Pascoal
estava em coma! A notícia caiu como uma bomba em meio à comunidade projeciologista.
Os mais próximos, mesmo que estranhos a tal comunidade - bem poucos por sinal,
e eu era um deles - também ficaram pasmos diante do acontecido. Pascoal sempre
fora saudável, sem quaisquer sintomas de epilepsia, diabetes, ou algo que o
valha. Era um sujeito estranho, arredio, é verdade, mas jovem, inteligente e
determinado. Desde que o conheci, sempre se mostrou um aficionado em
experimentos de o tipo projetar sua consciência para fora do corpo.
Corri
a sua casa. Ele morava só; a faxineira encontrara-o deitado em seu leito com
uma expressão serena, mas sem apresentar reação a qualquer estímulo. Gritou,
desesperou-se, benzeu-se, apelou para a vizinhança. Meu número de telefone
estava entre outros na agenda sobre a mesinha de cabeceira. Ela ligou; ligou
para mim e para outros. Um médico conhecido foi acionado; examinou-o e ordenou
que chamassem a ambulância, pois Pascoal deveria ser removido para um hospital.
Cruzei com o dito médico à entrada do pequeno apartamento repleto de curiosos.
Passeei pela sala, esperando a oportunidade para olhar o amigo. No quarto de
dormir aquele entra-e-sai característico. Deixei-me ficar pela sala vasculhando
seus livros de projeciologia.
Azáfama:
a ambulância chegara e a equipe adentrou correndo o recinto. Não mais que 15 minutos
haviam se passado quando Pascoal recobrou a consciência e ergueu-se do leito
totalmente refeito. Surpreendemo-nos e folgamos em vê-lo recuperado, mas isso
não foi o suficiente para impedir que certa especulação tivesse início dentre a
vizinhança. Uns atribuíram o acontecimento à overdose de alguma droga, outros falavam em abdução por ETs,
reduzido grupo discorria sobre os mais escabrosos diagnósticos. Limitei-me a
cumprimentar Pascoal e saí, deixando-o entregue aos cuidados de uma turba
inquieta e inoportuna.
Dias
mais tarde encontrei-me com o convalescente. Estava como de costume, isto é,
ensimesmado, muito embora ter-me surpreendido com um convite para o café.
Aquiesci ao pedido e acabei por ouvir o relato detalhado de sua experiência. Na
verdade Pascoal não ficara em coma, ou melhor, não no estado comatoso descrito
pela ciência médica, mas em dimensão bem próxima. O tal estado, como eu
previra, adviera de uma experiência projeciologista. Segundo o próprio Pascoal,
a experiência permite que a consciência renuncie ao sôma - o corpo, e adentre uma dimensão de pura percepção.
Pascoal,
antes de abandonar seu corpo, foi precedido por um estado letárgico. Ao despertar
nessa outra “dimensão”, disse ter-se sentido muito bem e sem a menor vontade de
retornar à condição precedente. Não, nada de luzes, espectros, fantasmas,
entidades, antepassados visitantes. A consciência de Pascoal pairava acima do
próprio corpo; apenas o completo bem-estar oriundo de uma apreensão não
mediatizada por qualquer veículo neuronal, cerebral ou sensível. Não havia
linguagem; poder-se-ia dizer a condição ideal de apercepção, relação e
transmissão, algo que transcende o logos. Um estado de paz semelhante ao
pari-nirvana e não o êxtase místico. Pascoal quis permanecer assim. Ouvia vozes
chamando por seu nome, o entra e sai em seu quarto, a chegada do médico, a
ambulância, etc. Mas eram impressões distantes, confusas, e que lhe soavam como
agressivas, incômodas. E nada, absolutamente nada lhe despertava a vontade de
retomar o corpo. Nesse momento fui levado a classificar seu coma como seduzido.
Sim, na verdade Pascoal provocara tal condição e viu-se fascinado pela
circunstância inefável e igualmente prazerosa, dispondo-se a permanecer no
limbo. Até que alguém lhe aplicou uma droga qualquer e Pascoal, mesmo contra
sua vontade, descerrou os olhos.
Parece-me
que nos dias de hoje temos a obrigação de ficar vivos. Estar vivo, ser
saudável, bem disposto, “sarado”, tornou-se paradigma social; uma necessidade,
uma determinação. A longevidade manifesta-se como apanágio de mito pós-moderno,
sendo cultuado indiferentemente se por esclarecidos ou por néscios. O valor que
a sociedade atribui à vida culminou no abandono, na afronta a uma liberdade que
a própria sociedade defende com garras e dentes. Viver deixou de ser um direito
e passou a ser uma obrigação, se bem que o viver exigido obedece a um cânon
protocolar prenhe de superficialidade. E Pascoal despediu-se com um lacônico
adeus, assegurando-me que sua experiência estava apenas começando.
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