sábado, 3 de novembro de 2018

A ética do cinismo



Eu poderia discorrer entusiasticamente durante horas e gastar rios de tinta na tentativa de expor o conceito de ética, sua raiz etimológica, classificações e divisões. Contudo, manter-me-ei mais pragmático, até porque os dias atuais não mais contemplam o conhecimento; as pessoas satisfazem-se com o superficial, com o supérfluo, o lacônico, o efêmero. Portanto, opto por exemplificar. Percebei: eu usei o termo exemplificar e vou recorrer a exemplos, não a hipóteses, situações prováveis ou possíveis. Apenas não cobrais de mim detalhes e identidades, pois este não é um trabalho jornalístico.

A política, com sua peculiar e abjeta característica é a que mais esbanja o referido modelo, pois que legisladores desenvolvem mecanismos tais que obstaculizam a aplicação da própria lei que abriga o mecanismo. Vamos ao exemplo: Determinado prefeito, subprefeito e grande parte dos vereadores de certa cidade foram presos por uma operação da Policia Federal, acusados de organização criminosa. Há uma gama de indicadores que comprovam tais práticas: vídeos, conversas telefônicas, documentos escritos e as já famosas delações premiadas. Pois bem, a deixar de lado a questão jurídica, ou melhor, a sofística utilizada pelos “preclaros” operadores do direito, fixemo-nos nas consequências que referido acontecimento traz para o município, pois que, além dos prejuízos trazidos ao cofre público, a cidade ainda continua a bancar os salários do prefeito, subprefeito e de 70% dos vereadores presos. Na busca pela desoneração da folha de pagamento do município, foram protocolados pedidos de impeachment para o prefeito e subprefeito, bem como a cassação de seus acólitos igualmente privados de liberdade.

Com um daqueles espetáculos midiáticos – isso é parte constituinte da ética do cinismo – a Câmara de Vereadores abre suas portas para os cidadãos e a denúncia é lida. Dentro de uma semana será votada sua admissibilidade, para então ter início ou não a votação do pedido de impeachment. Todavia, devemos estar atentos para o fato de que, com a prisão do executivo e de 70% do legislativo da cidade, foram convocados os suplentes. Uma reunião foi bastante para eleger-se um novo Presidente da Câmara e um novo Prefeito interino em exercício. Examinemos agora, mesmo que perfunctoriamente, a Lei Orgânica da cidade. Em um dos incisos de um dos parágrafos diz-nos a lei que suplentes não tem poder de voto ou de veto. Isso dará lugar a uma nova votação para se saber se o tal inciso será ou não respeitado. Mas, tende calma: os suplentes continuam sem poder de voto. O que quer dizer isso na prática? Que a denúncia apresentada contra o prefeito e seus sequazes será arquivada. Quando questionados, os vereadores dirão: “apenas estamos cumprindo a Lei Orgânica do Município; é a letra da lei”. Conseguis perceber ao que chamo de Ética do Cinismo? A lei abriga e dá guarida à sua própria antítese, ao seu não cumprimento.

Mas não só a política tem a prerrogativa de exemplificar tal ética; vejamos um caso bem banal: Um colega bancário, em conversa informal, contou-me que, certa feita, deparou-se com um problema na fila de seu caixa. Era início de mês, quando os bancos apresentam grande movimento. Determinado cidadão, chegada a sua vez, optou por realizar o pagamento de seu boleto em moedas. O colega em questão, haja vista o tamanho das filas, solicitou ao rapaz que aguardasse um pouco, pois iria atendê-lo em breve, assim que diminuísse o movimento em seu caixa; deu-lhe inclusive a opção de deixar o documento com o dinheiro, pois que ele realizaria a contagem das moedas e efetuaria a operação, podendo o cliente vir mais tarde buscar o recibo. De nada adiantou; o cliente declarou-se ofendido e discriminado, virou as costas e deixou o banco. Dias depois, a agência bancária foi informada pelo setor jurídico que certo cliente formalizara uma queixa contra a instituição, a alegar ter sofrido discriminação pela fato de ser homossexual. O banco teve que indenizar o cliente; meu colega quase perdeu o emprego. A diretoria do banco expediu circular para orientar aos caixas de que, em tais casos, se dedicassem essencialmente ao cliente, em detrimento dos demais cidadãos. Em resumo, o banco preferia ouvir reclamações dos demais clientes do que pagar indenizações aos que se diziam discriminados. É o interesse particular sobrepondo-se ao interesse coletivo: mais uma característica da Ética do Cinismo.

Outro fato, em essência, não muito diferente do acima narrado, pode ainda nos esclarecer: Voltava eu de minha caminhada pela beira mar, quando fui acometido de insuportável sede, haja vista o forte calor que se abatia sobre a cidade. Sentei-me à mesa de um convidativo bar para sorver um suco de fruta. A tarde caía. Não muito depois de ter dado início à ingestão do suco, eis que se apresenta à mesa vizinha um grupo de rapazes. Pelo uniforme, pela estatura dos componentes e pelo calor da conversa, pude inferir que tratava-se de um grupo de estudantes, integrantes de um time de basquetebol. Deixei-me cativar pela conversa próxima, afinal é sempre bom ouvir as expectativas e sonhos da adolescência; isso nos remoça, nos remete a um passado já distanciado e algo esquecido.

Não obstante, a conversa não permaneceu no nível da expectativa, ideais, ou quimeras; a coisa descambou para a reclamação. Os rapazes diziam-se prejudicados pelo técnico do time. Pude perceber pela conversa e impropérios que eles acabavam de perder o jogo. Ora, dir-me-ão meus possíveis e afoitos leitores: os perdedores sempre reclamam dos vencedores e buscam justificativas para a derrota. Correto, conquanto o exposto tratar-se do inusitado e ter a comprovação de todo o grupo. Eis, em síntese, o que foi narrado pelos jovens atletas: Como já o disse, faziam parte de uma equipe colegial de basquete. Pelo que pude entender, um dos integrantes da equipe fora o culpado pela derrota do time, mas o principal responsável fora o técnico. O jogador em questão mostrava total insegurança: um pivô que errava nos passes, nos lançamentos, nos arremessos (nos de 3 pontos nem pensar), um fracasso nos rebotes. Mas por que o atleta não estava fora do time? Ou no banco? Simples, porque o pai do aluno ameaçara o técnico, e destarte o colégio, de instaurar um processo por discriminação. Sim, o referido atleta era negro. E vós perguntar-me-eis: E o que tem isso? Simples, o pai, homem também negro, acredito que vítima de discriminação, entendeu que o filho passava pelo mesmo constrangimento quando o técnico o deixou de fora nos primeiros jogos. Segundo o que pude ouvir, o pai do rapaz entendia que pelo fato de ser negro e de grande estatura o filho deveria ser um excelente jogador de basquete, exemplar brasileiro de um Magic Johnson, um Shaquille O’Neal, um Michael Jordan, ou ainda um LeBron James. Ora, assim como o fato de ser negro não admite o incorporar de qualquer característica negativa, também não deve admitir a assimilação gratuita de virtuosos predicados. Mas não foi esse o entendimento da diretoria da escola, e, por consequência, do técnico e professor da equipe. Era preferível a derrota na quadra do que a vergonha de ser punido por um grupo que diz-se comprometido com a Justiça. Aqui percebe-se outras características da Ética do Cinismo: hipocrisia, interesse, pusilanimidade. E são essas instituições que educam nossos filhos!

Bem, quando já me dava por satisfeito por ter exemplificado o que entendo por Ética do Cinismo, alguém bateu-me à porta. Sim, era um velho conhecido, músico com algum reconhecimento no meio artístico, tendo em vista o grande número de arranjos que lhe eram encomendados pelos “expoentes” da música dita popular. Mas isso é assunto para outro texto; voltemo-nos à questão. Contou-me o colega, misto de arrependimento e impotência, que fizera parte de um júri, experiência esta que muito lhe constrangera. Para não ser enfadonho, tentarei expor sucintamente o que me segredou o velho músico. Fora ele convidado para participar como jurado em um concurso, no qual se buscava premiar e difundir novos intérpretes para a música popular brasileira. Lisonjeado, aceitou de pronto. Na data prevista, buscou chegar cedo e tomar pé das circunstâncias em que se daria o evento. Tudo, de início, parecia correr bem. Houve que se notar a presença de excelentes candidatos: vozes potentes, belas tessituras, excelente afinações, etc. Até que se fez necessária a premiação. Os membros da comissão não podiam dar seus votos em separado, mas sim em conjunto. Meu amigo estranhou tal prática, mas aquiesceu a exigência. Reunidos, aquele que se entendia como “líder” ou “presidente” da comissão julgadora declarou que seria de bom tom premiar uma determinada candidata. Alguns membros, poucos na verdade, argumentaram que a referida concorrente, em algum momento, desafinara; em outra oportunidade teria entrado atrasada em relação à melodia. Enfim, existiam melhores candidatos ao prêmio. Porém, o autodeclarado “presidente” da comissão fez uso do contra-argumento – na verdade pura sofística – de que o concurso visava não a profissionais, mas a pessoas que careceriam de oportunidades dentro da sociedade. A pessoa, então, escolhida pela maioria da comissão foi uma mulher, de cor parda, moradora em uma favela e que fazia questão de declarar-se discriminada. Percebei: o discurso que contempla o respeito à diversidade é o mesmo que a torna pífia.

Bem, não espereis de mim uma conclusão ao exposto. Apenas empenho-me em ressaltar o mingau de torpes valores em que estamos inseridos. Não vos enganeis: tal dinâmica jamais contemplará o outro, muito menos o respeitará; o que percebemos é uma sociedade que impõe a si mesmo uma prática que sabe de antemão ser impraticável. A hipocrisia atingiu índices elevadíssimos, o que, a cada dia, está tornando o convívio mais difícil. Percebeis como está cada vez mais insuportável a convivência em sociedade? Não há mais regras sociais, existem apenas ameaças para ameaçar o que já está ameaçado. Identificada, portanto, a origem da polarização da sociedade. Há todo um discurso que pretende-se messiânico porque diz-se voltado à demanda social, embora tenha como supedâneo os valores mais sórdidos: a hipocrisia, a dissimulação, a facúndia. Dixi!

Um comentário:

  1. Este comportamento cínico dos que lideram o pais em troca de aceitação populista, no seus discursos politicamente corretos e moralmente reprovaveis estão matando o mérito, a livre iniciativa e a esperança.

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