Quando menino, filho de família classe média – declarar-se honesta seria
pura perda de tempo, pois que classe média em si, pela canhestra ótica da
pós-modernidade tão “politizada”, incorpora predicados outros eivados de uma
raiva ignota; dir-se-ia que classe média implica grupo composto de
dissimulados, ignorantes, réprobos, etc. – fora matriculado nas aulas de piano.
Sim, na verdade, eu começara no ginásio, na banda do colégio, a me entender com
um saxhorn. Mais tarde, voltei-me ao trompete. Todavia, certo de que jamais me
tornaria um Glenn Miller, abandonei-o. Com a saída do ginásio, o piano
chamou-me a atenção. Na época, eu podia ouvir, – a palavra deveria ser
desfrutar – e com muita frequência, graças às extintas vitrolas, várias peças
escritas para piano, bem como a inúmeros concertos. Pude também deixar-me
encantar pela maviosidade das melodias de Mozart, pelo arrojado Chopin, pela
grandeza de um Beethoven, a tristeza quase endêmica de Rachmaninoff, a
magnanimidade de um Brahms, a virtuosidade de um Liszt. Não obstante, uma
certeza me acossava: jamais alcançaria o nível de qualquer um destes exemplares.
Seriam necessárias horas e horas debruçado sobre o teclado do piano; seria necessária
muita dedicação, abnegação, abrir mão de brincadeiras e molecagens tão
benvindas e pertinentes na adolescência. Além da falta de determinação e da
preguiça, faltava-me talento – eu tinha certeza disso. Minha carência de
talento só seria suplantado pela enorme vaidade. Mas eu queria ser como eles;
eu precisava ser como eles; eu queria ser famoso. Na verdade, eu não admirava
aqueles expoentes, eu os invejava.
Revoltado e consciente de minha fracassada tentativa, lancei-me com
sofreguidão ao violão. Sim, eu queria então ser violonista clássico, executar
com perfeição Aranjuez mon Amour ou um concerto de Villa Lobos, mas as
dificuldades eram as mesmas: à falta de determinação somavam-se preguiça e
falta de talento. Eu precisaria passar horas e horas acariciando o instrumento
e ferindo os dedos. Não, de modo algum. Mas pergunto: por que o clássico?
Poderia tornar-me uma referência na música popular. E assim fiz. Mas, qual...
Eu jamais seria um Toquinho, um Baden Powell. Outro fracasso! O rock tornou-se
a saída. Ledo engano: irritei-me e quase atingi a loucura tentando fazer o solo
de Sultans of Swings do Dire Straits. Enfim, minha carreira de músico nunca
passou de sonhos, ou melhor, desatinos.
Andava então, de bar em bar, limitando-me a ouvir a música dos outros e
a encher a cara o quanto podia. Certa feita, uma mulher dispôs-se a cantar;
ninguém para acompanhá-la. Já refém dos efeitos etílicos, dispus-me a fazê-lo.
Nada muito brilhante, mas como o populacho frequentador da noite é nada
exigente, passei por agradável. Depois disso, busquei compor. Como? Minha
poesia era torpe, pobre, repleta de aliterações, haja vista a falta de
intimidade com a língua pátria. Sim, os versos eram livres; não podia dar-me ao
desplante de exigir rimas. Ciente de que jamais seria capaz de aproximar-me de
um Bilac, de um Gonçalves Dias, de um Castro Alves ou um Drummond, optei pela
vulgaridade, pelo que tem aceitação imediata. E assim compus minha primeira
canção, sem frases melódicas, com refrãos agressivos e de uma insensatez
incomum. Fiz sucesso. Mas como era difícil mantê-lo! Tive apenas este único
sucesso e em pouco tempo vi-me no ostracismo.
Como a vaidade é sempre companheira dos arrogantes, declarava aos poucos
curiosos que iria me dedicar à pintura. E assim fiz: adquiri telas, cavalete,
tintas, espátulas, trinchas e pincéis... Mas o que pintar? Como pintar? Coisa
difícil ser artista plástico! Até hoje não consigo entender bem porque o que
pinta uma tela é chamado de “artista plástico”. Seria por que este, talvez,
tenha competência para dar forma? Andei observando os clássicos: Vermeer, Velasquez,
Rembrandt, Degas, Monet, Cézanne ... Qual nada! Tudo era muito complicado para
minha cabeça. Voltei-me para Van Gogh, para Pablo Picasso, para Dalí. Dentre os
brasileiros, observei Pedro Américo, Tarsila, Portinari. Nada! Minha
incompetência exorbitava.
Bem, os recursos amealhados com meu único e meteórico sucesso estavam no
fim; precisava de dinheiro. Voltei a tocar nas noites, nas quais revisitava
alguns sucessos; nunca o meu. Eram parcos os recursos, mas era o que um
inconfesso carente de qualquer talento conseguia conquistar. Pensei em escrever
um romance, porém logo desisti. Folheei alguns considerados clássicos: Homero,
Dante, Cervantes, Dostoievsky, Stendhal, as irmãs Brontë, Hemingway, Dickens,
Thomas Mann, Eça de Queiroz ... Dentre os nacionais, José de Alencar, Machado
de Assis, José Lins do Rego, Lima Barreto. Comecei a perceber que minha
estupidez tinha origem genética. Por que sequer conseguia ordenar ideias, no
sentido de criar uma simples historinha infantil? Sim, eu exigia da vida o que
ela não podia me proporcionar.
Minha vaidade, contudo, meu desejo de ser importante, de ser destaque na
sociedade, de ser reconhecido, de tornar-me “celebridade” fustigava-me
sobremaneira. Como fazê-lo? Pus-me a beber com frequência. Da bebida às drogas.
Minha vida desmoronava. Fui internado em hospital público, depois de ter sido
encontrado na rua com suspeita de overdose. Não sei quantos dias haviam passado
quando fui reconhecido por alguém. Sim, alguém que fora meu fã no meu único
sucesso; um ativista político que militava na esquerda. E então, depois da alta
e de algumas conversas com meu salvador, convenci-me de que minha falta de
talento deveu-se à indiferença que a sociedade capitalista nos dispensa. Sim,
minha incapacidade criativa era fruto de um processo cultural imposto pelas
elites, que assim me estigmatizavam e mantinham sob domínio. Não, eu não
deveria estar preocupado, mas sim exteriorizar essa raiva através de minha
arte, algo único e sui generis. Assim, estaria, de fato, livre, afinal, segundo
o clichê criado pelos incompetentes para justificar a incompetência, “a arte é
a mais pura manifestação de liberdade”.
Agora sou representante da contracultura; oponho-me francamente a tudo
que li, vi e observei: a arte das elites, das oligarquias, de uma aristocracia
impudente, de uma classe média maldita. Hoje sou igualmente marxista. Abandonei
o pouco que tinha em mim de religiosidade; Marx é meu novo Senhor. Deus não
deve traçar meu destino; o determinismo materialista sim. Eu faço música de
protesto, pois quero causar embaraço e agredir; minha pintura transcende o
surreal, pois pretendo criar escândalo e ofender; minha poesia é vulgar, pois
quero enaltecer o que em mim sobeja: a inaptidão. Não obstante, realizei-me:
tornei-me mito, sou famoso dentre a multidão inculta, apedeuta e manipulada
pelos líderes que se dizem justos e libertadores.
Para ser honesto - coisa rara - consigo entender, então, o porquê
dizer-se que arte é catarse. Catarse é purificação; nós nos purificamos quando
expulsamos de nós o que há de mais sórdido, no caso, minha arte. Pela
psicanálise, catarse é trazer à consciência recordações recalcadas, ou seja,
minha ciente e total incompetência artística, minha insuperável inveja dos
grandes talentos aliada à preguiça, à falta de determinação, mas resgatada
através do discurso marxista. Bem, segundo a medicina, catarse é o processo
caracterizado pela evacuação dos intestinos. Cá entre nós, minha arte é bem
isso: uma evacuação, excreção. Entretanto, graças a Marx, estou amparado por
sua filosofia, a filosofia dos fracassados!
Observação: o texto original foi corrigido e revisado,
ou melhor, reescrito por um velho professor contratado por mim. Ele faz parte
daquela direita que defende cultura e valores ultrapassados.
A nossa realidade muito bem retratada.
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