/personagens e leitores deste breve texto, afirmo-vos de que o açúcar contido na cana não é refinado e possui baixo índice glicêmico. Ficai, portanto, à vontade quanto à degustação. Nada obstante, muito embora não consigamos transmitir o vivenciado, busquemos, pelo menos, repassar nossos sabores e aromas de modo a torná-los vívidos às gerações seguintes.     

terça-feira, 3 de novembro de 2020

Escudeiro

 

Houve um tempo, e aqui refiro-me aos primórdios, em que seres humanos tinham deuses para tudo. Estes, entretanto, dada à condição de superioridade e distanciamento proporcionado pelo Olimpo, foram substituídos por heróis. Todavia, os tais heróis, nada mais nada menos que filhos de deuses com humanos, bastardos na verdade, manifestavam as mesmas paixões que qualquer mortal. Então tem lugar o advento de um único Deus. Destarte, despontam homens a dizerem-se representantes deste único Deus, tornando-O um déspota em clima de ditadura divina. A humanidade, portanto, passa a negá-Lo, e isso amparado pelo discurso dito racional e pelo conhecimento científico. Ateus militantes, inclusive, anunciam a morte de Deus, se bem que incapazes de definir a data do acontecimento. A celebração de sua morte mostra-se como espetáculo aêmero.

Mas o vivenciar da ciência não tornou melhor a humanidade, nem mesmo trouxe a prometida felicidade. Em virtude disso, seres humanos começaram a fazer da política uma tábua de salvação. A política, no entanto, é feita por políticos, que - como diria minha falecida mãe - “não são flores que se cheire”. Pergunta-se: onde a humanidade buscaria algum alento? De início apelou-se para a ética, mas grave crise de valores lançou por terra tais esperanças; a crise mesma culminou em criar obstáculos à aplicação das leis. E a humanidade cada vez mais perdida.

Então o ser humano decidiu tornar-se o único referencial; uma total relativização. Teve lugar o individualismo exacerbado, a projeção social, a vaidade desmedida, o interesse particular acima das demandas sociais. Num ambiente em que todos desejam tornar-se celebridade, cresce sobremodo a atividade cínica, os discursos empolados. Agrava-se a falácia sofística que diz buscar a perfeição humana, prega-se a retidão das ações, o respeito aos semelhantes, exalta-se o amor à família, a piedade com os menos favorecidos, preconiza-se a meiguice, a bondade com crianças e mulheres, clama-se por justiça e lealdade... Qual nada, apenas gongorismo retórico!

Contudo, em se melhor observando todo este caudal de virtudes postuladas pela retórica pós-moderna, pode-se perceber o código dos Cavaleiros da Távola Redonda. Perdoai-me, mas permito-me rir a valer, pois estou certo que dentre os fanfarrões verborrágicos não encontrarei nenhum similar de Parsifal ou Lancelot. Nem mesmo um Dom Quixote, pois este, pelo menos, fora um idealista, não um vigarista. Não obstante, muitos poderão incorporar a designação de “Triste figura”.

O que vos proponho, afinal? Não, não me ocupo com críticos; a estes respondo que não se trata de paliativo. Preocupo-me sim, instar omnium, com as consequências de uma sociedade que está a manifestar-se cada vez mais de modo irresponsável. E vós me perguntais: Mas o que é necessário? E eu vos respondo: A vontade aliada àqueles valores vistos como ultrapassados. Ultrapassados? Mas mostram-se atualíssimos e tão presentes nos discursos arrojados dos que se projetam e auto-intitulam celebridades.

Sejamos escudeiros! Escudeiros? Sim, escudeiros; não um Sancho Pança.  Observemos o conceito. Partilhemos dos valores pregados pelos cavaleiros, mas aliemos os valores às nossas ações. Não estabeleçamos diferenças entre assertivas e ações. Coloquemo-nos em posição diferenciada, acima da condição dos que se pretendem cavaleiros. Deixemos a condição de knight para nos tornarmos um quase gentleman. A propósito, escudeiro foi um dos primeiros títulos da extinta nobreza.

domingo, 1 de novembro de 2020

Lenitivo

 

O som característico de mensagens. Volto-me indolente: o celular; é meu irmão. Ainda com certo desleixo observo a tela do aparelho. Súbito, sou extraído daquela primeira indiferença: as fotos expõem a coleção de discos clássicos que pertencera a meu pai. Lá estão J. S. Bach, Schubert, Vivaldi... Pasmo, teclo em resposta uma série de interrogações. Aguardo ansioso... ainda não... ele está digitando. Mais um pouco e a mensagem surge: “Coloquei à venda; estou a precisar de dinheiro”. Lancei o telefone sobre a cama e permiti-me lamentar. Eis meu retorno ao desalento. Enfim, que poderia eu fazer? Aquilo nos fora o legado, não herança. Mas estava na casa dele; a ele pertencia...

Pus-me a pensar: a obra de arte, por si mesma, impõe certo tipo de relação com os seres humanos; a coisa vai muito além da posse, transcende a propriedade. Certa feita, ao assistir “O Carteiro e o Poeta”, filme baseado na obra de Antonio Skármeta, aprendi que a arte é para quem precisa dela. Depois de divulgada, a obra emancipa-se de seu autor, de seu idealizador; torna-se de domínio público. Mas o ser humano deve fazer por merecer a arte; deve haver interação, solidariedade, cumplicidade entre objeto e admirador, e meu irmão, infelizmente, não preenche tais requisitos. Mesmo ciente dos entraves jurídicos, insisto em pensar que aquela coleção deveria ser minha, pois eu precisava dela. Eu não falo em posse, em contato ou proximidade; eu falo em merecer dizê-la minha. Mas... que operador do direito entenderia este conceito?

E assim fiquei a cismar até o fim do dia. O início da noite igualmente desagradava-me. Recordo-me de ter orado; uma oração mista de mágoa e comedimento. Eu suplicara a Deus pela manutenção do legado. Certo estou de que Ele entendeu meu arrazoado, muito embora não tenha atendido minha reivindicação. Mas Deus tem lá suas razões, seus motivos insondáveis. O sono buscou fazer-se ausente, regateou, custou, e por fim rendeu-se. Eu rendi-me.

E veio o sonho. Em resposta à minha súplica, tornei-me personagem de um dos contos das Mil e Uma Noites de Scheherazade. Sim, era um Simbad e dançava com desembaraço o Largo e maestoso e o Allegro non troppo da primeira parte da suíte composta por Rimsky-Korsakov. Ainda no ambiente russo, vi-me como um quebra-nozes vestido de soldado. Experimento sorrir para Clara, minha neta, assim como o personagem sorria para a protagonista Clara do ballet composto por Tchaikovski. Contudo, deixo o Reino dos Doces e vejo-me a caminhar sob a luz do luar, ao som da sonata nº 14 para piano de Beethoven, a famosa Sonata ao Luar. Debussy continua a encantar-me com seu Clair de Lune. Todavia, o espetáculo não perdura. A noite cede espaço e surge uma amanhecer primaveril acompanhado por Vivaldi... mesmo em sonho eu me perguntava: O que mais estaria por vir?

Então desponta uma paixão arrebatadora, algo adolescente, embalado pelo Liebestraum de Franz Liszt. Mas a paixão, aliás como toda paixão, conhece seu apogeu e, ipso facto, seu final, muito embora Schubert nos tenha brindado com a apaixonante Inacabada. Ao longe, percebo o aproximar-se de Brahms a encantar-nos com seu Concerto nº 2 para piano. Chopin dá sequência a meu fantástico devaneio com sua valsa op. 64, nº 2. Acordes de O Guarani revelam-me um Carlos Gomes visceral, heroico. Meu sonho, contudo, não estaria vinculado à rogativa feita ao Senhor se não terminasse acalentado por Bach com sua Tocata e Fuga em Ré Menor.

Despertei. O ambiente o mesmo; as circunstâncias outras. O sonho, de algum modo, respondera a meus questionamentos, mitigara impressões, amainara as expectativas, instara a perdoar meu irmão por seu pragmatismo ou não sensibilidade. Senti-me bem, senti-me em paz. Não mais o sentimento de perda em relação à coleção que fora de papai; não mais a necessidade de dizê-la minha. Percebi, então, que a música estava em mim; este fora o legado. Ela, a música, habitava-me; isso bastava-me. Sentei-me no leito e agradeci a Deus.

sábado, 31 de outubro de 2020

QR Code

 

De fato, a tecnologia se nos impõe de modo assustador. Mas, que digo eu? A tecnologia mostra-se invasiva, nos constrange; e isso quando mais se fala em liberdades. Imaginai que agora os documentos são digitais: identidade, título de propriedade veicular, carteira de habilitação, título de eleitor, etc. O porte e o uso do aparelho celular já se mostra imprescindível. Não sei porque, mas só consigo lembrar do sinal apocalíptico ínsito à mão direita dos desavisados. O telefone celular - equipado com câmera, é lógico - acaba, inclusive, de incorporar um novo atributo: o de leitor e decodificador. Como???

Calma, explico-me. Estamos às voltas com os atualíssimos QR Codes. Sim, pode parecer exagero, mas se ainda não houver um QR Code para dada coisa ou função, em breve haverá. Vejamos: existem restaurantes que, em nome da pandemia - onde o sentido do tato foi execrado - aboliram o Menu e a Carta de Vinhos; os clientes aproximam seus respectivos aparelhos celulares daquele emaranhado de pontinhos e a informação fica disponibilizada no telefone. Puxa, que bom! Não? Conheço um cidadão - eu não diria amigo, pois posso me complicar - que é contumaz frequentador de... diria... lupanares. Pois bem, alguns destes estabelecimentos oportunizam logo à entrada um QR Code; os clientes usam a câmera de seus celulares para escolherem a provisória “diva de seus sonhos”.

Aqui serei, por certo, chamado de exagerado, mas já soube, à boca pequena, que o recurso foi testado em banheiros públicos, mas sem muito êxito. Ora bolas, o cidadão chega com alguma urgência à porta dos banheiros e não consegue identificar o gênero, ou seja: por que não o famoso par de luvas ou a cartola e a bengala para diferenciarem o feminino do masculino? Seria essa a finalidade da ideologia de gêneros? Enfim, descobriu-se após uma semana de testes, que havia mais urina na entrada do hall dos banheiros do que dentro deles.

E a coisa não para por aí: o número de divórcios tem aumentado consideravelmente em face do uso de QR Codes na relação entre casais. Imaginai que uma senhora distinta, mãe de família, trabalhadora e tudo o mais, resolveu criar um QR Code para indicar ao marido sua “disponibilidade” ao intercurso sexual. Acontece que o marido não tem celular, só toma banho de água fria e se lava com sabão de coco. Em suma, o cara, um legionário, além de ser taxado de misógino, está respondendo a processo por tentativa de estupro, de feminicídio, etc., etc., etc.

Estarei a potencializar o recurso? Talvez, mas o certo é que hoje não podemos mais assistir TV sem a proximidade do aparelho celular, pois o QR Code está sendo usado em larga escala. E eu pensava que o código de barras seria nosso limiar! Imaginai o uso do código bidimensional para comprar passagens aéreas, marcar assentos no avião, reservar hotéis, etc. E num clima de descontração, buscai imaginar um casamento pautado em QR Codes. Sim, o casal conhece-se através do recurso; por ele tem lugar o primeiro encontro e trocadas as primeiras impressões. E vem o amor ... ou seria paixão? O Code marca o casamento. O padre só atende aos apelos advindos do Code. As bodas - convites, buffets, vestuário - tudo deve-se ao QR Code. Neste momento arrisco-me: a escolha dos filhos deverá ser orientada pelo QR Code?

Como não pretendo alongar-me, devo informar-vos de que, em breve, os leitores assíduos (será que os tenho?) de meus textos terão que fazê-lo através de um Code. Eu já me predisponho a estudar um pouco para criar meus códigos. Sim, bem lembrado: as escolas, com o advento do EAD - Ensino à Distância - lançaram mão do recurso. Todavia, a pergunta que não quer calar passeia incauta por minha mente: será que as pessoas tão voltadas às demandas tecnológicas ainda saberão ler, compreender e interpretar um simples e inofensivo texto?

quinta-feira, 15 de outubro de 2020

Hérnia de hiato

 

Muito embora o título valer-se de terminologia empregada pela medicina, o assunto em pauta, por mais incrível que pareça, envolve ortoépia. “Ortoépia?” Exclamam os incircuncisos gramaticais (ou analfabetos funcionais). E curiosos questionam: “Mas o que é isso?” – ou então – “Ainda se usa?” Sim, e até por uma questão estética, palavras bem pronunciadas emprestam beleza ao idioma. Um tropeço e outro, todavia, é suportável, mas o constante expressar rude ou canhestro é imperdoável. Representantes da esquerda idiomática, ou, se bem preferirdes, defensores do pragmatismo vernacular, argumentariam e diriam-me um ultrapassado. Quem sabe fosse considerado um purista? Ou pior: um facista idiomático!

Relevando-se as contumazes ofensas, confesso-me um démodé. Sim, sou tão antiquado que, se hoje fosse possível enamorar-me de alguém, colocar-me-ia sob sua janela (sou do tempo das casas assobradadas) a tanger as cordas de um violão e soltar a voz numa serenata, quem sabe a imitar Nelson Gonçalves. E em face de iminente desafino, apelaria ao lúdico e diria num arroubo de loquacidade: “Oh Rapunzel, joga-me tuas tranças!” E ela, igualmente enamorada e desatualizada, diria-me incorrigível romântico.

E vós, certamente, haveis de questionar-me: “E a ortoépia?” Sim, o causo em questão deu origem ao presente texto. Relatar-vos-ei: Kelé era bem conhecido na pequena cidade. Filho caçula de honesta família de migrantes gregos, trabalhadores rurais, soube aproveitar a oportunidade para receber estudo diferenciado na capital. Depois de anos ausente, retornou às plagas e enredou pelo caminho da política. Bem, e em se tratando de política, feliz ou infelizmente, fazem-se necessários os comícios, os discursos arrebatadores, etc. Entretanto Kelé, por mais que se esforçasse em proporcionar grandes sermões, manifestava sofrível oratória. Sim, as prédicas, por mais que esmeradas, arrancavam risos.

Então vós me diríeis que nenhuma novidade há em discursos políticos arrancarem risos; gargalhadas, contudo, seriam mais constantes. Mas o problema com Kelé estava na vocalização das palavras; o não observar a acentuação e, mais pontualmente, a duração e divisão silábica. O jovem candidato a político proferia vocábulos de modo que as sílabas alongavam-se e adentravam a sílaba subsequente, o que tornava o discurso caricato. E isso se verificava com mais frequência entre hiatos; Kelé parecia desprezar os encontros vocálicos. A palavra democracia, por exemplo, recorrente em reuniões públicas politizantes, ao ser proferida, transformava-se em democraciiia. A cooperação transformava-se em coooperação; o país aumentava de tamanho (paíiis); a moeda ficava mais estável (moeeeda); os juízes menos iníquos (juíiizes). A feiura, no entanto, ficava horrenda (feiuuura), e qualquer ruído insuportável (ruíiido).

Agora, já explicado o porquê da hérnia de hiato ter sido aventada numa aventura linguística, ocorre-me, e isso dada à patente interdisciplinaridade, uma proposta a ser feita em breve à Academia Brasileira de Letras. Sim, para evitarmos mais um desses constrangedores homógrafos/homófonos, que tantos embaraços nos trazem, sugiro grafar o fenômeno linguístico como “érnia de iato”. Ou seria considerado descalabro e crime contra a prosódia? “Prosódia?” A mesma casta formada pela “intelectualidade de botequim” me interpelaria. Eu, a sorrir, responderia: Esse é assunto para outro texto!

sexta-feira, 9 de outubro de 2020

Falso cognato

 

Animado por saber que o prêmio Nobel de Literatura agraciou desta feita a uma verdadeira escritora, e não mais a um famoso e fanhoso compositor, voltei-me à confecção de textos. Longe de possuir “inconfundível voz poética, de beleza austera e capaz de tornar universal a existência individual”, como a da premiada poetisa Louise Glück, deparei-me com o que me pareceu inusitado: na falta de melhor conceituação, eu falo em falso cognato. Mas o que é isso, o cognato? Palavra que tem a mesma raiz ou origem etimológica. O falso cognato teria raiz etimológica diversa, e por vezes dentro do próprio idioma. Contudo surge uma dúvida: a terminologia científica seria idioma diverso? Difícil? Explico-me.

E lá estava eu próximo ao balcão da drogaria, a interrogar a farmacêutica e a rogar por medicamento que me curasse do refluxo. Aqui faz-se necessária uma breve explicação: eu costumo tomar remédios sem prescrição médica e a defender tal prática. Essa é a realidade do país: médicos há que cobram por simples consulta praticamente o valor de um salário mínimo. Nosso país não tem tempo, nem mais paciência para sustentar discursos hipócritas. A insistência em semelhante sermão é obra de um tartufo, um falso sectário. Prossigo: a farmacêutica, a revelar “notório saber medicinal” indicou-me medicamento genérico que atende pela designação de “Domperidona”.

Eis a origem de meu embaraço: Domperidona. Fui lançado ao passado, nos tempos das “vacas gordas”. Sim, eu em Paris, aboletado no banco de um restaurante, em Montmartre - não que eu me sinta um bom mártir ou bom cristão, mas apenas um médio boêmio - bem acompanhado, evidentemente, e a degustar um delicioso Dom Pérignon. Revelada a origem de meu embaraço, pergunto-vos: trata-se de falso cognato? O champagne homenageia o monge beneditino que lhe desenvolveu o método de preparo; a droga é um amálgama de várias substâncias, quiçá potencialmente tóxicas.

E por falar em toxidade, acabo de descobrir, casualmente, a fonte de cognação entre os termos. De tanto tomar Dom Pérignon, meu organismo desenvolveu certa defesa, o que ora se manifesta como refluxo. E para minimizar tal desconforto, ingiro Domperidona. A vida é simplesmente isso: uma eterna troca de toxidades. Trocamos a toxidade prazerosa pela toxidade medicamentosa.    


quinta-feira, 8 de outubro de 2020

Semáforos

 

A cor vermelha a sugerir o incandescente; é luz, é alerta. E eu passo a frear o veículo de modo lento. Paro e recordo: “Olá, como vai? Eu vou indo e você, tudo bem? Tudo bem...” Não, não há conhecidos, amigos, ou ... Existem apenas estranhos. Incrível, eu me encontro com estranhos. Afasto o olhar de um lado para outro. E lá está o semáforo: Vermelho! Mas, por que o vermelho está no topo, em posição superior, sobre todos os demais? O que significa o vermelho, enfim? A proibição, o limite, a coerção. Divago: Antes de tudo a proibição; esta é nossa vida, nossa realidade. Creio que a primeira palavra a ser decodificada pela criança é o NÂO.

Logo depois vem o amarelo, ou melhor, o alerta, a restrição, o incômodo. Por que amarelo? A cor da desventura, a cor sacrificial. Nossa viver é isso: infelicidade, infortúnio. O semáforo somente aponta para a condição otimista, a expectativa de melhora; é quando mais demora a trocar de cor. Amarelo também pode propor a descontração, inspiração... contudo, ainda somos os mesmos obstaculizados, os ainda coagidos, proibidos pela precedente vermelhidão.

Em seguida e por último a lâmpada de cor verde. O que é isso, o verde? Enfim a realização da permissividade, o direito de ir e vir levado à efeito, a possibilidade, a liberdade. E mais uma vez vagueio, ou melhor, fantasio: quanta coisa precede a liberdade! Seria a servidão o berço da liberdade? Penso em La Boétie. Outra coisa curiosa: O lema do Iluminismo declara em primeiro lugar a Liberdade; só depois viriam a Igualdade e a Fraternidade. Mas o semáforo inverte o foco. Quem estaria coma razão?

No sinal verde os autos arrancam irresponsáveis; motores roncam, esbanjam cavalos de força, insinuam-se por entre ruas, vias, calçadas ...; eles são potencialmente letais. Então permito-me a um último questionamento? Estamos, com efeito, preparados para desfrutar da tal liberdade?

quarta-feira, 7 de outubro de 2020

A pieguice filosófica


Aristóteles, em se tratando de conhecimento, classificou o saber em três campos distintos. Chamou a esses saberes ciências - o termo ciência aqui deve ser entendido como conjunto de conhecimentos bem fundamentados. Às primeiras denominou ciências poiéticas: aquelas voltadas às artes, às técnicas de fabricação de um produto qualquer. Na verdade seriam ciências produtivas, pois que visam a um resultado. Às segundas chamou de ciências práticas, pois estas estariam ligadas diretamente às atividades práticas, o que pressupõe a conduta humana. A terceira e última classificou-a de ciência teorética, ou melhor dizendo, o conhecimento voltado ao que escapa do mundo sensível, ao que só pode ser contemplado. E por escapar ao mundo sensível, esta trata do imutável, do conhecimento inalterado. Esta ciência seria superior às outras; seria a verdadeira filosofia, a filosofia primeira ou a proto filosofia. 

A meu ver, a beleza da filosofia está exatamente em investigar o que foge ao nosso domínio, o que nos desafia a capacidade de conhecer, o que busca limitar-nos. A vera filosofia é, portanto, o bios teoréticos, a vida contemplativa em todo o seu glamour; a pura atividade racional, o pensamento metafísico. Contudo, há os que criticam tal postura a alegar que a contemplação não tem aplicação em nosso dia-a-dia. Não? Será? Além do mais, a filosofia propõe apenas questionamento; não promete qualquer resultado prático...

Nada obstante, há os que confundem filosofia com autoajuda; passam a vida acadêmica a ler semelhantes “livros” e quando se formam ... Conseguem colar grau? Por incrível que pareça, eles colam grau; têm inclusive professor orientador. Pois bem, conheci um destes exemplares que, depois de formado, mandou pintar no portão de casa uma coruja com o seguinte epígrafe: “Filósofo. Dá-se consultas. Trago a pessoa amada de volta por mais difícil que possa parecer”. Brincadeiras à parte, devemos respeitar a decisão dos que se propõe ao conhecimento de técnicas produtivas, se bem que a estes não se deve conferir o título de filósofo.

Quanto aos amantes das ciências práticas, a que se volta às ações, surge um empecilho. Sim, por tratar-se de conhecimento voltado à conduta humana, é recorrente o apelo à retórica, ao sofisma, à afetação ridícula. Percebestes que o ser humano aprende a chorar para conseguir seu intento ainda quando lactente? Pois bem, os “filósofos” - um expressivo número - que apoiam este recurso lúdico e, (por que não?) rasteiro, buscam suporte no existencialismo, seja ele cristão ou ateu, para darem vazão a seus próprios complexos (e não são poucos os complexos).

Outra grande corrente filosófica - a que não raramente é confundida com autoajuda - recorre com frequência à Escola de Frankfurt, onde Herbert Marcuse, um de seus patriarcas, busca unir a afamada sexualidade pervertida de Freud com o sofrível comunismo de Marx e Engels. Nem todos os alemães, infelizmente, dedicaram-se ou dedicam-se à investigação puramente racional, pois Jürgen Habermas, o pop star da filosofia contemporânea, empenha-se em cultuar e dar sobrevida aos mortos-vivos da escola crítica.

A filosofia prática, de um modo geral, talvez buscando dar corpo ao contraditório princípio exarado na Revolução Francesa - Liberté, Égalité, Fraternité - prima por um expediente claudicante (pelo menos em se tratando de filosofia), pois exalta a sensibilidade, o lamento. Em verdade, deparamo-nos com uma singular pieguice filosófica. Os franceses, em sua maioria, buscam pintar a filosofia com as cores de um filme noir, onde não faltam o mistério, o drama, o suspense e o excessivo sentimentalismo como recurso.

É, de fato, preocupante. Tal leitura deveria ser prescrita, assim como uma receita médica, necessitando, inclusive, de prévios exames de saúde. A obra desses “filósofos”, deveria apontar em suas notas introdutórias os efeitos colaterais e contraindicações, pois não foram poucas as vezes em que, ao ler filosofia francesa, fiquei com os olhos marejados de lágrimas, e, sem exagero algum, vi-me bem próximo da depressão.

 


sábado, 3 de outubro de 2020

A terminologia contemporânea

 

Vós não podeis mensurar o quanto sinto saudades da tristeza. Isso mesmo; quem diria, heim?  Tristeza a inspirar saudades! A contemporaneidade parece tê-la relegada ao ostracismo. Então, até por uma questão de elegância, sinto-me no dever de declarar em bom inglês: “Sadness was replaced by depression”. Os dias de hoje carecem de tristonhos, muito embora abundem em depressivos. Mas, se não me é falha a vetusta sensibilidade, depressão não inspira poetas. E a falar em poesia, certa tristeza busca invadir-me, mas ... antes que eu me deprima, mudemos o tema.

Não posso dizer, evidentemente, que sinta falta dos irritados, dos nervosos, dos iracundos, etc., mas por onde andaria esta parcela significativa da sociedade? Parece-me que também foram substituídos. Sede bem-vindos estressados! O dia-a-dia na contemporaneidade é incapaz de provocar irritação, apenas estresse. Curioso é como estes e aqueles têm origem nas mesmas perturbações orgânicas e psíquicas. Não obstante, irrita-me o fato da patente vulgarização do estresse. Como o sangue já me sobe à cabeça, ...

E quanto aos tiques nervosos? Falo de manias. Conseguis lembrar de Wilson Simonal a cantar “mania é coisa que a gente tem mas não sabe porquê...”? Não falo em maníacos, pois que estes sempre farão parte do cotidiano. Porém, e a pessoa organizada, limpa, asseada? Esta passou a ser marginalizada, pois assimilou um atributo que lhe rotula como possuidor de TOC - Transtorno Obsessivo Compulsivo. Eu só posso entender tal assertiva como sinais dos tempos. E o pior é que a presente afirmativa dá margem a uma falácia utilizada amiúde pelos bagunceiros: “Existe ordem no caos!” Aproveito o ensejo para eternizar minha resposta aos desordeiros: “Se existisse ordem no caos, este seria cosmo”.

Poderíamos parar por aqui, no entanto, já observastes que, hodiernamente, não mais sentimos medo? Sim, hoje desenvolvemos apenas fobias. Seria a fobia um medo exagerado? Bem, antes que meu medo transforme-se em fobia e eu revele toda minha loucura... ou seria neurose? Se bem que minha loucura tem por base a insensatez, a doidice; há alguma alienação mental, é fato, mas a extravagância seria considerada neurose? Reclamo vossa atenção para o fato de que a extravagância permeia toda nossa vida. É dentre os extravagantes que encontramos identificação intelectual e afetiva, ou seja, afinidade. Ou trata-se de empatia?

Pois bem, a fazer uso de minha capacidade analítica, somada, é claro, à certa dose de humor, percebo que significativa parte da terminologia contemporânea obedece aos ditames de uma “ciência” (???), que garante desvendar o grande mistério que atende pelo nome de ser humano. A popularização da dita “ciência”, contudo, tornou-a banal e desmedida, haja vista o presente texto. Mas nefasto mesmo foi o surgimento do psicologismo. Este, que através de seus “especialistas” promete ter respostas para tudo, invadiu lares, mentes, situações, relações e faz tempo que esfrega o ilustre “bumbum” aboletado nas cadeiras das salas de aulas, pervertendo, inclusive, a educação e os valores das novas gerações.   

sexta-feira, 2 de outubro de 2020

Pastel de queijo e caldo de cana

 

Desta vez versarei sobre determinado hábito alimentar. Diz-se que as companhias (boas ou más) fazem com que desenvolvamos hábitos... É verdade; sou testemunha viva de tal assertiva. Há aproximadamente 50 anos, eu e meu pai saíamos de casa às 04:30 (madrugada) para trabalhar. Embarcávamos em um ônibus já bastante “disputado” e durante duas longas horas atravessávamos o Rio de Janeiro até o desembarque final na Praça Tiradentes. É bom frisar que à época não existia Metrô, ou VLT, ou BRT ou qualquer outro meio de locomoção a exibir sigla bizarra. A opção pelo trem era descartada, haja vista a distância de nossa residência até a estação mais próxima.

E lá estávamos nós na famosa (e até mal afamada) Praça Tiradentes, antigo Campo da Lampadosa. De lá meu pai seguia a pé rumo à Praça Mauá; eu, por minha vez, tinha que embarcar em outro ônibus para poder chegar em Botafogo (não, não existia Vale Transporte). Todavia, antes de seguirmos nossos rumos, fazia-se necessário o desjejum. Então, na esquina da rua Sete de Setembro, em antiga pastelaria, abancados à moda provinciana, nos deliciávamos a comer pastel de queijo acompanhado de caldo de cana.

Bem, infelizmente, existem pessoas que conseguem - ou esforçam-se para - ver o mal em tudo que as rodeia. Sim, esses maniqueístas do século XXI transformaram o pastel em um dos vilões da culinária. Esqueceram-se os pessimistas de plantão que nossos pasteizinhos eram fritos em óleo novo, fresco, com muito menos gordura saturada que certos assados, e que, quando acompanhados de sucos naturais mostram-se deveras saudáveis. E o suco natural em questão é o caldo de cana, que não ficou imune aos olhares malignos dos cientistas borra-botas que parecem sentir prazer em apontar malefícios. Contudo, o caldo de cana fortalece o sistema imunológico, aumenta a hidratação do corpo, é fonte instantânea de energia, combate ao câncer e o envelhecimento precoce, é diurético natural e auxilia no combate à formação de cálculos renais.   

Nesse momento vós me perguntais: E teu pai sabia de tudo isso? Respondo-vos com honestidade: Certamente não; ele apenas repassava aos filhos seus modestos hábitos, ou melhor, sua mineiridade. Sim, meu pai e seu jeito mineiro de ser, de observar, de educar... Certamente seus hábitos também foram assimilados. A querer ou não, há patente sabedoria nos costumes antigos, inclusive na culinária mineira. Bem mais tarde, ainda nos anos setentas, quando em Belo Horizonte, a trabalhar na rua Januária, no bairro da Floresta, costumava não só degustar, mas também observar várias pessoas a comer pastéis de queijo e a beber caldo de cana em certa cantina à rua Pouso Alegre. Lógico, mineiros como meu pai, igualmente despojados.

Agora fico a me perguntar por um desfecho a esse brevíssimo relato... Certamente não há “moral da história”, nem conclusão. No entanto, podemos pensar em uma recôndita inferência: apelemos de quando em vez para a memória e recordemos - se possível - dos hábitos que os antigos nos tentaram passar, de suas conversas, costumes, valores. Deixemos um pouco de lado as pantominas e bazófias recorrentes dos que se fazem cientistas, dos que se dizem sábios, dos que se travestem em autoridades.  

terça-feira, 29 de setembro de 2020

Os novos intelectuais

 

O termo novo, além do ineditismo, da originalidade, pode significar também algo recente, o que sucede e atualiza o já existente. Todavia, não se deve confundir essa sucessão e/ou atualização como uma evolução linear. Intelectual, por sua vez, nos leva a imaginar pessoa ou pessoas com amplo domínio do intelecto; detentores de inteligência em atividade permanente; alguém com grande cultura. Fala-se também que o intelectual é aquele que produz pensamentos; pessoa que vive exclusivamente de seu intelecto. Contudo, será que semelhante descrição conceitual pode ser corroborada em dias atuais? Vejamos.

Se não me engano, toda essa nova casta - faço uso do termo casta porque “os novos intelectuais” entendem-se como classe privilegiada, e por isso mesmo desvinculado dos demais - tem uma origem comum. A coisa teve início após a publicação do Manifesto Comunista em 1848. Ao discurso marxista somou-se a hegemonia cultural proposta por Gramsci. Não vos enganeis: nossa Semana da Arte de 22 foi fruto desta aberração. Estava, portanto, levada a efeito a ruptura conceitual com o que os radicais chamam arte burguesa. Por fim, em 1930, teve lugar a Escola de Frankfurt, com seu programa interdisciplinar e materialista. O que vimos surgir? Uma teratocultura. E a agressão tão marcante na arte - literatura, cinema, poesia, dança, pintura, etc. - retrata apenas a decantada “Luta de Classes”. 

As monstruosidades daí originadas, através da falácia e de uma tacanha hermenêutica filosófica psicologista, fizeram da catarse a única origem da arte. Com a desculpa de fugir à visão burguesa de arte e cultura, jovens são doutrinados a abandonarem regras e conhecimentos fundamentais à execução musical; são convocados ao olvido de regras gramaticais na composição de textos; são instados ao empenho de criar versos brancos no que chamam poesia; são conduzidos à pintura abstrata, se bem que distante de qualquer abstração, valor e/ou sensibilidade; são intimados a movimentos de corpos que exteriorizem sensualidade, como mais um recurso para desacreditar valores e religiosidade . Não vos deixeis iludir: a excreção em série deu origem a patente crise na criatividade. Basta observarmos que até contos infantis são vítimas de “releituras”. Eis ai a hegemonia cultural defendida por Gramsci.

Mais curioso ainda é perceber que a “emancipada” juventude vive intensamente uma entropia e dela se nutre. É patente a desordem em todo o sistema. Sim, contudo, eles - a juventude - convivem muito bem com os males que lhes foram impostos, até porque são incapazes de perceber que a isso foram conduzidos e estimulados. E vós me perguntais: quem está por trás disso? A casta de que falamos; essa é sua função primordial.

Bem, então agora já podemos retomar o conceito de “novos intelectuais”: arrogância humanoide, caracterizada pela incapacidade de abstrair, e, por isso mesmo, a fazer uso de chavões e slogans, dizendo promover rupturas, muito embora tenha por base criações batizadas de burguesas, a partir das quais estabelece um espúrio ineditismo.

segunda-feira, 28 de setembro de 2020

Caminhos que levam a lugar nenhum

 

A primavera chegou ainda ontem. Calor, suor ...  afinal é Brasil, clima tropical, hemisfério sul. Recordo-me com dificuldades de que já li em algum lugar algo como: “tudo se dilui abaixo dos trópicos”. Esta talvez seja a versão mais elitizada do mote “não existe pecado do lado de baixo do Equador”. Bem, e o que fazer em tais circunstâncias? A casa está imersa em si mesma; as pessoas habitam seus próprios vazios. Torna-se imprescindível, assim acredito, o caminhar: um caminhar lento, tranquilo; um fazer quiescente. Poxa, como eu gostaria de passear por bosque qualquer (seria a síndrome do Chapeuzinho Vermelho?), um lugar de clima ameno, uma floresta talvez.

A falar em floresta, recordo-me de Martin Heidegger e seu Holzwege, traduzido para o português por “Caminhos de Floresta”. Sim, quisera poder desfrutar de um similar de Floresta Negra, um lugar cheio de deuses, andar sem rumo por suas trilhas. Quisera poder errar por tais veredas... Não sei ao certo, ocorre-me que o ambiente pode influenciar no tema lucubrado, por mais que nos preocupemos com determinado assunto. Seria, de fato? Quando caminhamos não escolhemos o que pensar; apenas pensamos. Heidegger ocupou-se até mesmo em saber “O que é uma coisa?” “Was ist eine Ding?”

Diferentemente de Heidegger, até porque distante da Floresta Negra, dou azo a meus pensamentos. Permito-me formar a ideia de certo ambiente voltado às artes, porém com designe de cafeteria. O título? “Arte, café e açúcar”. E já que a língua alemã faz-se presente, que tal “Kunst, kaffee und Zucker?” Sim, lá, neste espaço por mim idealizado, enquanto apreciássemos “vernissages”, independente se pintura, literatura, teatro, dança, música, etc., poder-se-ia degustar um bom café, algo bem brasileiro. Ter-se-ia outrossim uma boa carta de vinhos, alguns frios e, quiçá, uma invejável coleção de whiskies. Na ausência de atividades artísticas, seria disponibilizada música clássica ou um bom jazz, livros, jornais e tabuleiros de xadrez... Mas o que é isso? Estarei em transe?

Pelo visto, estes são “Caminhos que levam a lugar nenhum”. A propósito, o título do presente texto é homônimo a designação em francês para a tradução do Holzwege. Sim, preciso afastar-me deste pensar que conduz ao delírio; preciso do diverso. Torno-me, então, atento ao entorno. Ouço um toque de clarim, ou seria uma simples corneta? Claro, trata-se de ordem unida; estou de frente a um quartel. Busco e rebusco em minha já depauperada memória os esquecidos conhecimentos musicais. Tento escrever uma pauta. A clave de Sol, compasso 4/4. E tem lugar minha partitura: a mínima colocada no terceiro espaço indica um dó; dois tons e meio abaixo outra mínima colocada na segunda linha retrata a nota sol; mais três tons e meio abaixo outra mínima, esta já no compasso seguinte, temos um outro dó, só que uma oitava abaixo. Para finalizar, a colcheia inscrita no terceiro espaço, faz com tenhamos aquele primeiro dó, só que com um quarto de duração em relação ao primeiro. Está pronta: é o toque de descansar. Para o descanso basta isso: menos de dois compassos...

Aliás, sinto-me fatigado; preciso do tal descanso. Que tal sentar-me e partilhar de boa companhia? Dizem os cínicos, entretanto, que, após certa idade só temos por certa a companhia de metástases. Não, não quero pensar nisso. Política? Não, eu já não penso em política desde que ela afastou-se do conceito aristotélico de “arte do bem governar”. Economia? Também não; irremediavelmente pensar-se-ia em política. E súbito sou lançado a um recente passado: a minha então vidinha de educador. Que lástima! Envergonho-me. O que fiz! Ensinei o quê? Muni-me de livros, que agora melhor analisados, porque relidos de modo descompromissado, mostram-se tendenciosos, enganosos, nefastos. Rogo o perdão de meus diletos pupilos, ex-discípulos. Insisto: Perdoai-me ex-alunos! Hoje, e sem muito ponderar, percebo que a educação é uma grande farsa. Educadores e educandos desempenham papéis; uns fingem ensinar, outros aprender. São tantas as variantes, as exigências e lacunas a serem preenchidas para que alguém consiga transmitir qualquer conteúdo, que a educação mostra-se impraticável, donde a minha mais recente máxima: “O conhecimento é intransmissível”.     

Bem, já que sem companhia, penso em amigos. Mas os tenho em número muito reduzido. Eram três; um morreu. Que Deus o guarde! Quanto aos dois restantes, o mais próximo reside a quase três mil quilômetros de distância, no sudeste do país; o outro reside na cidade do Cairo, no Egito. As verdadeiras amizades, de fato, são poucas. Aristóteles discorre com propriedade sobre o tema em sua “Ética à Nicômacos”; inegavelmente um belíssimo texto. Étienne de la Boétie, em seu “Discurso sobre a servidão voluntária”, também vincula a amizade à ética. Ele chega a declarar que quem não for ético, não tem amigos, apenas comparsas. Evidentemente que a ética tratada por eles envolve valores. Todavia, nos dias de hoje, de modo generalizado, quem for ético só colecionará inimigos. Infelizmente, vivemos o ápice da inversão valorativa.

O valor, em dias atuais, parece limitar-se ao cifrão, ao acúmulo de bens, ao capital... Pergunto-vos: Por onde andará o bom caráter, a honestidade, a integridade? Creio que, distante de valores, perde-se qualquer critério avaliativo, seletivo; reclamo vossa atenção para o fato de que o mérito está em baixa, caiu em desgraça. As pessoas vinculam os valores erradamente ao “moralismo de ocasião” e o lançam na conta da religião. Percebestes que a cristofobia virou moda? E por falar em moda, será que existe algo mais cultuado do que telefones celulares e redes sociais?

Fica evidente o contraste com os personagens de minha juventude! Os predicativos a mim destinados são vintage, ultrapassado, jurássico, etc., etc., etc. Pergunto-vos: será que os jovens têm tanta necessidade de estarem online, logados, ou coisa assim? Não seria uma espécie de fuga? Parece-me que as redes sociais cobrem as lacunas deixadas por uma educação (aqui entendida de forma ampla) irresponsável, ociosa, estapafúrdia, descompromissada. As pessoas querem apenas a posse, e para isso não medem esforços; desconhecem o que seja limites, escrúpulos. Penso na comunicação quando menino; vivíamos felizes ou não, informados ou não, realizados ou não, gratificados ou não, mas sem a necessidade de estarmos “pendurados” 24 horas por dia em aparelhos telefônicos. Ainda me recordo do único número de telefone que toda minha família utilizava...

Alguém grita a meu lado na tentativa de vender bilhetes “premiados” da loteria. Nesse caso, volto a pensar no desafio diário de alguns para enriquecer sem esforço e no número de telefone de minha avó materna. Podeis achar estranho os caminhos de meu pensar, mas surpreendo-me a fazer uso de meus parcos conhecimentos do “jogo do bicho”: os seis algarismos referentes ao número telefônico de então correspondem aos grupos do camelo, do galo e do peru. Com efeito, este meu caminhar conduz-me a lugar nenhum!