Inegavelmente,
a vida do ser humano é pautada em dúvidas, medos, apreensões. E isso graças ao
deus Logos que, em face do inapreensível, ou se revolta, ou se cala, ou se
entrega a crenças ou investiga. Tememos as doenças, as relações, as
consequências das atitudes e o desfecho de tudo que se revela através da morte.
É nesta última, pontualmente, que reside o medo maior, muito embora já ter sido
dito que o “ser é ser para a morte”. Mas da morte nenhum medo, apenas o que
viria após a mesma, isto é, o desconhecido. O fato de temermos o desconhecido
funda-se tão somente na impossibilidade de perseguir o permanecer em si, o conatus de Spinoza.
É
a possível impossibilidade que nos leva ao escapismo. Ao temor se soma a
consciência moral: valores determinantes que prescrevem o certo e o errado.
Assimiladas estas noções, o ser humano se pune, se horroriza, se castiga, se
auto imola. Nossos semelhantes criaram, criam e continuarão criando algo como
um código penal moral, e, consequentemente, um tribunal particular: a má
consciência. Baseiam-se unicamente em valores interiorizados e manipulados,
graças à imposição de uma crença estranha, alheia, exógena, alienígena.
Os
egípcios falavam em Anúbis, o deus que acompanhava o fenômeno da morte e
colocava o coração dos mortos em uma balança, tendo a verdade como referencial
no outro prato. Depois de pesados os corações, e se estes fossem mais pesados
que a verdade, a pena seria arbitrada por Maat, a deusa da justiça e consorte
de Anúbis. Corações mais pesados que a verdade eram devorados por Ammit. Em
caso da leveza dos corações, o defunto seria encaminhado ao paraíso. Homero,
por sua vez, fala no Hades, um inferno mitológico, e também nos pesados
desafios que aguardam as almas que para lá se dirigem.
Mas
foi Dante Alighieri, em sua Divina Comédia, que estabeleceu uma divisão
tripartite para a possibilidade da vida pós-morte. Não há balanças na visão
dantesca, mas rios que devem ser cruzados a título de ordálios, estes em
parceria com a mitologia grega. Caronte, um barqueiro mal-encarado e o primeiro
capitalista selvagem de quem se tem notícia, pois cobrava para executar seu
trabalho - na verdade uma economia informal - conduzia os recém-chegados às
portas do Hades, o círculo mais rasteiro, mais famoso e mais acessível à raça
humana. Aquele que não tivesse uma moeda, sequer seria sepultado e estaria condenado
a vagar na condição de alma penada. Aí começo a perceber certa discriminação
social. Mas continuemos. O primeiro desafio a ser vencido é navegar, sob o
comando do capitão Caronte, nas águas imundas do Cócito.
O Cócito
é conhecido como o rio das lamentações. De início a alma lamenta por estar
morta, lamenta também pelas condições de navegabilidade das águas, lamenta pelo
odor das mesmas, lamenta por seu passado terreal, por sua conduta, por seus
pecados. Algumas ainda lamentam por não saber nadar. Depois das lamentações e
arrependimentos o morto muda de águas e adentra Aqueronte, o rio do infortúnio.
Neste, a alma do morto experimenta a desgraça, o sofrimento, e na mesma medida
em que causou danos e desditas aos semelhantes quando ainda vivo. E só então chega às portas do Hades.
Dependendo
se o viajante prosseguirá em seu tour,
Aqueronte espontaneamente se transforma no Estige, o rio da invulnerabilidade.
Ali as almas experimentam regozijo, afinal não mais ficará exposta ao
sofrimento, à dor. Pelo Estige se chega ao purgatório - o nível intermédio da
vida post mortem - e lá a alma
descansa e se prepara para a próxima e última etapa do cruzeiro
mítico-metafísico. Há uma mudança de águas, não por sua característica, mas por
sua finalidade. Eis o Lethe, o rio do esquecimento. Desta água a alma tocará e
beberá para poder experimentar total esquecimento; o defunto olvida quem foi, o
que fez, o que deixou de fazer. Bem, aos que em relação à morte se mostram preconceituosos,
devem folgar, pelo menos, com este aspecto positivo. E limpos, límpidos,
cristalinos e diáfanos chegamos ao céu, o mais alto grau da comédia
pós-existencial.
Meus
leitores podem até estranhar esta minha declaração, pois embora não familiarizado
com os esportes aquáticos, quero bem nadar para vencer no menor tempo possível as
agruras nas travessias do Cócito, do Aqueronte, do Estige. Feito isso, beberei
à larga do Lethe e ocupar meu lugar no céu. Quem sabe ainda possa encontrar
minha Beatriz?
Isso é a vida, à braçadas contra as dificuldades impostas pela correntezas e poluições dos afluentes que levarão ao grande rio de águas límpidas e calmas.
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