domingo, 25 de novembro de 2018

Hidrografia pós-existencial



Inegavelmente, a vida do ser humano é pautada em dúvidas, medos, apreensões. E isso graças ao deus Logos que, em face do inapreensível, ou se revolta, ou se cala, ou se entrega a crenças ou investiga. Tememos as doenças, as relações, as consequências das atitudes e o desfecho de tudo que se revela através da morte. É nesta última, pontualmente, que reside o medo maior, muito embora já ter sido dito que o “ser é ser para a morte”. Mas da morte nenhum medo, apenas o que viria após a mesma, isto é, o desconhecido. O fato de temermos o desconhecido funda-se tão somente na impossibilidade de perseguir o permanecer em si, o conatus de Spinoza.

É a possível impossibilidade que nos leva ao escapismo. Ao temor se soma a consciência moral: valores determinantes que prescrevem o certo e o errado. Assimiladas estas noções, o ser humano se pune, se horroriza, se castiga, se auto imola. Nossos semelhantes criaram, criam e continuarão criando algo como um código penal moral, e, consequentemente, um tribunal particular: a má consciência. Baseiam-se unicamente em valores interiorizados e manipulados, graças à imposição de uma crença estranha, alheia, exógena, alienígena.

Os egípcios falavam em Anúbis, o deus que acompanhava o fenômeno da morte e colocava o coração dos mortos em uma balança, tendo a verdade como referencial no outro prato. Depois de pesados os corações, e se estes fossem mais pesados que a verdade, a pena seria arbitrada por Maat, a deusa da justiça e consorte de Anúbis. Corações mais pesados que a verdade eram devorados por Ammit. Em caso da leveza dos corações, o defunto seria encaminhado ao paraíso. Homero, por sua vez, fala no Hades, um inferno mitológico, e também nos pesados desafios que aguardam as almas que para lá se dirigem.

Mas foi Dante Alighieri, em sua Divina Comédia, que estabeleceu uma divisão tripartite para a possibilidade da vida pós-morte. Não há balanças na visão dantesca, mas rios que devem ser cruzados a título de ordálios, estes em parceria com a mitologia grega. Caronte, um barqueiro mal-encarado e o primeiro capitalista selvagem de quem se tem notícia, pois cobrava para executar seu trabalho - na verdade uma economia informal - conduzia os recém-chegados às portas do Hades, o círculo mais rasteiro, mais famoso e mais acessível à raça humana. Aquele que não tivesse uma moeda, sequer seria sepultado e estaria condenado a vagar na condição de alma penada. Aí começo a perceber certa discriminação social. Mas continuemos. O primeiro desafio a ser vencido é navegar, sob o comando do capitão Caronte, nas águas imundas do Cócito.

O Cócito é conhecido como o rio das lamentações. De início a alma lamenta por estar morta, lamenta também pelas condições de navegabilidade das águas, lamenta pelo odor das mesmas, lamenta por seu passado terreal, por sua conduta, por seus pecados. Algumas ainda lamentam por não saber nadar. Depois das lamentações e arrependimentos o morto muda de águas e adentra Aqueronte, o rio do infortúnio. Neste, a alma do morto experimenta a desgraça, o sofrimento, e na mesma medida em que causou danos e desditas aos semelhantes quando ainda vivo.  E só então chega às portas do Hades.

Dependendo se o viajante prosseguirá em seu tour, Aqueronte espontaneamente se transforma no Estige, o rio da invulnerabilidade. Ali as almas experimentam regozijo, afinal não mais ficará exposta ao sofrimento, à dor. Pelo Estige se chega ao purgatório - o nível intermédio da vida post mortem - e lá a alma descansa e se prepara para a próxima e última etapa do cruzeiro mítico-metafísico. Há uma mudança de águas, não por sua característica, mas por sua finalidade. Eis o Lethe, o rio do esquecimento. Desta água a alma tocará e beberá para poder experimentar total esquecimento; o defunto olvida quem foi, o que fez, o que deixou de fazer. Bem, aos que em relação à morte se mostram preconceituosos, devem folgar, pelo menos, com este aspecto positivo. E limpos, límpidos, cristalinos e diáfanos chegamos ao céu, o mais alto grau da comédia pós-existencial.

Meus leitores podem até estranhar esta minha declaração, pois embora não familiarizado com os esportes aquáticos, quero bem nadar para vencer no menor tempo possível as agruras nas travessias do Cócito, do Aqueronte, do Estige. Feito isso, beberei à larga do Lethe e ocupar meu lugar no céu. Quem sabe ainda possa encontrar minha Beatriz?

Um comentário:

  1. Isso é a vida, à braçadas contra as dificuldades impostas pela correntezas e poluições dos afluentes que levarão ao grande rio de águas límpidas e calmas.

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