quarta-feira, 7 de novembro de 2018

Pragmatismo político



De início, devo confessar, já faz algum tempo, alimento certa vontadezinha em tornar-me político. Não obstante, antevejo algumas dificuldades, como por exemplo a falta de recursos financeiros e minha baixa popularidade. Contudo, o desejo fez-me atento observador e estudioso de casos. Percebi que a primeira coisa a ser providenciada seria o de identificar uma parte da sociedade que carecesse de alguma representatividade. Em seguida, após estudar sua idiossincrasia, torná-la-ia vítima desta mesma sociedade, apontando, se possível, potenciais algozes. Feito isso, eu deveria construir um discurso ideológico, exaltando as qualidades das ideadas vítimas, o tratamento desigual a elas dispensado, o modo preconceituoso no trato com as mesmas, apesar do inegável prestígio, influência e importância dentre alguns de seus membros.

Bem, e assim o fiz. Próximo passo seria o vincular-me a um partido político. Sim, mas a que vertente filiar-me? Ainda pautado em meras observações, convenci-me de que as ditas minorias, depois de identificadas, tornadas moedas de troca e massas de manobra, devem se converter à esquerda. Sim, os negros, por serem negros, devem ser de esquerda, porque existe alguém que se diz líder, ou há grupos que vomitam a rodos os mesmos clichês, ou seja, a vitimização, o preconceito, os inimigos, os direitos a serem preservados, etc. E o mesmo se dá com os homossexuais, com as mulheres, com os descendentes indígenas e outros. Importante frisar é que, se algum representante dessas ditas minorias pensar de modo diferenciado tornar-se-á um pária, pois a esquerda exerce uma espécie de policiamento ideológico.

Como a vontade de enveredar pelos escaninhos da política era imensa, solicitei não só minha filiação em partido de esquerda, bem como meu desejo de sair candidato ao cargo de vereador na eleição que se mostrava próxima. Pois bem, e lá estava eu às voltas com a esquerda. Aqui registro fato curioso: não saberia vos dizer, se acaso me perguntásseis, o que diferençava meu partido dos demais que ostentavam o rótulo de centro, de centro esquerda, liberal, sócio liberal, direita (existe, de fato????), democrata, etc. Todos manifestavam o mesmo desleixo, a mesma indiferença para com o povo que os elege e que diziam respeitar. Todos, sem exceção, adoram ter poder e deste usufruir; todos cultuam o dinheiro e a boa vida; todos colocam os interesses individuais acima do da coletividade. Mas afinal isso é política, quem sou eu para modificá-la?

E a data da eleição fazia-se próxima. Fui orientado no sentido de criar uma plataforma única, algo peculiar. E assim o fiz: saí em defesa dos carecas. No entanto, de início sofri certa admoestação pelo uso do termo “careca”, pois havia ainda o óbice criado pelo discurso do politicamente correto. A palavra a ser usada seria calvo. Portanto, saí em defesa dos calvos. E, para tal, pus-me a estudar a calvície. Sabeis vós que 20% da população masculina no Brasil apresenta calvície? 20% dos mais de 210 milhões de habitantes fazem dos calvos, de fato, um número expressivo.

Focado em meu discurso ideológico, voltei-me para as relações que envolvem os calvos, isto é, como são tratados em seus dia-a-dias, as piadas, etc. Apeguei-me mais exatamente às chacotas, onde pude aumentar sobremaneira meu repertório particular. Um dos meus auxiliares aconselhou-me no sentido de combater quaisquer referências a carecas, fossem em conversas informais, entrevistas e até mesmo em músicas. Aqui rogo perdão ao compositor Roberto Roberti, apesar do sucesso de “Nós, os carecas”, lançado em 1942, quando grande parte dos carecas - perdão, calvos - ainda não era nascida.

Todavia, gostaria de chamar vossa atenção para o todo do meu arcabouço de campanha. Em meus discursos, além de citar diversas personalidades históricas que careceram de pelos no alto da cabeça, tornei-os alvos de piadas, muito embora sem saber se as mesmas se deram de fato. Empenhei-me junto ao eleitorado, declarando que não mediria esforços para criar uma Secretaria específica para tratar dos calvos, ciente de que esta secretaria serviria como “cabide de emprego”; falei em Projeto de Lei junto ao município, visando tornar crime qualquer referência mordaz aos desprovidos de cabelos; prometi atuar junto ao Prefeito e ao Governo do Estado, no sentido de pressionar o Ministério da Saúde e/ou da Previdência, obrigando o SUS a custear procedimentos de implante; se necessário fosse, que nossos legisladores votassem uma PEC, ou até mesmo que o executivo lançasse mão de mais uma de suas MPs. Aventei a possibilidade de criar uma espécie de incentivo fiscal para as clínicas estéticas e salões de beleza que se dispusessem a tratar da calvície. Outrossim, profissionais de psicologia poderiam dedicar-se ao acompanhamento dos traumas causados pela falta de cabelos e do bullying sofrido pelos calvos, tendo como contrapartida merecido desconto no recolhimento do Imposto de Renda. Um primo meu, com verba da sobra de campanha, desempregado há algum tempo, criaria uma ONG bem atípica: “Amigos dos Pouca Telhas”, na qual o calvo seria ouvido, acolhido e teria sua dignidade resgatada. O lema dessa ONG - que receberia repasse do Governo Federal - seria dizer NÃO às elites de bastos cabelos, NÃO às oligarquias que fazem uso do Botox capilar e da hidratação, NÃO à classe média maldita que abusa das escovas progressivas, dos frisos e dos cacheados.

Enfim, fui eleito. E cá entre nós: torço para que a cada dia seres humanos nasçam ou tornem-se carecas. As mulheres, segundo o compositor da marchinha, na hora do aperto gostam mais dos carecas; eu, de minha parte, não passo aperto graças a eles.

Um comentário:

  1. Cada um que escolha a sua minoria e seja feliz com a sua massa de manobra na mais pura hipocrisia vivendo um mundo politicamente incorreto.

    ResponderExcluir